sábado, 6 de fevereiro de 2010

HELDER, O DOM


Pelos 101 anos do nascimento de Dom Helder Câmara


Se Dom Helder Câmara estivesse vivo, completaria nesse domingo (07/02) 101 anos de vida. Sem dúvida, sua existência significou enorme avanço nas dinâmicas eclesiais da Igreja Católica no Brasil, tendo encarnado em seu presbiterato os anseios do Concílio Vaticano II antes mesmo da realização deste. Trata-se, portanto, de um autêntico profeta. Como diria Yves Congar a seu respeito, Dom Helder possuía justo aquilo que faltava à sua igreja [e, por que não dizer, à boa parte delas], que era visão.

Desejo transcrever aqui quatro testemunhos que servem como micro-demonstrações de uma vida encharcada do Evangelho de Jesus Cristo. Todos esses testemunhos pertencem à coletânea Helder, o Dom, organizada por Zildo Rocha e publicada pela editora Vozes como derradeira homenagem literária.

Os dois primeiros testemunhos são de Frei Betto:

Em certa ocasião, a polícia federal bateu à sua porta:

__ Viemos oferecer-lhe uma equipe de segurança. Se o Sr. morrer em acidente ou for assassinado por um louco, a culpa recairá sobre o regime militar.

Dom Helder achou graça com tamanho cuidado com sua segurança. De fato, preocupação com a imagem do Brasil no exterior:

__ Não carece. Já tenho três pessoas que cuidam muito bem da minha segurança.

Os delegados ficaram surpresos:

__ Mas não consta dos nossos registros. Ninguém pode ter segurança privada, sem autorização oficial. Dê-nos os nomes deles.

O arcebispo aquiesceu:

__ Pois não: são o Pai, o Filho e o Espírito Santo.

*

Uma noite, uma família pobre recorreu a ele:

Seu bispo, a polícia levou nosso pai confundido com um bandido. Estão batendo muito nele. Dom Helder compareceu à delegacia:

__ Seu bispo – exclamou o delegado perplexo –, o Sr. por aqui?

__ Sim – respondeu Dom Helder –, vim em busca do meu irmão.

__ Seu irmão?!

__ Está preso aqui. É o fulano!

O delegado ordenou a imediata libertação do preso.

Mas os Srs. são tão diferentes – observou o delegado – na cor e no nome!

Dom Helder não titubeou, disse a verdade que, talvez, o delegado não tenha captado:

__ É que somos filhos do mesmo Pai.

***

O terceiro testemunho é de Marcelo Cavalheira:

(...) Naquela fase de progresso e otimismo do Brasil, era intenso o relacionamento de Dom Helder com o então presidente da república, Juscelino Kubitschek. Freqüentemente, os dois se encontravam para discutir sobre problemas nacionais e seus grandes desafios. Certo dia, já quase às vésperas da inauguração de Brasília, Dom Helder recebeu um recado vindo do Palácio Presidencial, ainda no Catete (Rio de Janeiro), comunicando que o Presidente estava enfermo e queria falar urgente com ele. Chegando ao palácio, Dom Helder foi logo recebido no apartamento pessoal do Presidente, que não estava enfermo coisa nenhuma. Mas o que pretendia mesmo era falar a sós com Dom Helder por largo tempo, sem ser incomodado.

A conversa toda, por mais de uma hora, girou em torno de um insistente convite do Presidente para que Dom Helder aceitasse ser prefeito da nova Capital Federal. Dizia Juscelino que todos os líderes de partido estavam de acordo e isso contribuiria para um grande congraçamento nacional e para o fortalecimento da autoridade do Governo. Dom Helder discorreu com convicção e sagacidade sobre a proposta presidencial, mostrando que sua vocação era ser padre, era estar presente na vida do país sem jamais sair da sua posição de pastor. Queria sempre agir em nome de Deus, sem sair do seu campo, sem invadir o Estado, nem jamais voltar à união oficial da Igreja com o Estado, o que, na prática, prejudicava a ambos. Juscelino não se convencia, voltava cada vez com mais veemência e arrazoados. Ao final, Dom Helder, de sua parte, depois de todos os argumentos da fé e da razão, partiu para golpear o Presidente com um exemplo prático, irretorquível: “Hoje, Sr. Presidente, eu estou aqui, frente a frente, diante do senhor, debatendo pontos de vista com absoluta liberdade e sem condicionamentos de qualquer ordem. No dia em que eu me incorporar a seu grupo de comando, dentro das injunções concretas da prática política, eu estarei amarrado, balançando a cabeça para concordar com o que o senhor disser, deixando de lhe trazer a colaboração original e independente da Igreja. Eu quero ter sempre um canal para o diálogo livre e respeitoso com o Estado para cobrar o seu dever. Quero fazê-lo em nome de Deus e do povo. Quero ser a boca dos que não têm vez nem voz.

Diante desse argumento que apelava para a sabedoria da prática, o Presidente Juscelino se ergueu, deu uma de suas grandes gargalhadas e proferiu com especial ênfase a famosa frase de Juliano, quando vencido na batalha contra os cristãos: “Venceste, Galileu!”.

***

O quarto testemunho é de Marcelo Barros:

(...) No Recife, Dom Helder encontrou um clero no qual havia padres conhecidos por suas posições conservadoras. Nunca, ninguém pôde dizer que foi preterido ou marginalizado pelo arcebispo. Ele gostava de repetir:

__ Se você concorda comigo, me confirma. Mas, se discorda, me ajuda mais porque me obriga a aprofundar o meu ponto de vista.

Um bom exemplo de como ele praticava isso aconteceu em 1969. Dom Helder denunciou torturas praticadas contra prisioneiros. O “Jornal do Comércio” publicou uma entrevista com o vigário de uma paróquia central da cidade. O tal monsenhor dizia que o arcebispo defendia bandidos porque nunca foi vítima dos seus atos delinqüentes. E concluía: “Seria bom que fosse assaltado e torturado para não defender mais a bandidos”.

Dizer aquilo era quase sugerir o crime aos inimigos. Havia poucos meses, o Padre Antonio Henrique, um dos auxiliares do arcebispo, aparecera morto, com o corpo terrivelmente torturado. Os irmãos e irmãs da coordenação de pastoral exigiram do arcebispo um pronunciamento claro. O padre deveria ser advertido e o artigo precisava de uma resposta. Dom Helder negou-se a tomar qualquer atitude. Defendeu o direito do padre de dizer o que pensava e concluiu o assunto com a lembrança de um episódio bíblico:

“Um dia, o rei David marchava com seu exército e Simei, descendente de Saul, seguiu a comitiva, atirando pedras no rei. Insultava-o chamando David de sanguinário e dizendo que Deus o entregaria nas mãos de Absalão, o seu filho revoltoso. Um general pediu ao rei para matar aquele homem e David respondeu: ‘Deixem que ele me amaldiçoe. Se Deus permitiu, o que adianta vocês proibirem? Deixem-no, talvez o Senhor olhe a minha humilhação e me restitua a paz’” (cf. 2Sm 16,5-14).

Dom Helder concluía: “Isso do qual me acusam não é justo, mas tenho outros pecados. Aceito a acusação do que não fiz para que Deus me perdoe de algum mal que fiz”.

***

A falta de memória histórica parece ser um mal tanto em nível da sociedade brasileira em geral, quanto de nossas instituições cristãs em particular. Portanto, esses testemunhos, além de serem singelíssimas homenagens póstumas, são pequenas tentativas de conservar memórias edificantes de nosso Cristianismo brasileiro, tão carente de pessoas-símbolo que animem uma visão progressista e engajada da relação fé-mundo.

Assim, termino com uma citação da Ivone Gebara à mesma coletânea, como reforço a essa memória animadora:

“A vida de Dom Helder é um sinal da glória de Deus porque aponta para direções precisas, porque assumiu causas precisas, tentando fazer os seus mesmos valores de Jesus de Nazaré e dos profetas e profetizas que o precederam ou que foram seus contemporâneos”.



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* Testemunhos extraídos de ROCHA, Zildo (org.). Helder, o Dom Uma vida que mudou os rumos da Igreja no Brasil. 2ª edição, Petrópolis: Vozes, 1999

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