terça-feira, 30 de junho de 2009

NO BANHEIRO DA REALIDADE


Solidariedade versus opressão no chão dos Tabuleiros Alagoanos

O bairro da Forene, onde resido, situa-se num triângulo fronteiriço entre os municípios de Maceió, Rio Largo e Satuba. Seu processo de urbanização se deu quase que completamente em função do êxodo de trabalhadores da vila de Utinga (Rio Largo), todos eles ligados à então usina sucroalcooleira Utinga Leão, cujo nome agora é Brasil Etanol.

A família Leão, historicamente à frente da usina Utinga Leão, foi por quase 120 anos uma das grandes (e poucas!) representantes da oligarquia agrária no estado de Alagoas. Desde março do ano passado, no entanto, um grupo empresarial estrangeiro, movido pela especulação dos biocombustíveis, comprou a maior parte das ações desta empresa, de tal maneira que a família Leão participa ainda desse empreendimento, mas não mais majoritariamente.

As precárias condições de trabalho no setor canavieiro de Alagoas são amplamente conhecidas. A precarização do trabalho dos cortadores de cana é matéria sazonal em noticiários do país, e em Alagoas isso não é diferente. Todavia, pouco se diz sobre as condições de trabalho daqueles que se ocupam no chão de fábrica desse setor. Poucos conhecem as nuances da dominação e da humilhação com que os usineiros tratam também aqueles encarregados do setor industrial. No mesmo instante em que escrevo essas linhas, por exemplo, muitos de entre esses trabalhadores mal sabem como darão conta do sustento de suas famílias no dia seguinte.

A verdade é que as expectativas geradas em torno da produção de biocombustíveis deflagradas em 2007 – nesse caso o etanol – nunca se tornaram realidade em nossa região. Nem mesmo a euforia de nosso presidente Lula com relação aos usineiros, taxando-os de “heróis nacionais” da preservação ambiental, serviu para injetar vitalidade na produção de cana aqui nos Tabuleiros Alagoanos. O que se vê por aqui, pelo contrário, são os usineiros tomando carona no discurso da crise econômica mundial a fim de contribuir no processo sempre ascendente de pauperização de seus operários. Em outras palavras, etanol por aqui nunca foi biocombustível, mas necrocombustível.

Na usina Utinga Leão (atual Brasil Etanol) já se vão três meses de atrasos salariais. Hoje (30/06) expirou o prazo estipulado pelo Ministério Público do Trabalho para que esses funcionários recebessem seus ordenados atrasados, fato que não se confirmou. Houve, como em outros momentos dessa crise, manifestações de trabalhadores exigindo um posicionamento mais franco por parte de seus empregadores. Porque não se bastassem os salários em atraso, tais funcionários têm que digerir “a palo seco” (João Cabral de Melo Neto) uma postura ambígua e cínica onde vigem a indefinição e a falta de clareza quanto ao andamento de todo processo por parte dos patrões.

O grande temor entre esses trabalhadores diz respeito à possibilidade de bancarrota da empresa. E esse temor precisa ser entendido à luz dos processos psicossociais e ideológicos que produzem uma relação de paternalismo e profunda dependência desses trabalhadores ao serviço de usina. Não é fácil se desligar subitamente de uma relação trabalhista que perpassa até quatro gerações familiares em alguns casos. A identidade pessoal de cada de nós, assim como nosso processo de subjetivação tem no trabalho um componente fortíssimo. Esse também é o caso do trabalho nas usinas. Portanto, o temor dos trabalhadores não diz respeito somente à falta do que comer. Também diz respeito ao chão identitário que lhes poderá ser arrancado.

Não tem sido fácil ser pastor e ser igreja cristã no olho desse furacão. O sentimento de impotência é oceânico. Mas como diria Frei Betto num artigo de 2000 à Concilium, nos tem sido possível ver aqui “Graça em meio ao lixão da desgraça”.

Decidimos como comunidade cristã – a Igreja Batista na Forene – que, conforme o modelo da comunidade cristã judaico-helênica de Jerusalém (Atos 2,45; 4,34), as necessidades dos atingidos pela crise seriam supridas mutuamente pelos não-atingidos. Além disso, num momento anterior, pudemos contar com a generosidade e a graciosidade de amigos pastores e de suas igrejas da mesma confissão para a doação de itens básicos da alimentação cotidiana. E assim o milagre da generosidade – nesses ares pós-modernos onde vigoram a competição e o individualismo – vai sendo uma constante entre nós.

Sim, nossas ações são paliativas e remediadoras. São assistencialistas. Não tocam na “estrutura” do monstro que produziu esse rebuliço. Mas como dizia Petrúcio Amorin, “barriga seca não dá sono”. E se com a barriga farta já é difícil enfrentar o monstro estrutural que obsta esse povo de viver sua humanidade intrínseca, de “barriga seca” isso é impossível.

A mim, fica a lição de Ignácio Martin-Baró, psicólogo social e um dos padres jesuítas brutalmente assassinados em El Salvador no ano de 1989 por conta de sua postura político-ideológica identificada com os processos libertários naquele país. Porque “leitura de realidade” e “análise conjuntural” a gente aprende com perspicácia nos bancos da academia. Também lá aprendemos sobre as teorias que foram forjadas no outro lado oceano e que, acrítica e puerilmente, insistimos em aplicar aos nossos contextos locais. Então, a lição de Martin-Baró se resume no fato de que em detrimento disso tudo, solidariedade só se aprende no chão da vida, no confronto com situações bem concretas de dor e de opressão a que são submetidos muitos seres humanos. Em suas palavras, solidariedade é produto de um “banho de realidade”.

Suas recomendações aos psicólogos latino-americanos por certo se estendem aos intelectuais de outras áreas, assim como a nós, que militamos frente a um cristianismo de libertação.

E com elas eu concluo:

Aos psicólogos latino-americanos nos falta um bom banho de realidade, porém dessa realidade que agonia e angustia as maiorias populares. Por isso, aos estudantes que me pedem uma bibliografia em cada momento que precisam analisar um problema, recomendo que primeiro se deixem impactar pelo problema mesmo, que se embebam na angustiosa realidade cotidiana em que vivem as maiorias salvadorenhas e somente depois se perguntem sobre os conceitos, as teorias e os instrumentos de análise

(Psicología de la liberacíon, p. 318).

quinta-feira, 11 de junho de 2009

AS IGREJAS E A HOMOSSEXUALIDADE


Entre a lógica do Templo e a lógica de Jesus de Nazaré

ABRINDO

A ambigüidade que envolve a sexualidade humana reside no fato de que sendo ela uma realidade hiper-complexa, tenha sido tradicional e culturalmente tematizada de forma hiper-simplista. As contribuições da religião, da filosofia e da própria ciência, forjaram as representações mais arraigadas no senso comum, onde o binômio macho/fêmea e a hegemonia das relações heterossexuais foram elevadas ao status de naturalidade. Dessa forma, outras manifestações de sexualidade entre seres humanos, a despeito de sua milenar recorrência, ficaram circunscritas como fenômenos desviantes daquilo que é “normal”.

Todavia, nosso tempo vem caracterizado pela pluralidade discursiva que tem seus reflexos também nos discursos sobre a sexualidade. Nem de longe se pode dizer que experimentamos uma época de plenitude democrática. Mas devemos reconhecer que historicamente estamos num momento em que a construção dessa cultura democrática vem dando passos muito interessantes. Esses passos são o produto da luta árdua de certos grupos minoritários. Os exemplos estão nas pequenas conquistas dos negros, das mulheres, das crianças, e daqueles cuja identidade sexual foge das noções con-sagradas em nossas sociedades.

1. AS ATUAIS VARIANTES DEFINIDORAS DA SEXUALIDADE HUMANA

No que diz respeito a esses últimos, os avanços, apesar de muito pequenos, são tangíveis. Ainda que as representações mais comuns da sexualidade humana continuem circunscritas ao binômio macho/fêmea, já existe uma farta terminologia que busca dar conta minimamente da complexidade acerca desse tema. Eu gostaria de esboçar aqui uma rápida tipologia desse trabalho conceitual.

1.1 HSH e homossexualidade

HSH corresponde à sigla para homens que fazem sexo com homens[1]. Esse tipo remete à relações meramente copulares, mas sem implicações afetivas. Em outras palavras, esse tipo traduz a identidade sexual de pessoas que sustentam uma vida sexual com parceiros do mesmo sexo, porém não necessariamente a partir de um laço afetivo. Por isso não podem ser identificadas como homossexuais, uma vez que podem também copular heterossexualmente. O mais usual de todos esses termos descritores é o homossexual. As relações homossexuais implicam, além da atividade copular, a afetividade entre duas pessoas do mesmo sexo. A afetividade, nesse caso, tem mais valor definidor que a própria prática sexual. Assim, caberia perfeitamente o termo homo-afetivo nesses casos.

1.2 Bissexualidade e transexualidade

Bissexual, por sua vez, é o termo descritor para designar as pessoas para quem as relações sexuais e a afetividade são desejáveis e factíveis em relação tanto ao macho como à fêmea. Outro é o caso dos transexuais. Neste caso, a identidade sexual da pessoa se caracteriza pela profunda rejeição do seu sexo biológico, sendo que desde o nascimento se nota profunda repulsa à própria genitália. Concomitante a isto se dá a identificação com o sexo biológico oposto.

1.3 Travestismo e intersexualidade

Travesti é o termo descritor para denotar a identidade sexual das pessoas que apesar de sua condição fisiológica se relacionam com o mundo a partir da condição fisiológica oposta. Trata-se do homem que se relaciona com o mundo na condição de mulher e vice-versa. Essa relação com o mundo, todavia, não determina a prática sexual. Acrescente-se a isso o fato de que no travestismo a excitação sexual depende estritamente do uso de roupas culturalmente atribuídas ao sexo oposto. Em nenhum desses casos acima se presentificam alterações anatômicas nas pessoas, mas somente a variedade da identidade sexual. O designativo intersexualidade, no entanto, é aquele usado para se referir à pessoa que embora pertença aparentemente a um gênero, tem vários aspectos anatômicos e/ou psicológicos do sexo oposto.

Embora nosso artigo vá se concentrar na relação entre religião e homossexualidade, algumas perguntas gerais que derivam dessas observações são estas:

a) É possível manter as representações da sexualidade humana limitadas ao binômio macho/fêmea e continuar considerando as demais variações como comportamentos desviantes?

b) Sob a luz dos valores evangélicos, como as igrejas cristãs devem reagir frente a essa diversidade de identidades sexuais?

2. SEIS REPRESENTAÇÕES DA GÊNESE DA HOMOSSEXUALIDADE

São variadíssimas as representações sociais da gênese da homossexualidade. Eu gostaria de sistematizá-las sucintamente sob seis grandes formas discursivas, sem me preocupar muito com a seqüência cronológica de seus aparecimentos.

2.1 Opção sexual

Minha primeira referência diz respeito à representação da homossexualidade como uma opção sexual. Uma vez que a heterossexualidade é representada como condição natural da sexualidade entre os humanos, “desvios” como a homossexualidade são vistos como produtos de uma decisão deliberada, intencional e volitiva do ego. Tal representação sequer fomenta a suspeita de que a própria heterossexualidade não seja produto de uma opção deliberada da consciência. Tanto uma quanto a outra são, na verdade, impostas existencialmente aos seres humanos. É nesse sentido que os próprios homossexuais rejeitam veementemente a idéia de opção sexual, mas utilizam a expressão orientação sexual. Devido ao meu forte apego com a filosofia, tenho preferido usar a expressão condição existencial para representar a gênese tanto da heterossexualidade quanto da homossexualidade. Algumas questões instigantes nesse sentido são:

a) Sendo a homossexualidade uma opção sexual, por que muitas entre essas pessoas não optam pela heterossexualidade para evitar os terríveis preconceitos que enfrentam socialmente?

b) Se optam pela heterossexualidade, por que tal opção não se traduz numa instantânea mudança de comportamento sexual?

2.2 Devassidão moral

Outra representação da gênese da homossexualidade atrelada à primeira, se traduz na idéia de devassidão moral. Mais abaixo, quando estivermos discursando sobre as perspectivas bíblicas da homossexualidade, voltaremos a essa representação, uma vez que a mentalidade de boa parte dos escritores bíblicos se guia à luz dessa noção de devassidão moral, inclusive Paulo de Tarso.

2.3 Doença

Por muito tempo foi vigente a explicação da gênese da homossexualidade ligada à noção de doença. Para que se tenha uma noção mais nítida disto, a homossexualidade deixou de ser considerada medicamente como doença no Brasil somente em 1985. Para a Organização Mundial da Saúde (OMS) isso se deu somente em 1991. Embora essa seja uma representação com tonalidade arcaica mesmo em nível do senso comum, é possível encontrar ainda manuais de Psicopatologia considerados paradigmáticos, onde tanto a homossexualidade como as demais variantes da sexualidade humana (exceto a heterossexualidade) são tratadas como transtornos da identidade de gênero[2].

2.4 Possessão demoníaca

Os círculos religiosos, por seu turno, são responsáveis pela representação da gênese da homossexualidade como produto de possessão demoníaca. Há uma milenar relação entre o discurso religioso e a tipificação espiritualizante de certos fenômenos considerados atípicos no comportamento entre os seres humanos. Michel Foucault, em sua História da Loucura[3], deixou claro como os transtornos mentais foram associados por muito tempo à possessão de demônios, e como derivaram daí as mais bizarras propostas psicoterápicas. Loucos, leprosos, epiléticos e também homossexuais, por muito tempo foram vítimas de representação que os associava à influência de forças misteriosas e demoníacas. Não é equivocado dizer que tal representação permanece incrivelmente vigente na mentalidade de muitos religiosos, majoritariamente entre cristãos evangélicos.

2.5 Transtorno de identidade sexual com fundo psicológico

Como produto de uma “psicanálise vulgar”, também vigora entre as representações da gênese da homossexualidade a idéia de que ela está atrelada a um transtorno de identidade sexual com fundo psicológico oriundo de uma criação familiar eminentemente materna. Minha hipótese, nesse caso, é que tal representação está atravessada pela cultura patriarcal que a circunda. A ausência da figura paterna e masculina seria responsável pelo transtorno de identidade sexual. Logo, a presença e a influência do pai está identificada com a “normalidade” e com a “regularidade” do comportamento. De outro modo, a entrega exclusiva à influência materna e feminina estaria ligada ao “transtorno” e à “irregularidade”. Esta representação, por outro lado, não consegue dar conta dos inúmeros casos de presença de homossexuais em famílias marcadas pela influência de ambos os gêneros. Nem consegue dar conta dos muitos casos de homossexuais entre irmãos heterossexuais, onde todos foram submetidos aos mesmos processos de formação humana familiar.

2.6 Influência de fatores hormonais

Por fim, resta-nos mencionar uma representação da gênese da homossexualidade presente em alguns setores biomédicos. Nestes, a questão está posta em termos de influências de fatores hormonais na gestação. Tal representação, aparentemente restrita à classe científica, tem sido divulgada sobretudo pelos popularizadores de uma nova modalidade editorial, que é a auto-terapia para casais. Este é o caso, por exemplo, do casal Allan e Bárbara Pease[4]. Esses autores pertencem a uma tradição de intelectuais que vivem do pseudo-cientificismo. A lógica presente aí consiste em traduzir e sintetizar para o senso comum hipóteses científicas, com o intuito de se apoiar em sua suposta suficiência argumentativa. Para fundamentar cientificamente a diversidade comportamental de homens e mulheres, os autores mencionados lançam mão de um discurso pretensamente científico, atrelado ao paradigma evolucionista e biologicamente reducionista. Logo, ainda que expressões da sexualidade humana como a homossexualidade não sejam taxadas como desviantes comportamentais, são explicadas a partir de esquemas estritamente biológicos identificados com a influência hormonal em certas circunstâncias gestacionais.

3. PERSPECTIVAS BÍBLICO-LITERAIS DA HOMOSSEXUALIDADE

Apesar da representação que identifica a gênese da homossexualidade com a possessão demoníaca ser estritamente religiosa, ela não encontra respaldo no texto da Bíblia. Antigo e Novo Testamento não conhecem essa representação. Na verdade, apenas um dos autores bíblicos (Paulo de Tarso) tematiza muito ligeiramente o problema da gênese da homossexualidade, e essa gênese, como dissemos antes, está identificada como a noção de devassidão moral. Revisemos sucintamente a presença do tema no Antigo e no Novo Testamento, nesta ordem. Depois faremos um brevíssimo balanço dessa perspectiva bíblica.

3.1 No Antigo Testamento (AT)

a) Gênesis 19,1-29

Em todo o AT não se encontra sequer uma única palavra sobre a gênese da homossexualidade. Para os autores do AT ela é algo que está dado sem referência às suas origens. Tradicionalmente postulou-se que o episódio da visita de Ló a Sodoma, conforme narrado em Gênesis 19,1-29, represente uma negação frontal e estrita à homossexualidade. Sem entrar na discussão acerca da plausibilidade histórica desse(s) relato(s), é mister afirmar que a respectiva narrativa realce, na verdade, uma condenação a todo um conjunto de práticas sexuais consideradas degradantes da dignidade humana. Em outras palavras, o que se condena em Sodoma (e em Gomorra) é a completa degeneração da sexualidade humana, e não uma identidade sexual em particular. É certo que esta degeneração total esteve representada não só por práticas homossexuais, mas também por outras que igualmente podem agredir a dignidade da pessoa humana.

b) Levítico 18,19-30 e 20,10-27

No AT nosso tema também aparece nos códigos levíticos de Israel. No livro de Levítico, pela primeira vez no texto Bíblico, as uniões homossexuais estão explicitamente rejeitadas, pois são vistas como “abominações”: “Um homem não deverá se deitar com outro homem, como se fosse mulher, pois isto é abominação” (Lv 18,22); “se um homem se deitar com outro homem, como se fosse mulher, ambos praticaram coisa abominável, e o seu sangue cairá sobre eles” (Lv 20,13).

O que se necessita esclarecer sobre essas passagens é o fato delas se situarem num contexto de negação a uma série de outros comportamentos considerados reprováveis e abomináveis. Entre esses comportamentos estão as uniões heterossexuais ilegais e imundas, como as mantidas durante o ciclo menstrual da mulher (Lv 18,19) e os adultérios (18,20), assim como as zoofilias (18,23). Na continuação desse texto do Levítico (18,24-30), o tratamento de “abominação” dispensado estritamente à homossexualidade no verso 22, é atribuído a todos os outros comportamentos mencionados: “porque todas estas abominações fizeram os homens desta terra [de Canaã] que nela estavam antes de vocês, e a terra se contaminou” (v. 27). Portanto, semelhantemente à passagem de Ló em Sodoma, também os códigos levíticos não se posicionam contra uma identidade sexual em particular. Seu posicionamento se direciona contra uma situação de degradação geral da sexualidade humana, que podem se exacerbar tanto em práticas homossexuais quanto em heterossexuais. Neste caso, até mesmo em zoofilias.

3.2 No Novo Testamento (NT)

a) Romanos 1,18-32

Paulo de Tarso é o único autor dos textos bíblicos que propõe uma avaliação da gênese da homossexualidade. Isso Paulo o faz no texto de Romanos 1,18-32. Como já sinalizamos acima, a avaliação de Paulo está ligada à idéia de degeneração moral. No entanto, para Paulo a degeneração moral que desemboca na homossexualidade está ligada a outro problema, que é o não reconhecimento dos atributos de Deus impressos na natureza, e, conforme Paulo, obviamente reconhecíveis (Rm 1,20). Esse não reconhecimento da existência de Deus e de suas relações com o mundo traz uma série de conseqüências sumarizadas por Paulo em Rm 1,21-32:

1) as atitudes de ingratidão e incontinência (1,21);

2) de soberba intelectual (1,22);

3) e de idolatria e perversão cúltica (1,23-25).

A homossexualidade, portanto, é vista por Paulo nesse conjunto de conseqüências provenientes da rejeição do ser humano em relação à Deus (1,26-27). É uma devassidão moral com fundo religioso e teológico.

b) 1 Coríntios 6,9 e 1 Timóteo 1,10

Paulo também se utiliza do termo “efeminados”: “(...) Não enganem a si mesmos: nem os impuros, nem os idólatras, nem os adúlteros, nem os efeminados... herdarão o Reino de Deus” (1Co 6,9). Minha suspeita é que essa expressão seja de fato uma referência direta à homossexualidade. Nas epístolas pastorais aparece a expressão “sodomita” para fazer referência pejorativa à sexualidade humana: “impuros, sodomitas, raptores de homens, mentirosos...” (1Tm 1,10). Como vimos, essa expressão é de difícil definição, sendo melhor utilizada quando referida à degeneração total da sexualidade, e não a uma identidade sexual em restrito. Em ambos os casos – efeminados e sodomitas – está postulada convicção de que estes estão excluídos do símbolo escatológico Reino de Deus. O que não nos pode escapar nas duas passagens sobre os “sodomitas” e os “efeminados” é o fato dessa exclusão pontual estar ligada a uma exclusão geral que rejeita toda a degeneração do comportamento humano.

3.3 Um breve balanço das perspectivas bíblicas sobre a homossexualidade

Literalmente, as passagens que mencionamos são taxativas em sua rejeição à homossexualidade. O AT justifica essa postura taxando religiosa e moralmente a homossexualidade como uma das abominações do comportamento humano. Indicamos indiretamente que essa posição do código levítico de Israel também tem relação com fatores culturais. A negação da homossexualidade e de outros comportamentos sexuais se fundamenta também no fato delas terem sido amplamente praticadas nas culturas cananéias. A construção de todos os elementos superestruturais – isto é, de toda ideologia moral, política e religiosa – em Israel, como sabemos, nasce desse intercâmbio cultural que assimila certos elementos dos povos do entorno e rejeita outros como abominações.

Literalmente, também as passagens do NT às quais fizemos menção rejeitam taxativamente a homossexualidade. É difícil determinar o quanto dessa rejeição tem relação com os elementos da cultura do entorno. Não obstante, podemos arriscar a hipótese de que tenham relação com a cultura pessoal do próprio Paulo de Tarso, fortemente marcada pelo código levítico, que, como vimos, situa a homossexualidade no conjunto das demais abominações do comportamento humano.

Nosso último passo nesse artigo consistirá em nos perguntarmos pelo seguinte:

a) Seria a Bíblia um livro homofóbico, ou sua interpretação literal?

b) Em que medida o tema da homossexualidade na Bíblia está atravessado por condicionamentos sócio-históricos?

b) Quais critérios bíblico-hermenêuticos os cristãos dispõem para tratar esse tema?

4. JESUS DE NAZARÉ E A INCLUSIVIDADE DA DIVERSIDADE SEXUAL

Para nós, cristãos, é mister reconhecer de uma vez por todas que Jesus Cristo é o princípio interpretativo de toda Bíblia, assim como de toda a existência. Em linguagem teológica dizemos que Jesus Cristo é o princípio hermenêutico de acesso à Bíblia e à existência. Ele é a Palavra que julga toda palavra. Para nós, cristãos, ele é o critério último pelo qual discernimos todas as coisas.

E não há nada novo sendo afirmado aqui. “No princípio era a palavra... e a palavra era Deus... e a palavra se fez carne e armou sua tenda entre nós...”, escreveu a comunidade joanina (João 1,1.14). A própria tradição da Reforma tem em Lutero esse mesmo posicionamento de ver em Jesus Cristo o princípio hermenêutico de acesso a toda Escritura e a toda vida. Foi à base disso que Lutero rejeitou certas partes do AT e quis excluir Tiago e Apocalipse do NT, os quais, conforme ele, destoavam totalmente da mensagem e da vida de Jesus Cristo. Também grandes teólogos protestantes do século 20 como Karl Barth e Paul Tillich asseveraram o mesmo – o “Novo Ser em Jesus Cristo” como critério de discernimento de toda teologia e de toda a vida. Essa decisão de fé tem implicações diretas no tratamento cristão frente à homossexualidade.

A primeira dessas implicações é a declinação do uso tanto do AT quanto da perspectiva paulina para enfrentar a questão. Tanto uma quanto a outra, se submetidas à luz da mensagem e da vida de Jesus Cristo, devem ser rejeitadas como construções contextuais provisórias, incompatíveis como a maneira com a qual Jesus Cristo tratou problemas análogos. De outra maneira, o próprio AT e a perspectiva paulina anulam a si mesmos como meios de se lidar com a homossexualidade. Ambos postulam sobre outras situações que seletivamente ninguém estaria disposto a assumir hoje. Por exemplo, o mesmo código levítico que condena a prática homossexual com a pena de morte, condena da mesma maneira o adultério (Lv 20,10), além de considerar imundo o homem depois de sua ejaculação (Lv 15,1-18) e a mulher imunda durante o ciclo menstrual (Lv 15,19-33). Quantas igrejas continuam aplicando ipsis literis essas determinações todas? De forma semelhante, a mesma perspectiva paulina (ou dêutero-paulina) que representa a homossexualidade como um dos produtos da rebelião frente a Deus, restringe a mulher aos papéis domésticos e condiciona a salvação destas à capacidade de concepção e de maternidade (1Co 14,34; 1Tm 2,8-15). Quantas igrejas fazem ainda as mesmas restrições eclesiais e soteriológicas às mulheres?

A tese do Paul Lehmann de que a tarefa das igrejas é “tornar a vida humana mais humana ainda”, traduz com exatidão a maneira como Jesus de Nazaré lidou com temas análogos à homossexualidade. Esta analogia diz respeito ao trato dispensado por ele aos leprosos, “endemonhiados”, mulheres, impuros de toda sorte, pobres, estrangeiros, pecadores, prostitutas, cobradores de impostos, dissidentes religiosos e inimigos políticos – todos fortemente segregados pela estrutura do Templo. Para o Templo, aquelas pessoas eram tidas como “abominações” semi-humanas, para quem a única saída deveria consistir numa rendição à lógica dominante das imposições do próprio Templo. Para Jesus de Nazaré, pelo contrário, as mesmas pessoas eram vistas como “seres humanos vitimados pela história”, em quem pulula intensamente a imagem de Deus.

As formas com as quais a maior parte das igrejas cristãs atualmente se relaciona com os homossexuais não são análogas às formas com as quais o Templo se relacionava com os sujeitos acima citados? Não são duas formas de exclusão em estreita analogia?

A suma de tudo isso é que a relação das igrejas com os homossexuais segue a lógica excludente do Templo, e rejeita a lógica inclusiva de Jesus de Nazaré.

FECHANDO

Toda mudança operada pela Graça de Deus inicia numa aceitação incondicional do ser humano. As igrejas deveriam se guiar à base desse princípio anunciado e vivenciado por Jesus de Nazaré, que acolheu os proscritos de toda espécie e disse enigmaticamente que “os pagãos se assentariam na mesa com Abraão, Isaque e Jacó, enquanto os filhos do reino rangeriam os dentes nas trevas” (Mt 8,11-12), que “os Grandes Teólogos da época não seriam salvos (Lc 11,52) e que “os cobradores de impostos e as prostitutas entrariam no reino de Deus antes que os sacerdotes” (Mt 21,31).

Não há em Jesus Cristo nenhuma busca pelas raízes dos comportamentos acima mencionados. Tudo o que nele encontramos é o acolhimento em amor incondicional, que proporciona às pessoas uma reflexão sobre os próprios passos (Lc 19,8) e torna a vida humana mais humana (Jo 8,11).

Infelizmente, diante das expressões múltiplas da diversidade sexual assumida em nossos dias pelos muitos grupos minoritários, a maior parte das igrejas cristãs permanece optando pela lógica excludente do Templo. Felizmente, diante da mesma diversidade sexual, inúmeros atores sociais sem nenhuma vinculação cristã e religiosa têm optado pela lógica inclusivista de Jesus Cristo.

BIBLIOGRAFIA CITADA

DALGALARRONDO, Paulo. Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais. 2ª edição, São Paulo: Artmed, 2008

FOUCAULT, Michel. História da Loucura – Na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 2008

PEASE, Allan, PEASE, Barbara. Por que homens fazem sexo e mulheres fazem amor. São Paulo: Sextante, 2003


[1] “Homem”, nesse caso, precisa ser entendido genericamente como sinônimo de “pessoa”. Esse é um exemplo do nível de entranhamento da cultura patriarcal. Mesmo a linguagem dos movimentos sociais articulados com a homossexualidade está atravessada pelo primado do masculino. A relação que a sigla HSH quer denotar poderia ser igualmente cunhada como MSM, isto é, “mulheres que fazem sexo com mulheres”.

[2] Este é o caso de DALGALARRONDO, Paulo. Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais. 2ª edição, São Paulo: Artmed, 2008, p. 358-359.

[3] Cf. FOUCAULT, Michel. História da Loucura – Na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 2008.

[4] Cf. PEASE, Allan, PEASE, Barbara. Por que homens fazem sexo e mulheres fazem amor. São Paulo: Sextante, 2003.