quarta-feira, 25 de agosto de 2010

POLÍTICA, TEOLOGIA E BÍBLIA



Existem critérios bíblico-teológicos para a escolha político-partidária?


Nesse tempo de expectativas quanto ao futuro político de nosso país e de nossos estados, pode o conhecimento religioso nos oferecer bons critérios para nossas escolhas político-ideológicas? Pode a Teologia nos ajudar no discernimento das melhores propostas entre tamanha diversidade partidária? Pode a Teologia nos oferecer critérios de discernimento eficazes na escolha do nosso voto? Em minha opinião, a resposta é afirmativa para todas as questões acima.

Sim! O conhecimento religioso pode nos ajudar no momento de escolher entre as variadas propostas políticas de que dispomos. Isso por duas razões:

(1) Embora no Ocidente a política, sobretudo a de Estado, se proponha apartada da influência religiosa e acentue constantemente seu caráter laico, o substrato religioso está presente como sua argamassa filosófica e como seu pano-de-fundo antropológico. O cidadão a quem os estados democráticos procuram tutelar é o cidadão forjado pelo substrato religioso do Ocidente, sobretudo como sujeito de direitos inalienáveis;

(2) A vivência da fé, quer queira o crente, quer não, ou quer perceba o crente, quer não, tem implicações políticas diretas no tecido social, às vezes com matizes progressistas e transformadoras e às vezes com matizes reacionárias e mantenedoras do status quo. Em outras palavras, a vivencia da fé é um ato político por necessidade, como o são a vivência de outros arranjos da cultura humana em geral. Por vezes ouve-se a idéia da neutralidade das igrejas no campo político. O que estamos dizendo aqui é que essa neutralidade é impossível. A isenção do envolvimento nos processos políticos é também uma ação política com efeitos peculiares. Certamente danosos.

Para sermos um pouco mais realistas, é preciso dizer que os fatos atuais já não condizem tanto com a idéia de neutralidade e de isenção das igrejas no processo político-partidário do Brasil. Dito coloquialmente, a política já entrou nas igrejas faz algum tempo. Falando especialmente do campo religioso evangélico brasileiro, muita coisa mudou em pouco tempo. Se por um lado as denominações “históricas” preservam um pouco de sua tentativa de isenção na política partidária (quase sempre derivada de uma interpretação apressada do princípio de separação entre Igreja e Estado), as denominações “emergentes”, pouco atreladas a compromissos ideológicos construídos historicamente, fazem política livre e abertamente.

Por conta do espaço, eu não gostaria de empreender aqui uma avaliação da política feita pelos “evangélicos emergentes” no Brasil. Basta mencionar o fato de que, diferentemente dos chamados “evangélicos tradicionais”, aqueles se fazem representar nas instâncias oficiais do Estado, e os seus interesses particulares ditam a pauta da atuação política de seus representantes. Além disso, para os fins do problema colocado no início do nosso artigo, bastaria mencionar que a escolha dos representantes políticos de tais grupos de maneira alguma é feita com base em critérios bíblico-teológicos que consideremos razoáveis.

Mas antes de comentar acerca dos critérios bíblico-teológicos que consideramos possuírem força norteadora para nossa escolha política, é preciso fazer duas advertências sérias.

Em primeiro lugar, pensar em critérios bíblico-teológicos que nos auxiliem no discernimento das propostas político-partidárias pode conduzir muita gente ao equívoco de pensar que a Bíblia e a Teologia possuem propostas fixas, ou referenciais a-históricos, ou “princípios eternos” aplicáveis a qualquer tempo e circunstância, para os seres humanos e para a sociedade. Pensar assim, obviamente, facilitaria tudo. Bastaria aplicar aquilo que a Bíblia e a Teologia postularam de forma a-histórica à história, nesse caso, à política. Mas não é o caso. Para mim, nem a Bíblia nem a Teologia possuem referenciais fixos e a-históricos, aplicáveis em todo tempo e circunstância, aos seres humanos. O que a fé bíblica parece testemunhar (e a Teologia deveria assumir) é a cambiante construção do humano. O fazer-se e o refazer-se, em suas variadas expressões culturais, religiosas, sexuais, políticas, artísticas, jurídicas, existenciais, etc., é o que de melhor testemunha o texto bíblico. A historicidade da organização política e da autocompreensão existencial humana, em sua provisoriedade, estão presentes em cada porção da Bíblia. Em síntese, por mais contraditório que pareça, a Bíblia é um dos livros mais antidogmáticos que conhecemos.

Isso posto, reitero: o desafio que propusemos no início desse artigo – isto é, pensar em critérios bíblico-teológicos que nos auxiliem em nossa escolha político-ideológica – não será enfrentado com a aplicação de princípios a-históricos aplicados à história e à política atuais. Esse desafio será pensado levando em conta “o espírito da Bíblia”, e não sua letra.

Em segundo lugar, os critérios apresentados abaixo dizem respeito a projetos políticos, e não a indivíduos. É desnecessário advogar acerca da idoneidade moral dos que nos dirigem na arena política. No entanto, parece que a maioria das pessoas se contenta com idoneidade do sujeito investido de uma função política, sem prestar atenção na qualidade do projeto no qual ele está inserido. Já chegou a hora de entendermos que ninguém faz política com sua biografia debaixo do braço. A idoneidade moral de um candidato ou candidata não deve ser o único item de nossa consciência política. Também seu projeto deve nos interessar. Um projeto político implica um fundo filosófico, antropológico, e em muitos casos, religioso. Implica uma visão da vida e do ser humano que nos compete conhecer. Os critérios seguintes estão interessados nesse tema que tem relação com os projetos políticos.

Abertura ao novo

O novo é um dos temas mais recorrentes na Bíblia. Como relato de um povo em caminhada, não poderia ser diferente. Ora, se o novo está em jogo, a provisoriedade também deve marcar presença efetiva. O novo, na Bíblia, aparece não somente como surpresa e como inesperado, mas como convite e como programa. Inclusive, comparece ali como a finalidade da História: “eis que faço novas todas as coisas” (Ap 21,5). Até quando surge como risco e como incerteza, tendo a desaprovação de Javé, o novo é preponderantemente assumido na Bíblia (1Sm 8). Esse lugar do novo na Bíblia corrobora aquilo que dissemos mais acima, acerca da cambiante condição humana na história. É como ser inconcluso movido pela vontade de “ser mais” que o novo é uma constante na história bíblica. A Teologia também advoga em favor da novidade. Em certa medida, ela funciona como matriz do novo quando os esquemas dogmáticos tentam encarcerar a interpretação da Bíblia em categorias velhas e contraproducentes.

A abertura ao novo comparece então como um importante critério de discernimento bíblico-teológico na escolha de projetos político-partidários. No Brasil, a racionalidade política tende historicamente ao conservadorismo e à procrastinação de reformas até o limite do suportável. Nos últimos anos o tema da reforma política chegou a encantar amplos setores da sociedade civil, mas sem malogro de suas pretensões. A reforma tributária e judiciária de que tanto necessitamos permanecem sonhos distantes. É bem verdade que amplos interesses, para além de uma simples fobia do novo, emperram o sucesso dessas propostas reformatórias. Mas também esses interesses, majoritariamente de ordem econômica, se sustentam em visões de mundo retrógradas, assentadas no latifúndio, na concentração dos meios de produção, que se constituem como travas no processo de renovação dos mecanismos político-legais de modernização do país.

Um projeto político baseado na abertura ao novo não é simplesmente um projeto político reformista. Antes, é aquele que conjuga a necessidade de reformas com a coragem do enfrentamento de visões de mundo tacitamente ultrapassadas, que tanto marcam nossos parlamentares.

Inclusão dos marginalizados

Como é estranho que a Bíblia e as Teologias que dela derivam sejam instrumentos de exclusão de tanta gente. Como tudo isso é contrário ao espírito da Bíblia! Também é estranho que a maioria das pessoas, sobretudo as de mentalidade ilustrada, desprezem o fato de que nossos celebrados “Direitos Humanos” têm como substrato de formação o Cristianismo. Não se ancoram, como muita gente pensa, no sujeito da Modernidade. Se a Modernidade foi importante na sedimentação da noção de sujeito, as concepções antropológicas que deram dignidade a este sujeito são anteriores a ela. Remetem ao Cristianismo como uma das matrizes culturais do Ocidente.

Umas das maiores novidades da fé bíblica consiste em justamente advogar a total dignidade de todo e qualquer ser humano. A práxis de Jesus de Nazaré não consistiu em outra coisa senão na vontade de humanizar aquelas pessoas consideradas impuras pela religião, e aquelas sem amparo de quaisquer instâncias oficiais. No “reino de Deus”, que é o nome dado por Jesus de Nazaré à nova sociedade habitada por um nove ser humano, aqueles a quem todos desprezam precedem as pessoas mais virtuosas (Mt 21,31). No projeto de uma sociedade marcada por valores diferentes como preconizada por Jesus, há lugar para todo tipo de gente.

Um projeto político-partidário que privilegie as políticas públicas de inclusão dos proscritos deve ser muito bem visto. São muitos os sujeitos excluídos e muitas as razões da exclusão social em nossos dias. Não nos compete enumerá-los todos aqui. Por muito tempo os pobres apareceram como foco das políticas de inclusão social. Hoje, além deles, novos atores sociais se organizam para dar visibilidade a outros grupos socialmente marginalizados, como negros, gays e lésbicas, deficientes físicos, sem-terra, mulheres, idosos, imigrantes, etc. Para além do histórico descaso político, essas minorias precisam enfrentar um mundo de representações sociais preconceituosas presentes no cotidiano, o que torna suas vidas mais difíceis. Concordo plenamente com o pastor Luis Longuinni Neto quando dizia que “a sociedade é conservadora”. Neste caso, as políticas públicas de inclusão desses grupos dão conta daquilo que a persuasão informal não consegue dar.

Tensionamentos frente aos poderes desumanizadores

Este é o outro lado da luta por inclusão dos excluídos. No centro da mensagem bíblica está o que eu chamo de “teologia da cruz”. A cruz é um NÃO! frontal à proposta da nova sociedade chamada “reino de Deus”. A cruz é o produto do tencionamento com aqueles poderes que se interpuseram a este projeto. A cruz tornou-se o emblema maior da cristandade. Mas poderia ser usada também como emblema maior de todas as visões de mundo e de todas as práticas excludentes, sejam oriundas da economia, da política, da religião, que não permitem que o ser humano goze a vida com liberdade e plenitude. Mais do que qualquer outro símbolo, a cruz ratifica que não existe conquista dos excluídos que não passe pela luta e pelo tensionamento. Não existem conquistas dos excluídos que sejam concessões dos opressores. A cruz, portanto, também é o símbolo da manutenção do status quo. Ela é aquele item da teologia bíblica que recorda a dimensão do tensionamento presente em qualquer projeto humanizador.

Michel Foucault dizia que “a política é a continuação da guerra por outros meios”. Sem rodeios, isso é uma verdade literal. É impossível fazer política sem tensionamentos. Como um critério bíblico-teológico, isso nos alia a todo projeto político que assuma tensionamentos explícitos contra alvos explícitos, flagrantemente responsáveis pela manutenção do atraso na sociedade. Um projeto político-partidário, nessa ótica, não pode corroborar as vontades e estratégias de setores que mais exploram do que beneficiam a população. No universo do trabalho e da economia essa é uma realidade cotidiana. Há casos, como o alagoano, em que a elite política quase sempre é a mesma elite econômica, onde o Estado, como diria um economista local, é somente o guarda-chuva das intenções econômicas dessa mesma elite. Esse é um item delicadíssimo atualmente, uma vez que a idéia de “estado mínimo” tem sido vendida como condicio sine qua non para os investimentos econômicos em certos lugares.

Dialogicidade e respeito à alteridade

A pesquisa teológica, sobretudo a exegética, vem demonstrando o quanto a Bíblia é produto de diálogos interculturais. Não poderia ser diferente. Como expressão de uma determinada cultura, e em comum com todas as culturas, os diálogos, as aproximações e apropriações, os sincretismos e os tensionamentos, também estão implicados na formação da Bíblia como texto religioso. Não há cultura que baste a si mesma. A dialogicidade e a presença da alteridade chegam aparecer de forma nua nos textos bíblicos. Abraão, patriarca da fé de Israel, é um caananita. Outra caananita entra na genealogia de Jesus. Códigos religiosos e legais explicitamente pertencentes a outras culturas, são apropriados por Israel e anexados à sua vida social e religiosa. Gêneros literários amplamente presentes nas culturas do entorno dão forma aos escritos judaicos presentes no Antigo Testamento. A própria atitude Jesus frente a elementos de culturas vizinhas pode ser compreendida como expressão de dialogicidade e de respeito à alteridade.

Dialogicidade e respeito à alteridade só são possíveis onde existe plena consciência dos próprios limites e imperfeições. Do contrário, para que dialogar e ouvir o outro quando estou convencido de minha perfeição e impecabilidade? Dialogicidade e respeito à alteridade, portanto, são prerrogativas do sujeito que é crítico, mas sobretudo autocrítico.

Dialogicidade e respeito à alteridade são bons critérios bíblico-teológicos na escolha de qualquer projeto político-partidário. De cara, isso exclui todos aqueles projetos governistas tipicamente sectários, formados por plataformas antidialógicas que mais lembram certas igrejas que propriamente partidos políticos. A capacidade de diálogo, por vezes de concessão mesmo, deve ser uma virtude política de primeira ordem. Aqui entra a necessidade de avaliação das alianças partidárias, tão incompreendidas e tão pouco aceitas por tanta gente. De fato certas alianças políticas podem ser tacitamente vistas como inaceitáveis. Porém, avaliando a questão um pouco mais a fundo, a pluradidade ideológica que uma composição política pode proporcionar também pode funcionar como elemento de crítica constante dos projetos particulares de cada partido.

O papel da oposição, como tem mostrado reiteradamente a história, não é a crítica: é opor-se! Composições plurais e alianças partidárias, se não forem somente produto da vontade de franquear poderes e cargos, podem cumprir essa função da dialogicidade e da crítica, de que nenhum projeto político está isento.

Menos paternalismo e mais aposta no capital humano

Finalmente, também é permitido dizer que a Bíblia é um livro marcado por uma visão otimista no que diz respeito às potencialidades humanas. Mais do que isso, ela mesma é produto dessa realidade. Ela é produto de comunidades perseguidas, oprimidas, excluídas. Tendo sido produzida nessas condições de adversidade, é razoável que ela espose uma atitude otimista diante da vida. Na contramão de um preconceito muito comum e com cara de ciência, que infantiliza o crente por conta de sua fé, na Bíblia as situações de encorajamento do ser humano enquanto potencializador de sua própria história são abundantes. Acerca disso, Émille Durkheim reconheceu que o crente que “entrou em comunhão com Deus não é apenas uma pessoa que aceitou novas verdades sobre a vida. Além disso, ele é alguém que se tornou mais forte que as demais pessoas, e mais apta a conquistar as intempéries da vida”. Em palavras simples, diríamos que a fé, no lugar de alienar o ser humano, pode ser um elemento que potencializa suas virtudes latentes.

Que implicação isso pode ter na escolha de um projeto político-partidário? Não são justamente as ações assistencialistas as mais alardeadas na propaganda política como feitos inestimáveis de partidos e governos? O que pouca gente sabe é que a maioria dos programas assistencialistas são todos eles mantidos por “resíduos orçamentários”. Eles não compõem a prioridade orçamentária de nossas políticas públicas de assistência social. Precisaríamos inverter essa equação, e fazer das políticas ligadas a ações de formação humana uma prioridade orçamentária. Usando a metáfora do povo, esse critério bíblico-teológico nos identificaria com aqueles projetos político-partidários que privilegiassem o “ensinar a pescar” em relação ao “dar o peixe pronto”.

***

Difícil é ter esperança de encontrar projetos concretos que encarnem esses valores. Mas uma coisa é certa: guiar-se por esses critérios tem seu benefício prático. No mínino, eles nos ajudam a depurar projetos inconseqüentes e inconsistentes com nossa visão de mundo. No mais, talvez nos aproximem daquele que seja o menos pior (sic).

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

RESENHA DE "POR QUE A PSICANÁLISE?"


RESENHA DE

POR QUE A PSICANÁLISE?

de

Elisabeth Roudinesco

Elisabeth Roudinesco é francesa, historiadora e psicanalista, além de ser professora na Universidade de Paris-VII e vice-presidente da Sociedade Internacional de História da Psicanálise. É também autora de vários livros na área de história da psicanálise. Por que a psicanálise? teve sua primeira publicação na França em 1999, e foi publicado no Brasil no ano 2000 pela editora Jorge Zahar, tendo sido traduzido por Vera Ribeiro. A edição brasileira tem 168 páginas. A obra está dividida em três seções, cada qual contendo quatro capítulos, o que contabiliza o número final de doze capítulos.

Roudinesco conseguiu a difícil tarefa (nem sempre bem sucedida por inúmeros autores) de situar o grande público numa discussão de alto nível. Seu texto é fluente, simples e didático, facilitando em muito a compreensão das idéias nele desenvolvidas. Embora seu tema envolva aspectos técnicos como, por exemplo, a questão dos psicofármacos e os documentos norteadores da atuação clínica (como o DSM), sua linguagem é livre de tecnicismos, e em todo o tempo é nítida a preocupação de tornar a discussão acessível mesmo àqueles que nunca foram introduzidos na temática. A autora promove, além disso, uma franca discussão com posições antagônicas às suas, citando autores e obras que podem ser consultados a contento, evitando aquele diletantismo freqüente entre os intelectuais de afrontarem “conceitos puros”, sem discernir-lhes a fonte.

Em termos conteudísticos, a leitura das primeiras linhas deixa evidente que se trata de uma defesa da psicanálise. Seu livro pode ser resumido como uma tentativa de defesa da plausibilidade da teoria freudiana na contemporaneidade em meio ao imperialismo da indústria farmacológica e em meio a uma sociedade mais afeita aos tratamentos psíquicos de curto prazo. Nesse sentido, sua defesa da psicanálise é, por que não dizer, apaixonada. Toda sua argumentação caminha na direção da pergunta que marca o título do livro: por que a psicanálise? O esforço da autora consiste, portanto, em responder a essa questão da seguinte maneira: porque a psicanálise, a despeito das contestações que lhe vêm de diversas frentes, parte do pressuposto de que as desordens psíquicas devem ser tratadas a partir de suas causas mais profundas, sobretudo as inconscientes, não se conformando com a ação meramente paliativa de nível neuronal e farmacológico. Além desse centro em torno do qual gira esta obra, o leitor pode encontrar aí uma instigante reflexão sobre a situação da psicanálise nos dias atuais. É, portanto, um ótimo texto introdutório que contribui tanto para aqueles que já lidam profissionalmente com essa ciência, quanto para aqueles que enfrentam agora o período de formação teórica nessa área, assim como para aqueles que nunca tiveram iniciação formal com ela, mas interessam-se na questão de sua pertinência ou impertinência. Sem dúvida, é um livro obrigatório para todos os que se interessam nos dilemas mais profundos pelos quais tem de passar o ser humano.

Se Zygmunt Bauman estiver correto quanto adjetiva esse período histórico como tempos líquidos e como modernidade líquida, os desafios que se põem frente à psicanálise descritos por Roudinesco, embora sejam enormes, não deverão surpreender a ninguém. É verdade que nossos tempos são marcados pela fluidez e pela volatilidade de todos os valores, alimentados pela terrível inclinação ao imediatismo como marca de um ser inquieto e ansioso. Na sociedade de consumo, onde os desejos humanos são regulados pelas demandas do mercado, perdem sentido as experiências de profundidade, sobretudo quando se trata das questões mais íntimas da subjetividade humana. Esses tempos trazem como marca a satisfação rápida e contínua de uma torrente de desejos que não cessam de se renovar ao toque de caixa do mercado. Em outras palavras, o atual centro regulador da maioria das atividades humanas – o mercado –, coopta aos seus interesses todas as necessidades e carências da experiência pessoal, mormente nas sociedades ocidentais.

A meu ver, Roudinesco oferece uma pertinente avaliação das razões estritamente científicas de contestação da indústria farmacológica à psicanálise. No entanto, penso que as razões dessa contestação podem ser lidas também à luz dos entraves político-econômicos que marcam esse período**. É preciso afirmar, portanto, que o imperialismo dos psicofármacos é mais uma expressão de uma interessante amálgama produzida pelas imposições do capital. Essa amálgama envolve aspectos antropológicos, sobretudo quando se dirige ao homem cujo ser é definido pela capacidade de consumo e pela fluidez de toda experiência, além de envolver aspectos econômicos, quando se trata de sustentar uma indústria que vive à base daquela antropologia. Em outras palavras, a indústria medicamentosa sobrevive e se alimenta de uma imagem de homem que o mercado produz: inquieto, ansioso, consumista e imediatista. Dessa forma, elementos antropológicos e econômicos estão totalmente imbricados.

Que outros epítetos poderia ter um saber como a psicanálise nesse contexto? Como não poderia ser adjetivada de anacrônica e ultrapassada nessa sociedade líquida, marcada pelo consumo, pelo imediatismo e pela superficialidade? Como poderia insistir no seu discurso clássico de lidar com as bases mais profundas do ser humano, quando este só reconhece como pertinente as experiências voláteis que se lhe apresentam um dia após o outro? Como poderia sobreviver em paz se não corrobora essa imagem antropológica do homo consumens, e se não corrobora a manutenção de um dos braços do capital – a psicofarmacologia? Não resta dúvida de que esses são tempos decisivos para a sobrevivência desse saber profundamente identificado com o ser humano, sobretudo com suas questões mais íntimas e profundas, negadas vilmente por nossa atual conjuntura.

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ROUDINESCO, Elisabeth (2000). Por que a psicanálise? Tradução de Vera Ribeiro, Rio de Janeiro: Jorge Zahar


** Mas também é verdade que a autora tenha sinalizado ligeiramente este aspecto, e que essa discussão não tenha sido o foco de seu livro.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

EDUCAR PARA A COMPLEXIDADE


Diálogos sobre epistemologia e pedagogia com Edgar Morin

“Ora, cultura não é saber tudo sobre um pequeno ponto. Tampouco é saber pequenos pontos sobre tudo, como geralmente é o caso das pessoas que se dizem cultas. A cultura é uma argamassa, um cimento que permite construir sentido integrando conhecimentos”

Joël de Rosnay

INTRODUÇÃO

A proposta de Edgar Morin de repensar as bases para uma educação cidadã é o assunto deste texto. Morin, em sua vasta trajetória intelectual como sociólogo, literato e filósofo, aparece também como um dos principais nomes da pedagogia dos séculos XX e XXI. Entretanto, neste trabalho tratar-se-á em forma de “notas” acerca de suas últimas preocupações, que dizem respeito à reforma da educação. A reforma da educação não é tema novo, embora permaneça sempre relevante, uma vez que, ao que tudo indica, uma reforma educacional de dimensões paradigmáticas ainda não tenha sido efetivada. Essa reforma só poderá ser viável se se questionar seu fundamento, isto é, o paradigma epistemológico que está por trás, que, como se verá, caracteriza-se por ser reducionista e mecanicista.

A questão de base que move essas reflexões é a seguinte: como a educação pode contribuir para uma formação cidadã? Inevitavelmente aparecem outras questões como: por que a educação atual não consegue influenciar os comportamentos dos indivíduos?; qual a razão de grande porcentagem de indivíduos que possuem auto nível educacional apresentarem comportamentos tão reprováveis?; qual a razão do fosso entre educação e ética (pessoal e planetária)? Essas são questões que têm inquietado Edgar Morin, e às quais tem dedicado suas últimas reflexões.

Neste trabalho, o primeiro passo consistirá em tentar compreender qual a razão de ser do paradigma epistemológico-científico que rege a atual forma de pensar, já que a educação tende a obedecer e a tomar esse paradigma como modelo e como método. Não parece haver dúvidas quanto ao fato de que a forma de pensar a realidade que norteia a epistemologia científica atual tem suas bases na Revolução Científica iniciada nos séculos XVII e XVIII, cujos maiores nomes são o de Renè Descartes e Isaac Newton. Como principal legado dessa revolução, tem-se uma visão o mundo que é, ao mesmo tempo, reducionista e mecanicista. O segundo passo deste trabalho consistirá apresentar a crítica que Edgar Morin tem feito à educação assentada sob a visão reducionista dos objetos de estudo. Trata-se de contrapor a epistemologia reducionista à epistemologia da complexidade, que apreende os objetos sempre em seu contexto, já que complexo, como se verá, “é aquilo que é tecido junto”. Enfim, o último passo consistirá em listar aqueles que Morin considera serem os principais desafios com os quais deve se defrontar a educação do futuro, em vistas de sua contribuição à construção de um compromisso ético e planetário.

1. ROMPENDO COM O PARADIGMA EPISTEMOLÓGICO VIGENTE

Há alguns anos, a forma tradicional de compreensão da realidade vem sendo colocada em revisão por teóricos das diversas áreas. Os principais acontecimentos que marcaram o século XX – tais como as grandes guerras, os grandes desastres nucleares, a disseminação de doenças incuráveis em nível global, o alargamento sempre crescente do fosso que separa os países ricos dos países pobres, etc. – têm forçado a uma radical revisão dos conceitos que se encontram na base da maneira ocidental de construir a realidade. Trata-se, dito de forma objetiva, de uma revisão das bases epistemológicas da atual cultura. Tal revisão tem sido executada não apenas com base na apreciação do passado, mas, mais ainda a partir das perspectivas futuras, que apontam para uma situação de total apreensão no que diz respeito à presença humana no planeta.

Onde estariam as bases que moldaram a compreensão de mundo que se tornou hegemônica no Ocidente? De onde decorre a crise de percepção da atualidade? Qual a origem da atual forma de pensamento, valores e percepções que prevalecem na atual visão do mundo? Para Moraes (1997, p. 32),

tais valores decorrem de uma associação de várias correntes de pensamentos da cultura ocidental, dentre elas a Revolução Científica, o Iluminismo e a Revolução Industrial, que estiveram presentes a partir dos séculos XVII, XVIII e XIX. As idéias iniciais, que muito influenciaram a era moderna, foram formuladas nos séculos XVI, XVII e XVIII.

Como não é pretensão deste trabalho debater profundamente o legado do referido período acima à cosmovisão ocidental atual, há que se dizer que na revolução Científica, especialmente em Descartes e Newton, estão os principais elementos geradores da atual forma de compreensão científica da realidade. O legado cartesiano pode ser elucidado em termos de reducionismo. O de Newton em termos de mecanicismo. Uma vez que a abordagem desse texto refere-se à educação atual, basta elucidar o legado cartesiano, já que a atual educação está, por assim dizer, profundamente influenciada por esse mesmo legado reducionista.

À guisa de recordação, vale mencionar as proposições cartesianas que marcam o início de uma nova epistemologia, e marcam ainda o início de uma nova abordagem científica. Tais proposições coincidem com o segundo e o terceiro procedimento metódico que, de acordo com Descartes (2000, p. 49-50), conduziriam a um conhecimento assegurado pela razão, e, em conseqüência disso, claro e evidente:

[1] repartir cada uma das dificuldades que eu analisasse em tantas quantas fossem possíveis e necessárias a fim de melhor solucioná-las; [2] Conduzir por ordem meus pensamentos, iniciando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, para elevar-me, pouco a pouco, como galgando por degraus, até o conhecimento dos mais compostos, e presumindo até mesmo uma ordem entre os que não se precedem naturalmente uns aos outros.

De acordo com Morin (loc. cit.), em [1] encontra-se o “princípio de divisão”, enquanto em [2] encontra-se o “princípio de redução”, princípios esses que regeriam a consciência científica. Divisão e redução teriam sido dois dos principais legados da Revolução Científica que estariam presentes até o momento atual na forma ocidental de apreensão científica da realidade. De acordo que esses princípios, faz-se necessário dividir para conhecer melhor. O conhecimento é obtido a partir do conhecimento das partes. Daí decorre a necessidade de compartimentação dos saberes, tão questionada por Edgar Morin, como será elucidada mais adiante. Fritjof Capra (1999) mostrou num excelente trabalho como tal legado divisionista-reducionista-cartesiano moldou algumas áreas do saber contemporâneo. Nesse mesmo trabalho, Capra trata de mostrar aquilo que, segundo ele, teriam sido as conseqüências de tal legado[1]. Em Ponto de mutação encontra-se uma acintosa crítica ao modelo biomédico, à psicologia (que ele chama de “newtoniana”), e ao sistema econômico, todos, segundo ele, profundamente marcados pela concepção reducionista e mecanicista da realidade[2].

No que tange à de educação, quais os pontos a serem considerados como legados do pensamento divisionista-reducionista-cartesiano? Em termos de paradigma educacional, quais os pontos passíveis de crítica e revisão? A avaliação que Morin tem feito da forma tradicional da compreensão da realidade é levada a cabo pelo que ele tem chamado de “pensamento complexo” (ou teoria da complexidade, ou ainda epistemologia complexa). Mas, o que pretenderia a complexidade? Pretenderia ser uma substituição do paradigma epistemológico vigente? Edgar Morin (2002, p. 559) responde que “a complexidade é um problema, é um desafio, e não uma resposta”. Morin deixa transparecer que para que se compreenda a complexidade é necessário que se volte até Pascal:

Sendo todas as coisas causadas e causadoras, ajudadas e ajudantes, mediatas e imediatas, e sustentando-se todas as coisas por um elo natural e invisível que une as mais distantes e as mais diferentes, considero ser impossível conhecer as partes sem conhecer o todo, tampouco conhecer o todo sem conhecer particularmente as partes (apud Morin, 2003, p. 37).

O termo “complexo”, que tem em sua acepção corriqueira o sentido de difícil, complicado, embaraçado, intrincado, na acepção atribuída por Morin ganha outro significado. “Complexo”, na acepção privilegiada por Morin, refere-se “ao que está ligado, o que está tecido junto”. Resumidamente, pode-se dizer que o conhecimento complexo seria aquele que privilegia a inter-relação entre todas as coisas, tal como se pode apreender no princípio de Pascal, uma vez que as partes e o todo se encontram intimamente associados e não podem ser apreendidos fora de seu contexto. O conhecimento complexo seria aquele que privilegia a inter-relação entre o sujeito cognoscente e o objeto cognoscível, separados pela metodologia científica de Descartes, o que acabou por impregnar a atual epistemologia científica e educacional. A complexidade teria diante de si um macro-desafio paradigmático que consiste em repensar, em termos de epistemologia científica, quatro grandes meios pelos quais, supostamente, os segredos da realidade são descortinados. Esses meios são o (1) princípio de ordem, (2) o princípio de separação (Descartes), (3) o princípio de redução (idem), e (4) a validade absoluta da lógica clássica. Além disso, Morin, neste último meio século de estudos, tem-se dedicado essencialmente às pesquisas que podem ser chamadas “sondagens de limiar”, ou melhor, sondagem dos “pontos de encontro/desencontro” entre diversas áreas do conhecimento (científicas, culturais, filosóficas, literárias, etc.), em busca de novas respostas que só uma “cabeça bem feita” (Montaigne) pode apreender.

No bojo do seu programa, os objetivos devem passar inevitavelmente pela educação. Na opinião de Coelho (2005, p. 2), “sem dúvida, uma das áreas em que o pensamento complexo (ou pensamento pós-formal) vem causando maior impacto é o da educação e do ensino”. Para Morin, a educação deve figurar como um dos instrumentos essenciais para a reforma do pensamento. Uma vez que a atual educação também se molda por concepções epistemológicas passíveis de revisão, há que se reformar também as estruturas educacionais. Uma de suas mais severas críticas à educação vigente dirige-se à tendência desta à fragmentação dos saberes, que, de acordo com Morin, ganha tom excessivo nas atuais especializações. É esse justamente o conteúdo da seção que se segue.

2. O DESAFIO DA RELIGAÇÃO DOS SABERES

No ano de 1998, a convite do ministro de educação da França – Claude Allègre –, Edgar Morin foi consultado a presidir um conselho científico consagrado a fazer sugestões para o ensino do segundo grau francês. Desse convite surgiu a idéia de uma série de oito jornadas temáticas integradas envolvendo diversos campos do saber, efetivadas sob esses temas: o mundo; a Terra; a vida; a humanidade; línguas, civilizações, literatura, artes, cinema; a história; as culturas adolescentes; e a religação dos saberes[3].

De acordo com Morin (2002), essas jornadas temáticas deveriam se prestar aos seguintes desafios: (1) o desafio da globalidade, uma vez que para ele, há uma inadequação cada vez mais ampla, profunda e grave entre um saber fragmentado em elementos desconjuntados e compartimentado nas disciplinas de um lado e, de outro, entre as realidades multidimensionais, globais, transacionais, planetárias e os problemas cada vez mais transversais, polidisciplinares e até mesmo transdisciplinares; (2) a não-pertinência do atual modo de conhecimento e de ensino, que leva a separar os objetos de seu meio, as disciplinas umas das outras e a não reunir aquilo que faz parte de um mesmo tecido, isto é, “o complexo”.

O tipo de conhecimento que se impôs, marcado essencialmente pela tendência à fragmentação, na opinião do nosso Autor, cria uma inteligência que espedaça o complexo do mundo em fragmentos desconjuntados. Assim, segundo ele, quanto mais os problemas se tornam multidimensionais, maior é a incapacidade de pensar sua multidimensionalidade; quanto mais eles se tornam planetários, menos são pensados enquanto tais. Para Morin, esse tipo de inteligência, incapaz de encarar o contexto e o complexo planetário, torna-se cega e irresponsável. Essa nova abordagem epistemológica e educativa – a que é guiada pela complexidade – visa favorecer o que segundo Morin se trata de uma aptidão natural do espírito humano a contextualizar e a globalizar, isto é, a relacionar cada informação e cada conhecimento em seu devido contexto. O saber fragmentado seria um saber incapaz de oferecer sentido ou interesse, ao passo que um saber devidamente articulado com o complexo do mundo torna-se relevante e interessante. Dessa forma, a educação pode se tornar um excelente porta-voz para esse novo tipo de conhecimento. A religação dos saberes torna-se para ela um imperativo:

Aqui devemos insistir sobre este aspecto fundamental da missão do ensino, que é favorecer a aptidão do espírito a contextualizar e a globalizar, ainda mais que tanto é verdade que todos os problemas a serem encontrados pelos cidadãos do novo milênio necessitarão, cada vez mais, de uma passarela permanente levando os saberes particulares ao conhecimento global (Morin, op. cit., p. 21).

Morin adverte que a tendência atual às hiperespecializações[4] impede a inteligência de ver o global, assim como o essencial. A educação atual, em lugar de corrigir esse procedimento “antinatural”, tem tomado esse modelo epistemológico como referencial, obedecendo a ele. Na escola primária ensinar-se-ia a isolar os objetos de seu meio ambiente, a separar as disciplinas em vez de reconhecer suas correlações, a dissociar os problemas em vez de reuni-los e integrá-los. Os efeitos desse procedimento epistemológico-pedagógico seriam percebidos na dinâmica social em termos de (1) enfraquecimento cívico, uma vez que cada um tenderia a ser responsável apenas por sua tarefa especializada, desprezando assim seu elo orgânico com o todo; (2) déficit demográfico crescente, ocasionado pela apropriação de um número crescente de problemas vitais pelos experts, especialistas e técnicos; (3) e o que ele chama de “esoterização” do saber, na medida em que o conhecimento técnico se torna acessível somente aos especialistas.

Edgar Morin aponta como um dos fatores principais que ajudaram na gestação de um conhecimento cada vez mais disjuntivo e menos integrador, a grande ruptura que se estabeleceu na Modernidade entre a cultura científica e a cultura das humanidades. É bem verdade que esses dois pólos encontram-se, eles mesmos, marcados pela compartimentação disciplinar excessiva. A cultura científica, mais que a das humanidades, se embrenhou numa série de sub-ramificações com vida própria, isoladas quase que por completo do seu contexto global. Entretanto, nosso Autor observa que no lado da cultura científica tem havido um esboço de integração de saberes em algumas áreas, nas chamadas “ciências sistêmicas”: a Ecologia, as ciências da Terra, e a Cosmologia. Ele acredita que ambos os seguimentos, assim como as disciplinas que os compõem, podem e devem ser mobilizadas de modo a convergir para a condição humana. A “condição humana”, assim como a necessidade de reflexão acerca das questões vitais e morais que tocam o homem de hoje, seria uma espécie de “critério unificador” para uma nova epistemologia pedagógica pertinente, e adequada para a inclinação natural do homem para integrar os conhecimentos em redes de conexão contextuais e contextualizadoras. Seu ponto de vista leva-o a concluir que

(...) o ensino pode tentar, eficientemente, promover a convergência das ciências naturais, das ciências humanas, da cultura das humanidades e da Filosofia para a condição humana. Seria possível, daí em diante, chegar a uma tomada de consciência da coletividade do destino próprio de nossa era planetária, onde todos os humanos são confrontados com os mesmos problemas vitais e morais (idem, p. 46).

O projeto de reforma do pensamento, e conseqüentemente da educação, como propõe Edgar Morin, não podem ser interpretados com fins em si mesmos. Antes, suas conferências pelo planeta, bem como sua produção literária, deixam transparecer a realidade de que a irrupção do pensamento complexo é apenas um meio para outro fim, que diz respeito às condições mais favoráveis da presença humana da Terra. Trata-se, no fundo, de um macro-projeto humanitário fortemente norteado pela ética do humano e pela ética planetária. Guiado por esses ideais, Morin acredita que o pensamento disjuntivo (que em outras partes ele se refere como “falsa racionalidade”) é pertinente para tudo que se relaciona com as máquinas artificiais, mas ao mesmo tempo em que é incapaz de compreender a vida e o ser humano, mesmo na ilusão de ser o único pensamento racional. “A insuficiência dessa falsa racionalidade”, afirma, “para lidar com problemas mais graves constituiu um dos mais graves problemas para a humanidade” (2003, p.45). Disso resultaria o seguinte paradoxo: que o século XX produziu avanços gigantescos em todas as áreas do conhecimento científico, assim como em todos os campos da técnica, ao mesmo tempo em que também produziu nova cegueira para os problemas globais, fundamentais e complexos.

A abertura ao debate é colocada na pergunta: “não deveria o novo século se emancipar do controle da racionalidade mutilada e mutiladora, a fim de que a mente humana pudesse, enfim, controlá-la?” (loc. cit.). A tarefa da religação dos saberes na busca por um conhecimento pertinente, isto é, aquele conhecimento que não separa “aquilo que é tecido junto”, trata-se apenas de um dos grandes desafios que Morin apresenta à educação das próximas gerações. Superar a anomalia do modelo disciplinar exacerbado nas hiperespecializações, fechadas em si mesmas e cegas para o complexo planetário, constitui-se tão-somente como um dentre os diversos “saberes necessários à educação no futuro”. Nelly Novaes Coelho (op. cit., p. 3) mostra que “no século XVIII, na crise da passagem do mundo clássico para o mundo romântico, Rousseau já dizia: ‘Nosso verdadeiro estudo é o da condição humana’”. Tal afirmação é retomada por Morin, no sentido de realçar os desafios do novo paradigma educacional emergente. Esses desafios, todos perpassados pela necessidade da construção de novas relações humanitárias e planetárias, será o tópico da seção seguinte.

3. OS DESAFIOS DA “EDUCAÇÃO PARA A COMPLEXIDADE”

Esses desafios que serão aqui apresentados fazem parte do programa de reestruturação dos pressupostos do conhecimento e consequentemente da educação. Não que a educação tenha que antes se reformar para após estar apta a enfrentar esses desafios. A reforma do aparelho educacional se dá justamente no meio desse processo de tomar para si esses desafios que aqui serão expostos. De outra forma, é assumindo para si essas prerrogativas que a educação poderá servir como meio para o estabelecimento de novas relações éticas, humanizadoras e planetárias.

Em 1999, por iniciativa da UNESCO, e do seu então presidente, Federico Mayor, Morin foi solicitado a sistematizar um conjunto de reflexões que servissem como ponto de partida para se repensar a educação no terceiro milênio. Desse projeto resultou o trabalho, cujo título é Les sept savoirs nécessaires à l'éducation du futur[5]. Esse trabalho representa uma espécie de síntese acerca das reflexões que Morin vem fazendo sobre a reforma do aparelho educacional e seu respectivo papel na construção de uma melhor vivência humana. Para Morin, existem sete pontos passíveis de serem assumidos pela educação do futuro, frente aos quais ela não pode mais se esquivar.

Ele nomeia de cegueiras do conhecimento: o erro e a ilusão (Morin, 2003, p. 19) ao primeiro desafio-saber. Para o nosso autor, é impressionante que a educação que visa transmitir conhecimentos seja cega quanto ao que é o conhecimento humano, seus dispositivos, enfermidades, dificuldades, tendências ao erro e à ilusão, e não se preocupe em fazer adquirir o conhecimento do conhecimento[6]. Nas palavras do próprio Morin (op.cit. p. 14)

de fato, o conhecimento não pode ser considerado uma ferramenta ready made, que pode ser utilizada sem que sua natureza seja examinada. Da mesma forma, o conhecimento do conhecimento deve aparecer como necessidade primeira, que serviria de preparação para enfrentar os riscos permanentes do erro e da ilusão, que não cessam de parasitar a mente humana. Trata-se de armar cada mente no combate vital rumo à lucidez.

Consequentemente, seria necessário introduzir e desenvolver na educação o estudo das características cerebrais, mentais, culturais dos conhecimentos humanos, de seus processos e modalidades, das disposições tanto psíquicas quanto culturais que conduzem ao erro e à ilusão.

O segundo desafio-saber que deve estar subjacente à uma educação para o conhecimento do complexo, Morin chama de os princípios do conhecimento pertinente (idem, p. 35), que dizem respeito à necessidade que a educação tem de contribuir com a tendência natural de captar a complexidade das coisas, situando todo conhecimento no todo, no seu devido contexto. Decorre então que o terceiro desafio seja o de ensinar a condição humana (idem, p. 47). Morin faz lembrar que o ser humano é, a um só tempo, físico, biológico, psíquico, cultural, social e histórico. Essa unidade complexa da natureza humana vem sendo, para ele, totalmente desintegrada na educação atual por meio das disciplinas, tendo-se por impossível apreender o que significa o ser humano. Seria preciso restaurá-la, de modo que cada um, onde quer que se encontre, tome conhecimento e consciência, ao mesmo tempo, de sua identidade complexa e de sua identidade comum a todos os outros humanos. Desse modo, a condição humana deveria ser o objeto essencial de todo ensino.

O quarto desafio-saber apontado por Morin trata de ensinar a identidade terrena (idem, p. 63). Ele parte da afirmação de que o destino planetário do gênero humano é uma realidade até agora ignorada pela educação. O conhecimento dos desenvolvimentos da era planetária, que tendem a crescer no século XXI, e o reconhecimento da identidade terrena, que, segundo ele, se tornará cada vez mais indispensável para cada um e para todos, devem converter-se um dos principais objetivos da educação. Para ele, será preciso indicar o complexo de crise planetária que marcou o século XX, mostrando que todos os seres humanos, confrontados de agora em diante com os mesmos problemas de vida e de morte, partilham um destino comum.

O quinto desafio-saber seria o de enfrentar as incertezas (idem, p. 79). Morin observa que as ciências permitiram que adquiríssemos muitas certezas, mas igualmente revelaram ao longo do século XX inúmeras zona de incerteza. Em sua opinião, a educação deveria incluir o ensino das incertezas que surgiram nas ciências físicas (microfísicas, termodinâmica, cosmologia), nas ciências da evolução biológica e nas ciências históricas[7]. Pare ele (idem, p. 16)

seria preciso ensinar princípios de estratégia que permitiriam enfrentar os imprevistos, o inesperado e a incerteza, e modificar seu desenvolvimento, em virtude das informações adquiridas ao longo do tempo. É preciso aprender a navegar em um oceano de incertezas em meio a um arquipélago de certeza[8].

Morin (loc. cit) adverte que nesse tocante, a fórmula do poeta grego Eurípedes permanece bastante atual: “O esperado não se cumpre, e ao inesperado um deus abre o caminho”. O abandono das concepções deterministas da história humana que acreditavam poder predizer o futuro, o estudo dos grandes acontecimentos e desastres do século XX, todos inesperados, o caráter desconhecido da natureza humana devem incitar a preparar as mentes para esperar o inesperado, e para enfrentá-lo. Morin ainda alerta para o fato de que é necessário que todos os que se ocupam da educação constituam a vanguarda ante as incertezas desses tempos.

Ensinar a compreensão (idem, p. 93) aparece como o sexto desafio-saber para a educação nos moldes da complexidade. Nesse esquema, a compreensão é, a um só tempo, meio e fim da comunicação humana. Contudo, Morin observa que a educação para a compreensão está ausente do ensino. O planeta necessitaria de compreensão mútua, em todos os sentidos. Considerando a importância da educação para a compreensão entre os homens, em todos os níveis educativos e em todas as idades, o desenvolvimento da compreensão pede, segundo ele, a reforma do pensamento. Aqui, a educação deveria contribuir para que as relações humanas pudessem superar sua condição bárbara de incompreensão. Para Morin, isso constituiria uma das bases mais seguras da “educação para a paz”, à qual, segundo ele, o ser humano está ligado por essência e vocação.

Enfim, o sétimo desafio-saber para a educação do futuro seria a pedra de toque de todo programa moriniano para a educação: a ética do gênero humano (idem, p. 105). Neste desafio, a educação deve conduzir à “antropo-ética”. Deve levar em conta o tríplice caráter da condição humana, que é ser ao mesmo tempo indivíduo/sociedade/espécie. A ética aqui não poderia ser ensinada por meio de lições de moral. Antes, deve formar-se nas mentes com base na consciência de que o humano é, ao mesmo tempo, indivíduo, parte da sociedade, e parte da espécie. Desse modo, todo desenvolvimento verdadeiramente humano deveria compreender o desenvolvimento conjunto das autonomias individuais, das participações comunitárias e da consciência de pertencer à espécie humana. Partindo disso, Morin (idem, p. 27-18) demonstra que

esboçam-se duas grandes finalidades ético-políticas do novo milênio: [1] estabelecer uma relação de controle mútuo entre a sociedade e os indivíduos pela democracia e [2] conceber a Humanidade como comunidade planetária. A educação deve contribuir não somente para a tomada de consciência de nossa Terra-Pátria, mas também permitir que esta consciência se traduza em vontade de realizar a cidadania terrena.

Resumidamente, e na linha da linguagem moriniana, pode-se dizer que o desafio da “educação complexa” é mais paradigmático que programático. Não é possível uma reforma da educação sem uma reforma do pensamento, ao tempo em que também não é possível uma reforma do pensamento sem uma reforma da educação. A proposta de Morin é que a política pedagógica se converta em um instrumento que conduza os estudantes a um diálogo criativo com as dúvidas e interrogações deste tempo, o que é condição necessária para uma formação mais cidadã. Mais que isso, a pedagogia da complexidade quer educar os educadores de modo mais sistêmico, isto é, gerar intelectuais polivalentes, abertos, capazes de refletir sobre a cultura em sentido amplo. A proposta da complexidade traz em si a advertência de que não se pode mais ignorar a urgência de universalização da cidadania, que, por sua vez, requer uma nova ética, e, por conseguinte, uma nova escola e cidadania para todos.

CONCLUSÃO

Esse trabalho consistiu em debater a proposta de Edgar Morin para uma reforma da educação, nos moldes de sua “teoria da complexidade”. No primeiro momento, tentou-se elucidar aquilo que, supostamente, se encontra nas bases da atual forma científica de compreender a realidade. Trata-se do paradigma divisionista-reducionista-mecanicista, legado pelas figuras de Descartes e Newton, a partir da Revolução Científica iniciada no século XVII. Em seguida, tratou-se de apresentar a crítica de Morin à educação atual que toma o paradigma acima como referencial teórico. Neste capítulo surgiu a proposta de uma educação nos moldes da complexidade, em detrimento da educação que fragmenta os saberes. O último passo consistiu em apresentar o que Morin considera serem os principais desafios que a educação tem no futuro, em vista de uma formação mais humanizadora e mais ética.

O presente texto não teve a intenção, sob hipótese alguma, de esgotar o conteúdo das reflexões de Edgar Morin acerca da educação atual. O alcance das contribuições de Morin à educação deste tempo exigiria um trabalho muito mais abrangente, e consequentemente maior. Por isso, o balanço a que se chega nesta conclusão envolve dois aspectos que devem ser considerados de maneira complementar: por um lado, e negativamente, tem-se o fato da abordagem de um problema tão amplo, feito de forma tão resumida e abreviada; por outro lado, e positivamente, aparece o fato de que a forma abreviada como foi abordado esse tema levanta novos problemas e serve de introdução a estudos mais aprofundados acerca dessa mesma problemática.

Na linha de Edgar Morin, há que se concluir dizendo que o assunto permanece em aberto. As respostas não são conclusivas, uma vez que muitas outras questões aparecem inevitavelmente a partir da proposta do nosso Autor. Algumas delas poderiam ser: quem educará os educadores com vistas à educação no modelo da complexidade? Dentre os métodos pedagógicos que tentam articular os conhecimentos – como a interdisciplinaridade, a polidisciplinaridade e a transdisciplinaridade – qual deles é o mais viável à educação do futuro? Como pensar o desafio da construção de um conhecimento pertinente em meio à desmedida profusão de informações a que são submetidos os estudantes, seja pela escola, seja pela Internet, ou por outros meios?

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

ALVES, Rubem. Filosofia da ciência – Introdução ao jogo e suas regras. 7ª edição, São Paulo: Loyola, 2003

BOFF, Leonardo. O despertar da águia: o dia-bólico e o sim-bólico na construção da realidade. Petrópolis: Vozes, 1998

CAPRA, Fritjof. Ponto de mutação: a ciência, a sociedade e a cultura emergente. Tradução de Pierre Weil, São Paulo: Cultrix, 1999

COELHO, Nelly Novaes. WWW

DESCARTES, Renè. O discurso do método: Coleção "Os Pensadores". 3ª edição, tradução de Enrico Corvisieri, São Paulo: Abril Cultural, 2000

MORAES, Maria Cândida. O paradigma educacional emergente. Campinas: Papirus, 1997

MORIN, Edgar. A cabeça bem feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. 10ª edição, tradução de Eloá Jacobina, Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004

__________ (org.). A religação dos saberes: o desafio do século XXI. 3ª edição, tradução de Edgar Assis carvalho, Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002

__________. O método – As idéias: o conhecimento do conhecimento. Tradução de Jeanne Sawaya, Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997, vol. 3

__________. Os sete saberes necessários à educação do futuro. 8ª edição, tradução de Catarina Eleonora F. da Silva, Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003


[1] Há que se lembrar, entretanto, que Capra critica a forma de compreensão que rege a epistemologia científica atual, não apenas a partir do legado divisionista-reducionista-cartesiano, mas também a partir do legado mecanicista-newtoniano. Além do mais, na contramão da proposta defendida por Edgar Morin, que consiste no que o mesmo tem chamado de “conhecimento complexo”, que faz o movimento das partes para o todo e do todo para as partes, Capra caminha na abordagem holística, que privilegia o todo em detrimento das partes.

[2] A propósito de aprofundamento, cf. CAPRA, Fritjof. O ponto de mutação – A ciência, a sociedade e a cultura emergente. São Paulo: Cultrix, 1999, p. 93-255.

[3] Essas jornadas temáticas foram posteriormente publicadas em um volume, com a colaboração do Ministério da Educação, Pesquisa e Tecnologia da França, do Le Monde de l’education, da Associação para o pensamento complexo (ACP-Paris), do Mecenato Carrefour e da Universidade Cândido Mendes (Rio de Janeiro), sob o título Relier les Connaissances, e que em sua edição brasileira, pela Bertrand Brasil, apareceu sob o título A religação dos saberes: o desafio do século XXI.

[4] Por “hiperespecialização” o autor nos remete a um tipo de especialização fechada em si mesma, sem permitir sua integração em uma problemática global ou em uma concepção de conjunto do objeto do qual ela considera apenas um aspecto ou uma parte. Mais adiante, ele apontará mais detalhadamente para os perigos da hiperespecialização nos seguintes termos: “(...) o pesquisador corre o risco de ‘coisificação’ do objeto estudado, do qual se corre o risco de esquecer que é destacado ou construído. O objeto da disciplina será percebido, então, como uma coisa auto-suficiente; as ligações e solidariedades desse objeto com os outros objetos estudados por outras disciplinas serão negligenciadas, assim como as ligações e solidariedades com o universo do qual ele faz parte” (idem, p. 106).

[5] No Brasil essa obra apareceu sob o título Os sete saberes necessários à educação do futuro, publicada pela editora Cortez, que serve de base para este capítulo.

[6] A propósito de um aprofundamento da temática específica do conhecimento do conhecimento, cf. do mesmo autor O método - As idéias: o conhecimento do conhecimento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997, vol. 3.

[7] Uma interessante reflexão acerca dessas incertezas enquanto resultado das descobertas científicas no século XX foi realizada por Leonardo Boff. Aqui seguem algumas de suas observações: “Analistas, especialmente vindos da biologia, das ciências da Terra e da cosmologia, nos advertem que o tempo atual se assemelha muito às épocas de grande ruptura no processo da evolução, épocas caracterizadas por extinções em massa. Efetivamente, a humanidade se encontra diante de uma situação inaudita. Deve decidir se quer continuar a viver ou se escolhe sua própria autodestruição. O risco não vem de alguma ameaça cósmica, (...) vem da própria atividade humana”. Para mais detalhes, cf. BOFF, Leonardo. O despertar da águia: o dia-bólico e o sim-bólico na construção da realidade. 14ª edição, Petrópolis: Vozes, 1998, p.25-45.

[8] Grifo nosso.