quarta-feira, 15 de outubro de 2008

O ABORTO NO MEIO DOS MUNDOS SIMBÓLICOS


Um dia desses ouvi o desabafo preocupado de um pai crente em relação à fé de sua filha, também crente, recém chegada na vida universitária. Temia ele que aquele novo mundo logo se materializasse numa camisa com a estampa de Che Guevara, no “esfriamento da fé inocente” e, o mais temível, que as convicções pentecostais da moça se esvaíssem junto aos rios das contestações racionalizantes.

E ninguém se engane: a vida acadêmica possui mais paralelos com a religião do que a maioria de nós possa imaginar. Costumo dizer que a universidade também é ambiente de conversões diárias. O tudo se fez novo também tem sua lógica ali. Também ela possui seus livros sagrados, seus profetas encarregados de transmitir mensagens em nome de outros iluminados, e ainda seu panteão particular. Além disso, a universidade, tal como a religião, exige seus ritos de passagem e de iniciação sem os quais não se pode acessar às suas produções simbólicas. Ela ajuda na re-significação do mundo, na instauração de uma nova mediação lingüística com as coisas, e, por fim, na construção de novos mundos.

Aquele pai pentecostal era apaixonado demais pelo seu próprio mundo. Tanto que, como qualquer pai zeloso, tinha a certeza que aquele outro mundo a ser penetrado pela filha era perigoso. Entrar nele significava abandonar o antigo, ou boa parte dele. E isso seria, a seu ver, um golpe duro demais de suportar.

É bem verdade que não necessitamos operar segundo uma dicotomia tão radical assim, como se qualquer desses “mundos simbólicos” coincidissem objetivamente com o mundo concreto dos fatos e fenômenos a nossa volta. Grande parte da desagregação do ser humano consiste nisto: em confundir seu mundo simbólico com o mundo de fato. Assim, os diversos mundos simbólicos só podem coexistir em oposição, nunca em complementaridade. E o exemplo clássico disso é a incurável querela entre fé e ciência.

Agora você pense na situação de um pastor transitando em meio a esses dois mundos. Melhor, pense na situação de tantos pastores, padres e demais pessoas que de certa forma tornaram-se totens do mundo simbólico da fé, e que transitam no centro do mundo simbólico da academia. Surgem daí as situações mais inusitadas possíveis. Para os crentes, você passa a ser uma espécie de âncora. Que é uma âncora? Ora, é aquele instrumento que nenhum navegador lembra da função até que seu navio precise aportar. Para os descrentes, você é um corpo estranho, um desfocado, ou, como ouvi numa certa ocasião, “um religioso esperto que veio aqui aprimorar as táticas de alienação alheia”.

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A idéia do Marcos era que eu, pastor batista, e ele (o Marcos), católico praticante, ambos estudantes de Psicologia, redigíssemos um documento contrário à posição da ABRAPSO (Associação Brasileira de Psicologia Social) relativa à legalização do aborto. A ABRAPSO, a quem tanto estimamos, tem sido favorável à legalização do aborto, em determinadas circunstâncias, no Brasil.

Pelo que tenho visto até aqui, esse é um problema que vem recebendo tratamento somente a partir dos extremos. Por um lado, o discurso focado na situação da mulher, ser autônomo a quem não pode ser furtado o direito de decidir o que fazer de seu próprio corpo em determinadas situações. Por outro lado, o discurso focado na situação do embrião ou do feto, também um ser autônomo e distinto do corpo da mulher, a quem não se deve violar o direito mais fundamental de todos, que é o direito à própria vida.

O primeiro discurso, aquele defendido pela ABRAPSO, tende a ser identificado com as forças auto-intituladas progressistas da sociedade. É fortemente marcado pela voz da academia. Tende a compreender-se como uma espécie de contraponto aos discursos reacionários, entre os quais o discurso religioso. Nessa ótica, o discurso religioso deve se ater à dimensão privada da vida, deixando a dimensão pública a cargo das esferas consideradas competentes – entre as quais figura o discurso científico. Em termos subjetivos vigora aí a autonomia. Esse discurso se esquece, todavia, que é produto de um mundo simbólico entre outros. Comete o mesmo pecado denunciado por Nietzsche em relação à atitude religiosa: a de produzir bens simbólicos e depois esquecer sua natureza simbólica confundindo-a com a própria verdade das coisas.

O segundo discurso, aquele a que fui chamado a defender junto a meu amigo católico, tende a ser identificado com as forças reacionárias da sociedade. É fortemente marcado pela voz das igrejas. Tende a compreender-se como expressão da verdade dos fatos, mas com base heterônoma, isto é, idêntica à vontade de Deus e de sua Lei. Em termos subjetivos vigora aí a obediência às normas transcendentes que dão sentido último ao mundo. De certa forma, numa sociedade que há muito tempo já não admite mais essas tutelas transcendentes, esse discurso fica com a condição marginal. Nos estados laicos já não se pode mais admitir que o mundo simbólico da religião se imponha e se amalgame com as normas que dirigem a sociedade. É, portanto, um discurso com forte dose saudosista. É produto do mundo simbólico da fé, hoje profundamente enfraquecido quando se trata das macro-decisões que dirigem nossas vidas.

Penso que seja a oportunidade de resgatarmos um elemento fundamental do pensamento desse pouco explorado filósofo e teólogo chamado Paul Tillich. Refiro-me ao seu conceito (não sei bem se é ele o criador) de cultura teônoma. Teonomia, termo de difícil explicação, seria um conceito mediador entre a autonomia e a heteronomia. No nosso caso particular seria um caminho do meio entre o primeiro discurso (de defesa do aborto) e o segundo discurso (de negação do aborto) acima descrito. Nas palavras do próprio Tillich*, a teonomia afirma que a lei superior é, ao mesmo tempo, a lei inerente ao ser humano, mas baseada no fundamento divino que é o próprio fundamento do homem: a lei da vida transcende o ser humano, embora seja, ao mesmo tempo, a sua própria lei.

Uma vez que tanto a inclinação à autonomia radical quanto o servilismo à heteronomia cega vem deixando um rasto maior de sangue do que de amor no mundo, de minha parte vou pensando mais acerca dessa coisa de teonomia. Logo, o Marcos e a ABRAPSO vão ter que esperar antes que eu diga alguma coisa sobre o problema que fustiga a ambos. O que parece certo para mim é que a resposta a esse dilema esteja entre os discursos extremados a favor da mulher e do embrião/feto e entre os mundos simbólicos da autonomia e da heteronomia.

* Paul TILLICH. A era protestante. p. 85.

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