segunda-feira, 22 de agosto de 2011

QUANDO A BÍBLIA É A PALAVRA DO DIABO HUMANO


Com certeza, o problema da forma com que a maioria dos evangélicos brasileiros interpreta a Bíblia, não é o fato de a interpretarem literalmente. Mas é o fato de que interpretam “alguns” textos de forma literal, em detrimento de outros. Em outras palavras, o problema não está na literalidade, mas na seletividade.
Infelizmente, a seletividade de textos que devem ser lidos de forma literal, sempre produz exigências a serem feitas aos outros. Ao mesmo tempo, os textos que são interpretados com mais leveza, com mais flexibilidade, à luz de recursos de contextualização, são aqueles que os intérpretes avaliam a si mesmos. Seria esse um comportamento honesto?
Um exemplo.
Os novos embates entre líderes da comunidade evangélica brasileira e os homossexuais dão testemunho inequívoco disso. Contra essa comunidade de pessoas, os fundamentos bíblicos são buscados em seis passagens consideradas como palavras absolutas de Deus: Genesis 19,1-29; Levítico 18,22 e 20,13; Romanos 1,18-25; 1ª Coríntios  6,9; e 1ª Timóteo 1,10. Com tais passagens bíblicas, lidas literalmente, os outros são confrontados no seu modo de ser, sem a mínima possibilidade de que tais passagens sejam flexibilizadas por recursos hermenêuticos de contextualização.
Sendo palavras absolutas de Deus, tais passagens conseguem mobilizar pessoas para campanhas, marchas, passeatas contra os ímpios e imorais que vivem um estilo de vida contrário a estas palavras sagradas. Em Alagoas, por exemplo, muitos líderes cristãos e pessoas de igreja sentiram-se mobilizadas a participar do evento evangélico que, no dia 1 de Julho de 2011em Brasília, se opôs à aprovação da PL-122.
De minha parte, decidi não mais me opor a isto. Isso porque me reconheço entre aqueles que lêem a Bíblia seletivamente. Eu também interpreto algumas passagens bíblicas de forma literal, em detrimento de outras. Na verdade, se isso for um problema hermenêutico, é um problema comum a toda comunidade cristã. Não há quem leia a Bíblia sem operar certa seletividade na hora de considerar literalmente este ou aquele texto. Quase sempre é a própria conveniência da pessoa que está em jogo, misturado à herança que cada um recebeu de sua tradição religiosa. E eu, como parte desse universo, também me reconheço como intérprete da Bíblia que não consegue escapar à idéia de que alguns textos devem ser lidos literalmente, enquanto outros não.
Então, a questão mais importante, a meu ver, seria a seguinte:
Por que não aplicar a interpretação literal de algumas passagens bíblicas também a nós mesmos? Por que somos tão implacáveis e inflexíveis no momento de ler certos textos de modo literal contra os outros, ao mesmo tempo em que aliviamos, metaforizamos ou contextualizamos certos textos bíblicos que diriam respeito a nós mesmos? Isso quando não nos esquecemos completamente de alguns deles!
Dois rápidos exemplos.
1.    Pensando no caso alagoano em especial, me pergunto o seguinte: se nós reconhecêssemos como palavra absoluta de Deus o texto de Mateus 25,31-40, teríamos ido protestar em Brasília contra a PL-122, ou teríamos ido protestar na Praça dos Martírios em Maceió, em frente ao gabinete do governador, pela situação das famílias alagoanas que há quatorze meses vivem desumanamente nas barracas de lona desde as enchentes do ano passado? Digo isto, porque Mateus 25,31-40 afirma que Jesus é os pobres, e que os pobres são o próprio Jesus. Isto não é palavra absoluta de Deus? Se é, por que não mobiliza ninguém? Seria por que, neste caso, ela não deve ser lida também de forma literal? Por quê?
2.    Penso no estilo de vida de muitos pastores. Muitos dos condenam com a Bíblia na mão os homossexuais, têm um estilo de vida caracterizado pelo conforto pessoal, pela luxúria, pelo acúmulo de dinheiro e de poder, pelos títulos acadêmicos e políticos de destaque na sociedade, pelo exibicionismo dos bens e das realizações. Por que não interpretarmos com a mesma intensidade literal usada nos textos usados contra os homossexuais, uma profusão de textos das Escrituras que condenam estes mesmos pecados?
Eu me envolverei nos embates contra a PL-122 no mesmo dia em que vir tais pastores interpretarem literalmente as advertências de Jesus contra o perigo das riquezas (Mt 19,23-30; Mc 10,23-31; Lc 18,24-30), aplicando-as a si mesmos.
Quem sabe, no dia em que o modo de ler Romanos 1,18-25 – texto que serve de suporte no Novo Testamento para reprovar o estilo de vida homossexual – for o mesmo modo de ler Mateus 19,16-22, em que Jesus põe como condição para o seu seguimento o esvaziamento de todas as riquezas pessoais.
Ou quem sabe no dia em que todas as passagens dirigidas contra os pastores, denunciando-lhes a forma leviana, desumana, desleixada, com que tratam suas “ovelhas” (Jeremias 23,1-4; Ezequiel 34,1-10), forem lidas com os mesmos caprichos literais a que estamos nos referindo.
Quem sabe, no dia em que as inúmeras passagens bíblicas que condenam as injustiças como a corrupção, a opressão aos pobres, o materialismo humano, tiverem o mesmo efeito de mobilização missionária que passagens como Romanos 1,18-25 têm para produzir marchas, paradas e protestos contra a PL-122. Em Alagoas, no dia em que eu vir essas passagens mobilizarem igrejas e pastores para passeatas contra a situação vergonhosa e calamitosa do povo dessa terra, eu me junto a qualquer outra manifestação baseada em leituras literais da Bíblia.
Minha conclusão disso tudo, portanto, é a seguinte:
A Bíblia nunca foi de fato palavra de Deus para tais pessoas. Se fosse, os textos que aqui apresentamos receberiam o mesmo tratamento daqueles usados contra os homossexuais, e as mobilizações contra as injustiças sociais seriam capítulos freqüentes de nossa história. Se a Bíblia fosse a palavra absoluta de Deus para os pastores, bispos e apóstolos, estes ostentariam modos de vida diferentes, assemelhando-se minimamente àquele pobre e simples camponês a quem chamam de “Senhor”.
A Bíblia, nestes casos, é somente um "livro-instrumento" usado por tais pessoas para dar fundamento aos preconceitos, às maquinações, à sede de poder, à ganância e à soberba que habitam seus corações. Assim, em lugar de ser a palavra absoluta de Deus, ela acaba por se tornar a palavra maldita do Diabo Humano, sendo o que há de mais eficaz quando se trata de espalhar rancores, aprofundar preconceitos e dividir as pessoas.


[Disponível também em http://www.novosdialogos.com/artigo.asp?id=658]

ANÁLISE TEOLÓGICO-PASTORAL DAS ENCHENTES EM ALAGOAS

Olá meus amigos e amigas!


Compartilho com vocês a discussão que propus no fórum Igreja & Sociedade 2011, da Igreja Batista do Pinheiro. O tema da mesa foi "Enchentes em Alagoas: uma leitura teológico-pastoral". Para assistir à minha palestra, clique aqui: http://www.ustream.tv/recorded/16780105


Se preferir ver todo o conteúdo da mesa, acesso o link: http://batistadopinheiro.blogspot.com/2011/08/forum-igreja-sociedade-2011-3-mesa.html


Grande abraço a todo mundo!

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

ESPIRITUALIDADE E CUIDADO DE SI EM FOUCAULT

Compartilho um trecho do livro Foucault: a coragem da verdade, onde o filósofo francês faz uma interessante distinção entre o papel da filosofia enquanto propositiva do conhecimento de si, e a espiritualidade enquanto propositiva do cuidado de si. Um pequeno canapé para quem gosta desses devaneios!


GROS, Frédéric (org). Foucault: a coragem da verdade. Trad. Marcos Marcionilio, 2ª edição, São Paulo: Parábola Editorial, 2004


***
Nas primeiras horas de aula, Foucault reconstituiu as origens históricas dos dois conceitos. Faz ver como, ao longo da historiografia filosófica, enquanto o conhecimento de si ganhou peso e privilégio, o cuidado de si foi em geral desconhecido e esquecido. Contudo, no nascimento filosófico dos dois conceitos -- momento que Foucault denomina de socrático-platônico -- a relação era, ao contrário, de primazia e precedência do cuidado de si sobre o conhecimento de si. Descreve, a partir da cuidadosa leitura de Platão, e incorporação filosófica dos dois conceitos, seus desdobramentos posteriores, os traços que caracterizam cada um. No final da primeira hora, retoma-os como que renomeando-os: faz corresponder ao privilégio do conhecimento, o que então denomina "espiritualidade". Podemos dizer que nestas denominações Foucault reconhece duas modalidades de conhecer e praticar a filosofia, duas vertentes de pensamento, presentes na historiografia filosófica. Numa visão muito geral e esquemática, destaquemos algumas caracterizações dessas duas vertentes.

Na vertente da "filosofia" enquanto pensamento exclusivamente representativo, o sujeito, e somente ele, tem acesso à verdade, em razão de sua própria estrutura ontológica, que não é outra senão a de um sujeito cognoscenteNa "espiritualidade" enquanto forma de pensamento e de prática, a verdade não é alcançada nem alcançável pelo sujeito no simples ato de conhecimento, pois, para ter acesso à verdade, o sujeito tem de olhar para si mesmo de modo a modificar-seconverter-sealterar seu próprio ser. No primeiro caso, isto é, no da filosofia como os efeitos ou consequências do conhecimento, não há transformação do sujeito pois, afinal, sua estrutura é que precisa ser assegurada como condição de acesso à verdade. A espiritualidade, ao contrário, produz efeitos consequências que incidem sobre o sujeito, iluminando-o e transfigurando-o.

Se, por um lado, historicamente preponderou nas filosofias o âmbito restrito do conhecimento, por outro, Foucault faz ver que os filósofos da antiguidade grega e do período helenístico e romano não dissociavam a questão da filosofia (a saber, "como ter acesso à verdade") da questão da espiritualidade (a saber, quais são "as transformações necessárias no ser mesmo do sujeito que permitirão o acesso à verdade"). É esta junção, por assim dizer, de filosofia espiritualidade da verdade e sua prática, que estaria designada na noção de cuidado de si. De sorte que o cuidado de si, assim entendido, remete não somente ao plano da intelecção ou do conhecimento (...), mas também ao plano das atitudes, ao âmbito do olhar, à ordem das práticas, que consituem todo um modo de existência.

(p. 8-9)

domingo, 7 de agosto de 2011

A VIDA NÃO É JUSTA


A vida não é justa.
Lutamos para fazê-la mais justa possível, mas quase nunca conseguimos. A vida também não tem qualquer sentido além daqueles que lhes damos. Entramos na existência sem escolher, e passamos a vida inteira lutando para inventar-lhe um sentido. Quase sempre adotamos aqueles que herdamos da cultura. Creio que é nosso dever fazê-lo, e é essa a proposta da religião. A religião não revela, mas significa. Não desvela, mas constrói sentido. Isso faz com que todas elas sejam idênticas, nem falsas nem verdadeiras.
De família pobre, Ela descobriu que estava com câncer aos 29 anos de idade. Adolescente, freqüentou a igreja. Depois se distanciou. Lutou contra o câncer durante um ano e oito meses. Nunca blasfemou. Até sorriu muito, crendo até o fim numa possibilidade de escapar. Não escapou. Morreu aos 31 anos de idade depois de muito sofrimento físico. Havia sido abandonada pelo esposo quando este descobriu sua gravidez. Nunca recebeu uma visita dele durante o enfrentamento de sua doença. Nem durante seu funeral. Ela se foi, deixando apenas a mãe e o irmão. Duas pessoas simples que se devotaram a Ela até o último instante. Obviamente, esse não é o resumo de sua vida, mas apenas de sua morte. Mas sua morte faz pensar na injustiça que se abate sobre certas biografias. Nada justifica seu sofrimento e sua partida tão precoce.
Um dia depois de sua morte, vi na tevê um documentário sobre Joseph Mengele, o médico nazista de Auschwitz. Mengele foi responsável por incontáveis atrocidades feitas naquele campo de concentração, contra os judeus, em nome da ciência e do Terceiro Reich. Chegou a ter um julgamento simulado em Jerusalém, organizado pelos parentes de suas vítimas. Fugiu para a América Latina. Viveu em Buenos Aires, Assunção, e por fim em São Paulo. Morreu na velhice, durante um banho de praia sossegado no litoral paulista. Acolhido por uma família paulista, foi tratado com as honras de um cidadão honorário europeu por muito tempo. Não teve nenhum de seus crimes julgados. Certamente não gozou de paz interior nesse tempo. Ou será que gozou? Morreu em um ambiente tranqüilo e acolhedor, num momento de lazer.
Confesso minha insatisfação com a teologia do livro de Jó. Como sabemos, o livro de Jó quer responder à questão: “por que sofre o justo?” Pergunta antiga, que tem tido em Jó uma espécie de resposta-arquétipo. Ainda me debato com o fato de que a Ela não cabe a “resposta a Jó”. Jó é provado, sofre, deseja a morte todo o tempo, mas sobrevive e é recompensado com o dobro do que possuía. Jó é um justo que experimenta a justiça, ainda que tardiamente, como recompensa de sua abnegação. Ela, do contrário, sofre muito, acredita em todo o tempo e morre. E ponto final.
Como cristão, creio na salvação e na ressurreição dos mortos. São objetos de fé nos quais simplesmente creio, sem a necessidade de justificá-lo. Mas nem a salvação nem a ressurreição me consolam da triste e injusta sina dEla. Por que Ela, e tantos outros, sofreram aquilo que deveria ser imputado pela vida a Mengele e a tanta gente como ele? Não me consola acreditar que Mengele, que nada pagou por aqui, pagará no inferno eternamente. É bem verdade que nunca quis tanto que o inferno existisse depois de ver o documentário sobre Mengele. Fiquei com a certeza de que, como diz o Rubem Alves, a idéia do inferno foi bolada por gente com muita sede de vingança no coração.
Por tudo isso, prefiro achar que há pontos cegos na religião. Pelo menos na minha. Não há teologia que me console da sorte dEla, e de gente como Ela, ao mesmo tempo em que Mengele e gente como ele morre na velhice, em pleno lazer na beira da praia.
Simplesmente, a vida foi muito injusta com Ela, e também com ele. Corrigirá a morte essa injustiça, e tantas outras similares? Honestamente, eu não sei. Mas espero de todo coração que sim. O nome disso é Religião.  
(*Na foto, sapatos do museu de Auschwitz)

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

UM SERVO CHAMADO JOHN STOTT

Semana passada a comunidade evangélica mundial perdeu uma de suas figuras mais importantes no século XX: o britânico John Stott. Nascido em 27 de abril 1921, no ano de 1950 tornou-se presidente da Igreja All Souls, em Londres.  Estudou na Trinity College Cambrigde, onde se formou em primeiro lugar da classe tanto em francês como em teologia. Foi também Doutor Honorário por várias universidades, na Inglaterra, nos Estados Unidos e no Canadá.


Stott deixou uma vasta contribuição literária para a teologia. Entre seus títulos mais conhecidos do público brasileiro estão Cristianismo Básico, Crer é Também Pensar, Porque Sou Cristão, A Cruz de Cristo, Eu Creio na Pregação, Firmados na Fé, Cristianismo Equilibrado, Entenda a Bíblia, Cristianismo Autêntico, O Perfil do Pregador, e Ouça o Espírito, ouça o mundo. Ao todo, sua obra consta de mais de 40 livros e centenas de artigos voltados para a edificação da comunidade cristã universal.

John Stott, juntamente com o equatoriano René Padilla, foi uma das vozes mais importantes do 1º Congresso Mundial de Evangelização, realizado em 1974 na cidade de Lausanne, na Suíça. Deste evento resultou um documento chamado Pacto de Lausanne, escrito por Stott, que se tornou paradigmático para a vida de muitas comunidades evangélicas em todo o mundo. O objetivo do Pacto de Lausanne é chamar as igrejas evangélicas a reexaminarem a sua missão à luz dos novos desafios colocados em sua época. O documento reflete uma maneira de se pensar e de se agir que nas igrejas evangélicas ficou conhecido como “Teologia da Missão Integral”.

Louvamos a Deus pelos 90 anos vividos por John Stott, já que sua vida foi dedicada à tarefa de ajudar as igrejas cristãs a oxigenarem suas estruturas. Rogamos a Deus que não deixe faltar profetas e pessoas comprometidas com o seu Reino, da forma como foi John Stott. Rogamos a Deus para que as novas gerações dialoguem com o legado de pessoas como John Stott, para que o mundo seja renovado pela renovação da nossa mente.