sexta-feira, 18 de abril de 2014

O PSICOPATA DE DEUS


Sob a recomendação do meu amigo João Paulo, dediquei uma hora e meia da Sexta-feira Santa para assistir a um documentário do History Channel sobre as novas perspectivas da neurociência. Eu e o João temos trocado algumas ideias acerca desse campo. Obviamente, cada um a partir de sua própria inclinação teórica. O João, a partir de sua adesão e de seu fascínio com esse campo. Eu, a partir do vício da problematização.
Em síntese, o documentário traz uma demonstração de alguns repertórios comportamentais que se constituem como objetos de estudos da neurociência, tais como o campo das emoções (como o medo, a excitabilidade sexual, o autocontrole em situações estressantes), o campo da memória (como os déficits de memória de curto prazo e a potência da memória de longo prazo), o campo dos comportamentos antissociais (como a psicopatia), o campo da mística religiosa (como as capacidades mediúnicas), etc.
O que se coloca como pressuposto geral em todos esses estudos é o fundamento biológico e cerebral de todas essas atividades. Elas não apenas teriam um correspondente neuronal de resposta a estímulos ambientais, mas estariam condicionadas pelos processos neuroquímicos conjugados com a necessidade evolutiva de adaptação da espécie. O comportamento humano é neuroquímico por essência. A subjetividade humana é somática e cerebral por natureza. Tudo isso visaria à adaptação ambiental da espécie.
Importante salientar que a neurociência, como um desdobramento pontual do campo das ciências biológicas, ocupa-se de um dos aspectos reconhecidos até mesmo no campo de algumas psicologias histórico-sociais, que é a filogênese. É o corte de “espécie” que caracteriza suas investigações. E só um insensato negaria o fato de que os elementos ligados à filogênese estão presentes em todos os repertórios comportamentais desenvolvidos pelos seres humanos.
Por outro lado, consideramos profundamente problemática a redução desses repertórios comportamentais exclusivamente à filogênese, por considerar o papel decisivo que as relações intersubjetivas, culturais, políticas, históricas e simbólicas também possuem quando se trata de pensar no agir humano.
Um exemplo bem-humorado para ajudar a pensar.
Pinçando um exemplo dos comportamentos antissociais, o Sansão da Bíblia (Livro dos Juízes 13-16) deveria ser diagnosticado como um super-psicopata.
É que segundo certa orientação neurocientífica, a psicopatia está relacionada a certas disfunções cerebrais mais precisamente associadas a um subdesenvolvimento anatômico da amídala (que nesses casos seria 17% menor que as amídalas “normais”), assim como a problemas de comunicação entre a amídala e os lóbulos frontais. Em termos comportamentais, essas disfunções anatômicas se traduziriam na completa ausência de sentimentos de culpa em relação aos padrões sociais relacionados ao “certo” e ao “errado”.
Sansão teria sido, assim, um super-psicopata! Explico por que.
Enquanto nos casos mais assustadores da atualidade registram-se os assassinatos em série de 15 ou 20 pessoas por certos sujeitos psicopatas, Sansão matou mil homens em um só dia, sem o mínimo traço de culpa na cabeça. Pelo contrário, após sua chacina, fez uma oração ao seu deus pedindo-lhe água, pois a chacina produzira sede. E o seu deus lhe atendeu! (Cf. essa narrativa em Juízes 15,14-20). Matar sem culpa teria sido um de seus mais habituais predicados (cf. Juízes 14,19; 15,7-8; 16,30).
Obviamente, estamos tomando esse exemplo de forma meio jocosa, mas para pensar numa questão que para nós parece muito séria. As significações do bem e do mal, a nosso ver, são históricas, culturais, contextuais, relativas a cada espaço-tempo. E isso está bastante distante das necessidades de adaptação, postuladas pelas perspectivas evolutivas da ciência biológica. Na sociedade de Sansão, por exemplo, matava-se tranquilamente em nome dos deuses, sem a menor culpa na cabeça. Matava-se até como um ato de devoção e de amor aos deuses. Matava-se como quem faz o maior bem do mundo. Sansão está absolvido! Seu cérebro também!
Os binômios matar=mal e não matar=bem, são realidades morais bastante atuais. Para Sansão não fariam o menor sentido. Matar=bem e não matar=mal lhe soariam com mais naturalidade. E tudo isso sem o mínimo traço de culpa no cérebro. Por quê?
Porque a inviolabilidade e a sacralidade da vida humana são construções culturais muito recentes, forjadas por uma complexa teia de aparatos políticos, jurídicos, religiosos, científicos e culturais como um todo, dos quais não é nada fácil fazer a história. O filósofo contemporâneo Peter Singer, a partir das discussões bioéticas acerca do aborto e da eutanásia, supõe que o Ocidente deve a inviolabilidade e a sacralidade da vida humana exclusivamente ao Cristianismo. Para mim, a própria noção de culpa, biologizada no conceito de psicopatia, tem seus ancestrais culturais na culpa cristã, introjetada na economia psíquica do Ocidente pela subjetivação ligada ao Cristianismo.
Finalmente, o que desejamos com todo esse papo, em primeiro lugar, é apenas problematizar concepção da psicopatia como um fenômeno reduzido exclusivamente a disfunções neuronais. As associações entre “extinguir uma vida humana” e “culpa” são historicamente construídas. No mais, mata-se bastante na contemporaneidade sem o mínimo traço de culpa, quer cristã quer biológica. O próprio Estado contemporâneo o faz... Tema de um outro texto.
Em segundo lugar, desejamos problematizar a redução total dos comportamentos humanos aos seus condicionamentos filogenéticos, e neste caso, cerebrais. Mesmo porque tal reducionismo neurocientífico e suas intervenções têm implicações políticas e sociais muito sérias. Mas, de novo, elas são assunto para outra reflexão.

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