segunda-feira, 27 de outubro de 2008

DE VOLTA AO SAMBA DE UMA NOTA SÓ


Semana passada, durante um estudo bíblico em nossa comunidade aqui na Forene, fiz uma digressão no tema e voltei ao espinhoso caso da relação entre os usineiros da cana de açúcar e a sociedade alagoana. Depois daquela exposição fiquei meio abatido. Fiquei com a impressão de que o povo já estava meio enfadado de me ouvir falar daquilo. Senti que minha fala já não rendia mais nada. Me senti como quem entoa um “samba de uma nota só”. Decidi esquecer esse assunto por hora.

Mas aí, nesse fim de semana fui parar em Luziápolis, pequeno distrito do agreste alagoano. Fui a convite de meus amigos John e Bia, que trabalham há um ano junto à recém formada Igreja Batista naquela localidade.

Em Luziápolis foi impossível não voltar ao meu “samba de uma nota só”!

Assim que cheguei quis dar uma volta. E logo algumas questões ficaram muito claras. São aproximadamente dezesseis mil pessoas que vivem ali, numa cidade totalmente plana, sem ladeiras. Não há pavimentação e saneamento básico para quase noventa por cento da população [mas há muita propaganda política pelas ruas!]. Não há assimetria social porque simplesmente todos pertencem à mesma condição sócio-econômica de pobreza. O distrito, na realidade, se constitui num lugar de descanso para os trabalhadores das usinas sucroalcooleiras do entorno, sendo a principal a Usina Sinimbu. O que antes era um “lugar de pouso” para esses trabalhadores, por via das necessidades provocou o sedentarismo dos mesmos ali. Fez-se assim Luziápolis.

Enfim, Luziápolis é um desses cantos de Alagoas que empresta a sua existência à manutenção da concentração da riqueza produzida nesse chão.

John me levou a uma caminhada por aquelas ruas. Fez questão me dizer que estava empenhado na tarefa de catalogar as instituições religiosas ali presentes. “São dezesseis igrejas evangélicas”, me dizia ele, além da Igreja Católica. Então nos pusemos a cogitar sobre esse fato. A maioria dessas igrejas, como não é de espantar, são neopentecostais, ou como chamaria Martin Dreher transconfessionais, isto é, novas congregações sem qualquer vínculo denominacional ou confessional. O discurso da sociologia religiosa acerca da relação neopentecostalismo/pobreza tem insistido numa hermenêutica inflexível que vê no neopentecostalismo ou uma das formas religiosas da ideologia neoliberal, ou um sufrágio psíquico-religioso bem apegado ao modelo das hipóteses marxistas – a religião como ópio do povo.

Se os pobres, como dizemos, devem ser os sujeitos de sua própria libertação, por que resistimos aos caminhos de libertação eleitos por eles mesmos, taxando-os de ideológicos? Libertação será sempre a nossa idéia de libertação?

Pelo que pude notar, em Luziápolis também temos uma boa amostra de uma sociedade visceralmente patriarcal. A própria Igreja Batista ajuda nessa percepção, embora seja ainda um grupo pequeno. Não há homens entre seus membros. Pela primeira vez em minha vida estive numa congregação eminentemente feminina. Cem por cento! Conforme John, isso é um pequeno reflexo das relações de gênero ali presentes. As representações sociais forjadas acerca da família seguem fiéis aos parâmetros coloniais-patriarcais: o homem trabalha fora, sustenta a casa, e vadeia entre outras mulheres, enquanto a mulher cuida da casa, vai à igreja e suporta elegantemente o vexame da traição conjugal. Ao que parece, faltam ainda estudos dedicados às relações entre o imperialismo da cana e a sociedade patriarcal no Nordeste. Sem dúvida, essa relação é estreitíssima.

Todos nós andamos meio dependentes do “mundo virtual”, assim mesmo como o drogado depende de sua droga. Já não podemos conceber nossas vidas sem essa coisa. Então, saí à cata de uma lan house. Encontrei. Lá dentro uma outra imagem provocadora reunia os mundos do Norte e do Sul: garotos fascinados com a interconectividade dessa teia chamada Internet. Fiz questão de olhar seus rostos. Eram todos rostos marcados pelo trabalho infantil. Marcados em sentido literal. Cicatrizados mesmo pela dura lida, certamente do corte da cana. Ali, de mãos dadas, o submundo do trabalho infantil nos canaviais e o mundo da interatividade eletrônica. Uma síntese interessante que revela o desejo de libertação do flagelo da miséria, libertação da castração da alegria e libertação dos condicionamentos impostos por homens sem coração. Os meninos da lan pareciam dizer que queriam mais que uma foice e uma enxada: queriam o mundo!

E, como se vê, eu não pude deixar de regressar ao meu “samba de uma nota só”. É preciso continuar falando, escrevendo, fazendo, pensando, sonhando, estimulando, esclarecendo, pesquisando, enfim, buscando a chave que desvende o segredo para uma sociedade mais justa. Aqui em Alagoas, não se pode fazer isso sem fazer referência a esse “samba de uma nota só” que é a opressão sucroalcooleira.

sábado, 18 de outubro de 2008

O NOSSO LINDEMBERG


Que novas lições pode nos oferecer o desfecho trágico do caso envolvendo os jovens Lindemberg e Eloá?

Serviria ele para nos lembrar outra vez os aspectos sombrios da natureza humana? Não, nisso a vida nossa de cada dia é pródiga. Serviria este caso para nos lembrar dos perigos irracionais de uma paixão neurótica? Também não. Eu e você já conhecemos a fundo essa história, seja por meio da própria mídia, seja por meio da dramaturgia ou quem sabe por meio de algum infortúnio desse tipo experimentado ou perto de nós ou por nós mesmos. Serviria esse caso para nos alertar contra a voracidade sensacionalista e carniceira da TV pelos pontos no IBOP? Não, é seu procedimento de todo fim de tarde. Então, serviria esse caso para nos alertar acerca do despreparo e da imperícia de nossa polícia? Também não. Precisaríamos ser pessoas muito mal informadas para chegarmos a essa conclusão somente agora.

Minha conclusão pessoal, portanto, é: esse caso não nos ensina nada novo. Nada acrescenta a nossa percepção das coisas humanas. Nada traz de inédito quanto a nossa visão das potencialidades latentes do ser humano. Somente confirma aquilo que sabemos: somos anjos e demônios ao mesmo tempo.

[Mas ainda assim dói]

Toda cultura humana pode ser entendida como um esforço do homem no sentido de transcender sua condição animal. Religião, arte, ciência, filosofia, são todos parceiros desse esforço colossal. As instituições sociais são as entidades responsáveis por nos inserir no mundo da cultura humana. A igreja, a escola, a família, o clube, são os locais aonde vamos internalizando esse mundo humano.

Quando eu era criança, a Globo exibia uma série chamada Humanimal. Basicamente se tratava de um sujeito (não me lembro o nome) cujo metabolismo permitia-lhe mutações biofísicas das mais diversas. O resultado era um híbrido. Hora homem-lobo, hora homem-águia. Tava na cara o que se pretendia com aquilo. Tava na cara que era uma forma disfarçada de resignação diante de nossa condição animal. Era uma espécie de rendição a isso.

A cultura humana, fortemente impregnada de idealismo, não quer somente saltar sobre a nossa condição animal. Quer, ademais, subjugá-la. A religião, via de regra, procura projetar na exterioridade essa condição intrínseca da experiência humana e dar-lhe nomes como espíritos, diabos, demônios e satans. A filosofia, como caminho refinado do homem, fez parecido. Chamou esses conteúdos de paixões e afetos, negando-lhes sempre como inimigas do homem e da razão, sua princesa. A diferença é que nunca deu estatuto ontológico nem aos afetos nem às paixões. Algumas das ciências humanas não fizeram diferente. Entre elas a psicanálise. A Jung, pelo menos, devemos reconhecer a coragem de tentar “integrar” esse aspecto animal do homem (a que chamava de “sombra”) na experiência da personalidade. A finalidade, todavia, também é domesticá-la. E com razão, óbvio. Caso contrário seria a barbárie.

Lindemberg e sua paranóia passional nada nos acrescentam de novo. Pelo contrário, nos recordam uma lição antiqüíssima. Nos lembram de uma obviedade sempre negligenciada: estamos acima dos animais em tudo – tanto no bem quanto no mal. Porque nenhum animal é capaz do bem altruísta, só o homem. Mas também nenhum animal é capaz da violência premeditada e sem razões pragmáticas, só o homem.

E sem querer ofender, o caso também nos lembra que, dados os devidos ingredientes e o devido contexto, eu e você podemos despertar o “nosso Lindemberg” latente. Ou antes disso tudo Lindemberg não passava de um “Paulo”, de um “José”, de um “Antonio” e de um “João”? É um sobreaviso da vida. Nada disso justifica a ninguém. Todas as implicações legais devem ser impetradas com o máximo rigor possível em quaisquer casos dessa natureza. Mas a ira nessas horas tende camuflar essa realidade vergonhosa de nós mesmos: somos todos um pouco Lindembergs.

Deus nos ajude a mantê-los bem domesticados em nós.

Amém!

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

ENTRE O VAREJO E O ATACADO, A VIDA


É inegável que quanto mais nos submergimos no mundo das letras e da ciência, menos leves vamos ficando. Nietzsche já se preocupava com esse assunto. Vamos ficando mais duros, mais fechados, mais altivos e até os de nariz chato sentem um leve empinar. Não é regra geral, mais é uma média considerável. Perante o acúmulo de conhecimentos vamos ficando mais metidos, pretensamente sabedores das coisas, e já sentimos certa inconformidade com o antes tão natural “senso comum”.

Descartes e Popper, dois filósofos que militaram em frentes tão distantes tanto do ponto de vista do tempo quanto do ponto de vista ideológico, concordam que o acúmulo de conhecimentos deve nos conduzir numa direção bem oposta do que comumente vemos. Ambos concordam que quanto mais nos enriquecemos intelectualmente, mais humildes devemos nos tornar. Ambos justificam semelhantemente sua posição: quanto mais progride nosso tesouro intelectual, maior ainda se torna o tamanho de nossa ignorância. Quanto mais sabemos sobre o mundo, maior aumenta o mistério do mesmo.

Quanto mais vai crescendo nossa percepção científica das coisas (falo em sentido lato, tanto em relação às Ciências Humanas quanto às Naturais ou Formais), mais tendemos a nos distanciar das questões ordinárias com as quais lidamos no cotidiano. Não sei por que, mas as “grandes preocupações” da ciência acabam por transformar em “pequenas preocupações” aqueles fatos da lida diária nos quais nos movemos.

De repente, importantes para nós são somente as questões de conjuntura política ou econômica, por exemplo. De repente, o indivíduo some de nossa linguagem. Dá o lugar ao estéril “social”, que ao querer enredar a todos não enreda ninguém. Foi-se o mundo do dia a dia, com seus problemas, suas questões próprias, suas alegrias, desafios e tristezas.

Até que uma catástrofe nos ocorre, ou a alguém de nosso círculo íntimo. Então voltamos para o mundo onde a vida das pessoas, uma a uma, volta a ser tão grande quanto as grandes questões conjunturais. Então lembramos que não podemos reduzir o mundo a um grande atacado. Há nele um varejo que não pode ser desprezado.

***

Ela anda bastante aflita. Sua mãe está doente. Sua irmã foi fatalmente vitimada pela mesma doença. Morreu aos trinta anos de idade. Agora, a situação de sua mãe traz de volta a angústia do tempo em que sua irmã sofreu com o enfrentamento da enfermidade. Ela é crente. Adulta, independente e feliz. Mas os últimos exames médicos de sua mãe sacudiram seu chão. “Tudo outra vez”, foi o primeiro raio de pensamento que lhe veio à mente.

Tive que voltar para o mundo onde a vida das pessoas se desenrola concretamente. Pude ver como é difícil dizer alguma coisa aí quando só queremos pensar em conjuntura político-econômica. Como é difícil dizer alguma coisa boa aí quando só queremos pensar no método científico, ou em metafísica ou em ontologia. Deveríamos ouvir mais a Fernando Pessoa, que dizia que “há muita metafísica em não pensar em nada...”. Vi que fiquei meio vesgo nesse canto a vida, e que quanto mais minha visão cresce em profundidade – que é a tarefa das ciências – mais ela perde em extensão. Esses cantos da vida querem ouvir também a nossa palavra. Mas aí as palavras polidas e refinadas desses “saberes superiores” da ciência mostram os seus limites. Elas simplesmente não fazem o menor sentido nesses cantos onde a vida geme, onde o corpo enfrenta seus limites biológicos, onde a própria vida reclama por sentido, onde suamos frio à noite e pressentimos a morte. Calam-se os cientistas. Fala o povo com aquilo que o povo tem: o coração...

Nessa hora, se o estudioso for esperto o bastante, volta a ser povo.

Voltam-lhe os significados da fé, a irmandade com o senso comum, e a palavra doce e terna que traz alento ao sofrimento da vida. Volta-lhe a dimensão pessoal e singular de cada indivíduo. Volta-lhe a convicção de que cada pessoa, com sua dor e seu sofrimento, com sua alegria e seu carisma, é tão importante quanto o mundo inteiro que vive de conjuntura político-econômica. Volta-lhe a sensatez de pensar sobre conjuntura político-econômica nos artigos, nas palestras e nos fóruns, ao mesmo tempo em que pensa nas pessoas, uma a uma, e no universo de fatos bons e ruins em que cada uma delas está submersa. Se freqüenta o poço da fé e da esperança, o estudioso, mesmo o apaixonado por conjuntura político-econômica, terá sempre uma palavra que seja pertinente às dores de cada pessoa com quem se relaciona.

Honestamente, prefiro ser ouvido (ou quem sabe também ouvir) por alguém que sofre e dizer-lhe alguma palavra do povo, do que somente dizer alguma palavra da ciência sobre conjuntura político-econômica quando sei que aí é muito mais difícil ser ouvido. Mas fazer ambas as coisas também não é nenhum pecado.

O MAIOR HUMANISTA DA HISTÓRIA


“You can call me faithless,
but I believe in love and that’s faith
enough for me…” (Rush)

Com aquela astúcia do fariseu eu lhes pergunto: qual é a declaração mais profunda da Bíblia? Para mim, sem dúvida é esta: Deus é amor (1Jo 4,8). Tal como uma gota de orvalho é capaz de espelhar a imagem do sol, a declaração joanina Deus é amor é o espelho de todo o Evangelho.

Sinto que estamos condenados como espécie humana a nunca compreender o conteúdo legítimo dessa palavra – amor. Temo que estejamos condenados como Igreja Cristã a nunca compreender o conteúdo legítimo da declaração Deus é amor.

Arrisco dizer que a maior debilidade de certas religiões – entre elas as nossas – reside justamente no afã em amar a Deus. O que produzimos a partir desse afã é um amor louco e pervertido por Deus. Sim, louco e pervertido porque é em nome dele que as grandes atrocidades das igrejas cristãs foram perpetradas na história. Amor louco e pervertido que produz templos, literatura e bens simbólicos de toda espécie concomitantemente com o gesto do Levita e do Sacerdote perante o Homem do Caminho (Lc 10,25-37). Que omite, separa, segrega, disciplina, excomunga, elimina, expulsa, delimita, castra, tipifica, julga, reprime, silencia, sentencia, anatemiza. Tudo produto do amor louco e pervertido que se quer tributar a Deus, à sua obra, à sua Palavra e à sua vontade.

É inegável. Por trás de todos esses vermes religiosos e eclesiais – omissão, separação, segregação, disciplina, excomunhão, eliminação, expulsão, delimitação, castração, tipificação, julgamento, repressão, silenciamento, anatemização – você vai sempre achar um pudico “é por amor a Deus, a sua obra e sua Palavra”. Se você pudesse entrevistar um inquisidor regresso de abate a alguma bruxa, iria ouvir dele que aquilo foi feito por amor a Deus e a sua vontade.
Nosso ódio religioso e nossa violência simbólica contra a diferença é a maior prova de que estamos aquém do sentimento do autor da expressão Deus é amor.

Nossa tragédia tem consistido em amar a Deus sem a mediação do outro, qualquer que ele seja. Fatalmente, o que resulta disso é a contradição de amarmos a Deus e odiarmos o outro. A reboque surge a produção da forma mais diabólica do ódio: o desprezo. Porque o reverso do amor não é o ódio, mas o desprezo. Surge ainda a infame doença que é o ódio velado, mascarado de declarações falsas de amor.

Nossa tragédia tem consistido em celebrar o sola fide, sola gratia, sola scriptura, quando o que deveríamos fazer era celebrar somente o sola caritas. E então a melhor coisa que nós, povo protestante, deveria fazer era reconhecer que Lutero errou o alvo. A Igreja nunca precisou de 95 Teses, uma vez que Deus é amor é a tese fundamental que dispensa tudo. Nossa Reforma deveria consistir em recomeçar a partir disso, e nada mais.

Fundamental para nossa saúde é saber que nosso amor religioso e insano, formol que mantém intacto aqueles vermes todos, já cheira mal diante de Deus há tempos. Aquele amor sem a mediação do outro não chega nem a sussurrar em Suas orelhas. Porque se no tempo dos profetas bíblicos Deus havia prometido “esconder seu rosto,virar a face e tapar os ouvidos” (veja Is 1,15; Am 5,23) para aquela peça teatral da religião, é porque até ali Ele ouvia aquelas representações. Hoje, quando a performance do amor a Deus segue sem a devida mediação do outro, certamente Ele cumpriu o que prometeu: tapou os ouvidos e virou as costas.

Amemos a Deus no outro, e nada além. Nisso está toda a nossa declaração doutrinária e nossa convicção de fé quando sabemos que Deus é amor. Amemos a Deus no outro de todo coração, e nisso residirá nossa dádiva e todo nosso louvor (ainda que cantar faça bem à alma!). Porque se o outro, sobretudo o desgraçado e humilhado no chão da vida, não é essa epifania de Deus (Mt 25,31-40), Jesus então é o Charlatão da História. Porque se o encontro com o outro, seja lá quem for com suas idiossincrasias e vicissitudes, não for esse lugar e esse momento onde eu consigo cumprir toda Lei de Deus ao amá-lo (1Co 13,1-3; Gl 5,13-14), então Paulo de Tarso é o Co-Charlatão da História.

Não me lembro bem onde li isso, mas me apaixonei pela declaração de que “Deus é o maior de todos os humanistas da história”. É verdade e é simples assim, porque Deus é amor.

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

O TESTE DE RILKE


Somente agora ficou mais tangível para mim o que Rainer Maria Rilke (1875-1926) quis dizer numa carta destinada a Franz Xaver Kappus. Este, um jovem com pretensões de enveredar na senda da poesia, escreve ao já consagrado Rilke buscando orientações que lhe pudessem auxiliar na arte de escrever. Dentre tantas outras palavras, recebe de Rilke as seguintes, que, como eu disse, só agora ficaram mais vívidas para mim:

"O senhor me pergunta se os seus versos são bons. Pergunta isso a mim. Já perguntou a mesma coisa a outras pessoas antes. Envia seus versos para revistas. Faz comparações entre eles e outros poemas e se inquieta quando um ou outro redator recusa suas tentativas de publicação. Agora (como me deu licença de aconselhá-lo) lhe peço para desistir disso tudo. O senhor olha para fora, e é isso sobretudo que não devia fazer agora. Ninguém pode aconselhá-lo e ajudá-lo, ninguém. Há apenas um meio. Volte-se para si mesmo. Investigue o motivo que o impele a escrever; comprove se ele estende as raízes até o ponto mais profundo do seu coração, confesse a si mesmo se o senhor morreria caso fosse proibido de escrever. Sobretudo isto: pergunte a si mesmo na hora mais silenciosa da madrugada: preciso escrever? Desenterre de si mesmo uma resposta profunda. E, se ela for afirmativa, se o senhor for capaz de enfrentar essa pergunta grave com um forte e simples “Preciso”, então construa sua vida de acordo com tal necessidade; sua vida tem de se tornar, até na hora mais indiferente e irrelevante, um sinal e um testemunho desse impulso".

A iluminação dessa passagem de Rilke me foi possível agora graças a Sociedade dos Poetas Mortos, filme estrelado por Robim Willians. O filme, você sabe, não é novo. Mas também somente agora pude vê-lo. Trata-se de uma verdadeira pérola!

Não conheço teste vocacional no mundo que possa nos ajudar a discernir as pulsões mais profundas de nosso ser, às quais estão ligadas a plenitude de nossa realização existencial. O que os testes vocacionais podem fazer, no máximo, é tornar mais claras “cientificamente” certas inclinações que a pressão dos pais e a preocupação com o vestibular deixam embotadas nas mentes dos jovens. Quanto àquilo pelo qual eu e você morreríamos se privados fôssemos, os testes são totalmente inócuos. Duvido que o nosso Kappus, esse que foi a Rilke como a um conselheiro, pudesse descobrir por meio dos testes sua vocação poética.

Nesse caso o teste, parafraseando Rilke, só pode ser feito nas profundezas do coração. É no silêncio da madrugada e em comunhão somente consigo mesmo que se pode discernir se uma pulsão reflete o que há de mais legítimo dentro de nós mesmos. É pulsão existencial do íntimo por que é irresistível e inexplicável. E é irresistível e inexplicável porque é pulsão existencial do íntimo. Quando nos certificamos disso, o melhor a fazer é esquecer os “porquês” e obedecer à orientação de Rilke: construir nossa vida em função dessa necessidade [ou dessa pulsão do íntimo]...

Sociedade dos Poetas Mortos, entre outras coisas, conta a estória de Neil. Quem é Neil? Ah, simples: Neil sou eu e você! Pessoas nas quais os pais depositaram alguma esperança, projetaram algum sonho, e investiram muito para que isso acontecesse.

Neil foi uma dessas vítimas das expectativas dos outros. Mas no meio desse projeto o professor Keating sopra sobre a fogueira interior de alguns jovens, entre os quais Neil, e uma labareda se lhes ascende. Neil não quer mais ser doutor formado em Harvard, mas quer atuar na dramaturgia. Neil não quer construir sua vida a partir dos testes e dos afunilamentos da vida acadêmica e profissional. Descobre que a vida é alguma coisa grande demais para restringi-la somente a esses enquadramentos. No seu caso, venceram as razões do coração.

Não me resta dúvida de que foi essa a experiência que tiveram algumas pessoas da Bíblia. Não me resta dúvida de que, por exemplo, foi esse encontro com as dimensões mais profundas de sua subjetividade que tiveram Abraão, Moisés, todos os profetas e também Jesus de Nazaré. Esse último não foi poeta no sentido convencional. Mas como diria Marcos Monteiro, “foi poesia perambulante pelas ruas da Galiléia”. As narrativas todas acerca da vocação dessas personagens, estou ciente disso, estão todas apinhadas de elementos que remetem à relação vertical sujeito/objeto, como se todos tivessem ouvidos vozes procedentes de algum lugar exterior a eles mesmos. E não é mentira! Como produto da mentalidade vigente não poderia ser narrado doutra forma!

Todos ouviram a Deus – mas em si mesmos.

Faça o teste você mesmo e veja, melhor, e ouça. Escutar Deus é auscultar Deus – em nós. E não duvide: fica de fora todo esquema sujeito/objeto. Volto a mim mesmo e ausculto. Discirno se devotaria minha frágil e efêmera vida às pulsões que de mim procedem. Se respondo a mim mesmo: “Não”, posso até obedecê-la. Nesse caso, poderei até ser um bom advogado, arquiteto, religioso, mas no fim do dia direi a mim mesmo: “falta algo...” Mas se respondo a mim: “Sim, eu morreria se não pudesse seguir a essa pulsão, ela me preenche oceanicamente”, tenha certeza de que você acabou de ter uma experiência mística. E não duvide: o produto disso será Vida, tanto para você como para os demais.

Faça o teste!

O ABORTO NO MEIO DOS MUNDOS SIMBÓLICOS


Um dia desses ouvi o desabafo preocupado de um pai crente em relação à fé de sua filha, também crente, recém chegada na vida universitária. Temia ele que aquele novo mundo logo se materializasse numa camisa com a estampa de Che Guevara, no “esfriamento da fé inocente” e, o mais temível, que as convicções pentecostais da moça se esvaíssem junto aos rios das contestações racionalizantes.

E ninguém se engane: a vida acadêmica possui mais paralelos com a religião do que a maioria de nós possa imaginar. Costumo dizer que a universidade também é ambiente de conversões diárias. O tudo se fez novo também tem sua lógica ali. Também ela possui seus livros sagrados, seus profetas encarregados de transmitir mensagens em nome de outros iluminados, e ainda seu panteão particular. Além disso, a universidade, tal como a religião, exige seus ritos de passagem e de iniciação sem os quais não se pode acessar às suas produções simbólicas. Ela ajuda na re-significação do mundo, na instauração de uma nova mediação lingüística com as coisas, e, por fim, na construção de novos mundos.

Aquele pai pentecostal era apaixonado demais pelo seu próprio mundo. Tanto que, como qualquer pai zeloso, tinha a certeza que aquele outro mundo a ser penetrado pela filha era perigoso. Entrar nele significava abandonar o antigo, ou boa parte dele. E isso seria, a seu ver, um golpe duro demais de suportar.

É bem verdade que não necessitamos operar segundo uma dicotomia tão radical assim, como se qualquer desses “mundos simbólicos” coincidissem objetivamente com o mundo concreto dos fatos e fenômenos a nossa volta. Grande parte da desagregação do ser humano consiste nisto: em confundir seu mundo simbólico com o mundo de fato. Assim, os diversos mundos simbólicos só podem coexistir em oposição, nunca em complementaridade. E o exemplo clássico disso é a incurável querela entre fé e ciência.

Agora você pense na situação de um pastor transitando em meio a esses dois mundos. Melhor, pense na situação de tantos pastores, padres e demais pessoas que de certa forma tornaram-se totens do mundo simbólico da fé, e que transitam no centro do mundo simbólico da academia. Surgem daí as situações mais inusitadas possíveis. Para os crentes, você passa a ser uma espécie de âncora. Que é uma âncora? Ora, é aquele instrumento que nenhum navegador lembra da função até que seu navio precise aportar. Para os descrentes, você é um corpo estranho, um desfocado, ou, como ouvi numa certa ocasião, “um religioso esperto que veio aqui aprimorar as táticas de alienação alheia”.

***

A idéia do Marcos era que eu, pastor batista, e ele (o Marcos), católico praticante, ambos estudantes de Psicologia, redigíssemos um documento contrário à posição da ABRAPSO (Associação Brasileira de Psicologia Social) relativa à legalização do aborto. A ABRAPSO, a quem tanto estimamos, tem sido favorável à legalização do aborto, em determinadas circunstâncias, no Brasil.

Pelo que tenho visto até aqui, esse é um problema que vem recebendo tratamento somente a partir dos extremos. Por um lado, o discurso focado na situação da mulher, ser autônomo a quem não pode ser furtado o direito de decidir o que fazer de seu próprio corpo em determinadas situações. Por outro lado, o discurso focado na situação do embrião ou do feto, também um ser autônomo e distinto do corpo da mulher, a quem não se deve violar o direito mais fundamental de todos, que é o direito à própria vida.

O primeiro discurso, aquele defendido pela ABRAPSO, tende a ser identificado com as forças auto-intituladas progressistas da sociedade. É fortemente marcado pela voz da academia. Tende a compreender-se como uma espécie de contraponto aos discursos reacionários, entre os quais o discurso religioso. Nessa ótica, o discurso religioso deve se ater à dimensão privada da vida, deixando a dimensão pública a cargo das esferas consideradas competentes – entre as quais figura o discurso científico. Em termos subjetivos vigora aí a autonomia. Esse discurso se esquece, todavia, que é produto de um mundo simbólico entre outros. Comete o mesmo pecado denunciado por Nietzsche em relação à atitude religiosa: a de produzir bens simbólicos e depois esquecer sua natureza simbólica confundindo-a com a própria verdade das coisas.

O segundo discurso, aquele a que fui chamado a defender junto a meu amigo católico, tende a ser identificado com as forças reacionárias da sociedade. É fortemente marcado pela voz das igrejas. Tende a compreender-se como expressão da verdade dos fatos, mas com base heterônoma, isto é, idêntica à vontade de Deus e de sua Lei. Em termos subjetivos vigora aí a obediência às normas transcendentes que dão sentido último ao mundo. De certa forma, numa sociedade que há muito tempo já não admite mais essas tutelas transcendentes, esse discurso fica com a condição marginal. Nos estados laicos já não se pode mais admitir que o mundo simbólico da religião se imponha e se amalgame com as normas que dirigem a sociedade. É, portanto, um discurso com forte dose saudosista. É produto do mundo simbólico da fé, hoje profundamente enfraquecido quando se trata das macro-decisões que dirigem nossas vidas.

Penso que seja a oportunidade de resgatarmos um elemento fundamental do pensamento desse pouco explorado filósofo e teólogo chamado Paul Tillich. Refiro-me ao seu conceito (não sei bem se é ele o criador) de cultura teônoma. Teonomia, termo de difícil explicação, seria um conceito mediador entre a autonomia e a heteronomia. No nosso caso particular seria um caminho do meio entre o primeiro discurso (de defesa do aborto) e o segundo discurso (de negação do aborto) acima descrito. Nas palavras do próprio Tillich*, a teonomia afirma que a lei superior é, ao mesmo tempo, a lei inerente ao ser humano, mas baseada no fundamento divino que é o próprio fundamento do homem: a lei da vida transcende o ser humano, embora seja, ao mesmo tempo, a sua própria lei.

Uma vez que tanto a inclinação à autonomia radical quanto o servilismo à heteronomia cega vem deixando um rasto maior de sangue do que de amor no mundo, de minha parte vou pensando mais acerca dessa coisa de teonomia. Logo, o Marcos e a ABRAPSO vão ter que esperar antes que eu diga alguma coisa sobre o problema que fustiga a ambos. O que parece certo para mim é que a resposta a esse dilema esteja entre os discursos extremados a favor da mulher e do embrião/feto e entre os mundos simbólicos da autonomia e da heteronomia.

* Paul TILLICH. A era protestante. p. 85.