
Sobre os mosaicos e os vitrais, a verdade e a heresia
Outra metáfora para a verdade
Não conheço um único herege no seio da vasta historiografia religiosa que quis ser chamado assim. Pelo contrário, para todos eles, os desviantes do pensamento coerente eram aqueles a quem dirigiam sua denúncia. Herege é sempre o outro, mesmo para o próprio herege. Entre os “hereges clássicos”, não conheço um que tenha se conformado a essa alcunha. Por isso, desconfio de todos os que, propositalmente, querem assumir esse encargo como um sacerdócio.
Na realidade, tal palavra – heresia – só faz sentido se sustentamos o esquema epistemológico de um único pensamento certo que pode ser contradito por pensamentos desviantes. Ao sustentar tal esquema, não sabe o pseudo-herege que continua sendo profundamente ortodoxo. Pessoalmente, como entendo que a verdade não é nem da ordem do absoluto nem da ordem do relativo, mas da ordem da liberdade, sou da pluralidade. Minhas metáforas preferidas para a verdade são o mosaico e o vitral. Sendo assim, eu desejaria que chegasse o tempo em que a própria palavra heresia viesse a ser vítima de processos inquisitórios. Nesse caso, eu mesmo me candidataria a inquisidor!
À moda de Freud, sinto o faro de um interlocutor astuto que me indaga: mas caberia a metáfora do mosaico e do vitral no caso de uma declaração do tipo “Eu sou o caminho, a verdade e a vida”? Conforme Jesus, esse mosaico e esse vitral não seriam compostos de uma peça só – ele mesmo? E eu diria que Jesus, dentre todas grandes figuras religiosas da história, é aquele em quem a metáfora do mosaico e do vitral mais se ajusta. Porque o mesmo Jesus que diz ego eimi hê alethéia – eu sou a verdade –, diz também eu sou o faminto, o sedento, o errante, o nu, o doente e o encarcerado (vide Mateus 25,31-40). A epifania da verdade de Jesus tem rostos variados, sobretudo nos rostos múltiplos que têm os espoliados e pequeninos do mundo. Exatamente como num mosaico ou num vitral!
Convicções sob vigilância crítica
Todavia, não posso fechar os olhos para a realidade de que na maioria das produções simbólicas do homem, mormente na Religião Organizada, certas idéias se tornaram prevalecentes, normativas, dirigentes da práxis, da compreensão do mundo, de tal maneira que acabam definindo a identidade dos respectivos grupos que as adotam, e, assim, se tornam critérios pelos quais se delimita o próprio sentido de pertencimento a tais grupos. Historicamente essas idéias normativas se condensam sob forma textual nos Dogmas, nos Credos, nas Confissões de Fé, nas Declarações Doutrinárias, ou na literatura produzida pelos “intelectuais orgânicos” (A. Gramsci) desses grupos. No âmbito da vivência prática, essas idéias normativas se concretizam na práxis dos grupos e no nível pessoal onde cada um de nós, um a um, procura vivenciar aquilo a que damos assentimento.
Não obstante, as verdades normativas são cheias de ambigüidade. Definem os grupos. Conferem a identidade das associações humanas, sem a qual nenhuma delas seria possível. Criam um mundo simbólico sem o qual não seria possível existirmos no mundo concreto. Mas ao mesmo tempo podem segregar e fomentar a violência, simbólica e concreta. E embora nos seja possível operar essa distinção, ambas, a violência simbólica e a concreta, são no fundo um único fenômeno. Pois a violência concreta – a segregação, o racismo, a opressão política, o homicídio, o genocídio, por exemplo – é somente o ápice da violência simbólica. Ou seja, a violência concreta é a violência simbólica em plenitude. Toda convicção, desde a mais bem intencionada, traz o germe dessa ambigüidade. Terá sido por isso que Nietzsche aconselhava a que não se confiasse num homem de convicções?
Uma sugestão de sinalização para o mundo
No âmbito religioso, muito bem fazem aqueles que procuram eliminar a palavra heresia de seu vocabulário e de suas ações. Mas também muito bem fazem aqueles que procuram eliminar a palavra tolerância. Também essa, assim como heresia, pressupõe aquele esquema epistemológico descrito acima de um único pensamento certo que pode ser contradito por pensamentos desviantes. Daí que essa palavra – tolerância – só pode subsistir enquanto concessão. Continua pressupondo uma situação de autoritarismo e de posse exclusiva da verdade. Isto é, tolerância só pode existir onde haja relações assimétricas de poder. E as Religiões Organizadas bem que poderiam dar justamente aí um enorme sinal para o mundo, declinando do exercício dessas relações de poder, tão em voga no mundo. “Entre vós não seja assim...”, dizia Jesus aos seus discípulos!
Nisso, penso que tanto Católicos quanto Protestantes estejam quase emparelhados: nenhum deles ainda conseguiu dar/ser esse “sinal” para o mundo.
Por gozar de uma coesão ideológica mais unânime, é mais fácil falar dessas relações na Igreja Católica. Com todo totalitarismo de sua máquina gerencial (que o diga Bento XVI), é muito fácil notar que a tolerância ali é mais elástica. Por exemplo, autores e teólogos protestantes publicam suas obras em editoras católicas e estudam Teologia nos centros de formação gerenciados por esta Igreja. Isso é um exemplo mínimo de tal elasticidade da tolerância. Um processo de excomunhão por desvio de pensamento na Igreja Católica – algo esdrúxulo e terrivelmente escandaloso para o mundo de hoje – necessita de vários anos para que se possa empreender uma investigação que possibilite fundamentação máxima aos procedimentos inquisitórios (os quais, reafirmo, são bestiais!).
Por outro lado, eu, pastor protestante, me assustei quando topei com a matéria de Ultimato intitulada Quarenta livros que fizeram a cabeça dos evangélicos brasileiros nos últimos quarenta anos, escrita por Ricardo Quadros Gouvêa. Conforme o mesmo, os critérios adotados para a formação da lista foram os seguintes: “[foram escolhidos] livros que foram campões de vendagem, citados e debatidos, que influenciaram e continuam influenciando os evangélicos brasileiros, livros muito lidos e com alto índice de aceitação, e também os que hoje estão operando uma mudança paradigmática na cultura evangélica contemporânea”. Dos quarenta, eu só tinha ouvido falar em quinze! E desses quinze, eu só li um!
Essa minha “alienação” é um bom sinal! Não por que eu queira aparecer. Disse antes e ratifico: lugar de hereges auto-intitulados é o divã. Mas o sinal é bom porque aponta minusculamente para um retorno às próprias tradições protestantes, originalmente perpassadas pela liberdade e pela pluralidade. Sou batista e fiz toda minha formação teológica num seminário batista, mas, no entanto a lista acima me é estranha. Apesar disso, continuo me sentindo profundamente protestante e batista.
Auto-criticidade e a última inquisição
Karl Popper sinalizava que a força do desenvolvimento científico não está nem na qualidade de seu método nem nas convicções produzidas por ele, mas está na criticidade. Se a criticidade tiver mesmo todo esse poder de aperfeiçoar cada vez mais as nossas produções simbólicas, deveríamos lutar sempre mais em favor de uma pluralidade cada vez maior, mormente entre nós mesmos. Porque, de fato, não há desenvolvimento do espírito onde impera a uniformidade e onde se padece da falta de criticidade. Temos já, como protestantes, a diversidade. Falta-nos ainda a criticidade, que em sua forma genuína é sempre auto-criticidade também.
O caminho para a unidade não passaria pelo caminho da criticidade, sobretudo da auto-criticidade? O caminho da auto-criticidade não nos levaria a conciliar sem traumas liberdade e diversidade? O primeiro passo deveria consistir em iniciarmos rápido nossa última inquisição: contra a palavra heresia.