
UMA VISÃO DO FUNDO DO MAR
Essa noite eu caí no fundo mar
Lá eu só vi surpresas, vi o que não se quer ver
Vi as coisas pelo avesso, espalhadas caoticamente
Daquele jeito que nos irrita, porque fingimos sempre o equilíbrio
Lá as coisas estão nuas, e de olhos fechados tudo se torna visível
No fundo do mar tudo é autêntico, até a hipocrisia
No fundo do mar tudo é verdadeiro, até a mentira
No fundo do mar tudo é manso, até a cólera
No fundo do mar tudo é decente, até a devassidão
No fundo do mar tudo é escuro, até o sol do meio-dia
No fundo do mar tudo é sério, até a filosofia
Lá eu me descobri diferente, eu era outra pessoa
Eu era uma amálgama inédita, sem temor e sem pudor
Lá eu era vento e pedra, padre e pastor
Porque no fundo do mar tudo é novo, até o mundo
E embora eu não quisesse ver, no fundo do mar eu me sentia bem
Lá eu era assim, inteligente, paciente, cafajeste, triste
Pois no fundo do mar tudo é solidão, até a turba
No fundo do mar tudo é santo, até a igreja
No fundo do mar tudo é força, até o homem
No fundo do mar tudo é saúde, até a doença
No fundo do mar tudo é casto, até o sexo
No fundo do mar tudo é alegria, até a vida
No fundo do mar tudo é doce, até o terror
Lá todas as coisas valem a pena, porque não há almas grandes
No fundo do mar a razão é uma louca alucinada
A gritar freneticamente pelas ruas sem que ninguém a ouça
No fundo do mar o sentido é um ermitão a que ninguém quer dar ouvidos
E o bom senso é um serial killer a quem todos cospem na cara
Lá eu era uma dezena de pessoas, uno como ninguém
Porque no fundo do mar tudo é inteligível, até a Santíssima Trindade
No fundo mar tudo é alegre, até um tango argentino
No fundo do mar tudo é soberbo, até o sorriso de uma criança
No fundo do mar tudo é perfeito, até o matrimônio
No fundo do mar tudo é honesto, até a política
No fundo do mar tudo é puro, até o beijo de uma prostituta
No fundo do mar tudo é leve, até a miséria nossa de cada dia
No fundo do mar todas as coisas têm asas, por isso tudo flui
Lá tudo é confortável, até as garras de um gavião
Lá os loucos dão as ordens e as encarceradas fazem as leis
Ninguém se espanta da desordem, pois que ela entra pelas narinas
Os leões vigiam os jardins e as cobras dão os primeiros acordes das manhãs
Nas catedrais os bancos ficam presos ao teto e os fiéis dormem nas celebrações
Nos funerais os bem-te-vis cuidam das velas e as carpideiras arrumam as telhas das casas
No fundo do mar tudo é ideal, até as escolas
No fundo do mar tudo é popular, até os livros de Nietzsche
No fundo do mar tudo é saboroso, até o veneno das serpentes
No fundo do mar tudo é improvisado, até a liturgia da missa
No fundo do mar tudo é festa, até a morte de um micróbio
No fundo do mar todos vão à escola, até as vacas
Foi lá que eu me encontrei, e, engraçado, acabei por me perder
Porque no fundo do mar a alegria não tem fim
E lá a tristeza é um prato servido em todos os lugares nobres
No fundo do mar a burguesia dança no meio da rua mostrando as nádegas
Mas as pessoas-de-bem pouco se importam, já que suas casas não possuem janelas
No fundo do mar tudo é sono, mas vive bem que vive em vigília
Foi quando me lançaram uma bóia, na qual estava escrito: “Vida real”
E tudo se fez velho, como num parto bem sucedido
E tudo se fez novo, como num canto não ouvido...
Paulo Nascimento
3 comentários:
Não conhecia ainda essa sua vertente poética. Até então só havia lido (e apreciado) seus artigos que mesclam teologia,sociologia e filosofia de uma maneira muito deliciosa de se ler. Fiquei encantada, também, com a sua poesia. Fiquei com uma vontade enorme de visitar o fundo do mar. Só que eu não saberia descrever com tanta beleza a minha experiência por lá.
Oi Maria! Obrigado pela graciocidade. Esses arroubos poéticos me aparecem muito raramente. Mas quando aparecem, trato de engaiolá-los logo numa rede de palavras. Obrigado por acompanhar nossas meditações. Um grande abraço!
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