domingo, 30 de novembro de 2008

MARCOS 10,46-52: UM EXERCÍCIO DEVOCIONAL


Introdução


Todo mundo já ouviu as expressões “alienação” e “povo alienado”. O que queremos dizer com essas expressões? Elas têm muitos sentidos diferentes. Mas, geralmente, o sentido mais usual de “alienação” talvez seja aquele quando dizemos que uma pessoa ou um povo não sabem direito das coisas. É uma pessoa ou um povo por fora das questões políticas, dos jogos da economia, do discurso ciência, enfim... Pessoas assim, dizemos, são pessoas alienadas. Não conhecem nem seus próprios direitos de cidadão. Do contrário, as pessoas que entendem disso tudo são as pessoas “esclarecidas”, “informadas” e “politizadas”.


É verdade que é muito bom quando as pessoas buscam informação sobre tudo. Quando fazemos isso, só temos a ganhar. Ser alguém informado é vantajoso para que não se seja “massa de manobra”, “maria vai com as outras”, ou para que se tenha opinião própria e não se deixe enganar por ninguém. Mas há uma coisa importantíssima: parece que de nada vale sermos tão informados se nos faltam dimensões da vida como a fé, a esperança, e em linguagem bíblica, “a visão do Reino de Deus”, que é espiritual, e por isso mesmo demasiadamente humano. Bartimeu é um exemplo disso!


1. Bartimeu - Cego, mendigo, e à beira do caminho: um sujeito alienado?


Diferentemente de outras narrativas evangélicas (cf. João 9, por exemplo), não sabemos as origens da cegueira de Bartimeu (v.46). Não sabemos se ela era de nascença ou se fora posteriormente adquirida (diabetes, glaucoma, catarata, etc.). É muito provável que sua doença viesse recebendo a significação corriqueira na época, que estava agregada à presença de espíritos malignos. Se isso for correto, esse seria mais elemento oculto no texto que traz à tona mais uma força de opressão sobre aquele homem. Por outro lado, é quase certo que o “ser mendigo à beira do caminho” indique que ele não fosse uma pessoa muito informada das coisas no sentido expresso acima.


Naquele tempo, o acesso à informação era escassíssimo. Sobejava a multidão iletrada (embora eu reconheça que ser iletrado e ser desinformado não sejam a mesma coisa). O acesso ao letramento era quase uma exclusividade da casta sacerdotal e de certos grupos religiosos tradicionais, como os escribas e fariseus, saduceus e essênios, por exemplo. Não que a condição de cegueira e mendicância fosse um determinante em si mesmo da condição iletrada. Mas era um condicionante de muita força. Era com base nisso que, segundo informa o Evangelho de João, as elites religiosas de Israel alimentavam uma abusiva relação opressora em relação às massas (veja João 7,49).


2. Todavia, o clamor de Bartimeu demonstra que ele não era de todo alienado


“Filho de David”, a maneira como Bartimeu se refere a Jesus de Nazaré (v. 47), era uma das formas como as pessoas se referiam ao esperado Messias. Era o que nós, teólogos acadêmicos de hoje, chamamos de “título cristológico”. Era tempo de cativeiro romano. É bem verdade que era um modelo de cativeiro diferente dos anteriormente enfrentados por Israel. Mas era cativeiro, e cativeiro é sempre cativeiro. Qualquer que seja a forma, o conteúdo é sempre o peso da espoliação, da negação de valores nacionais, da opressão econômica, cultural, e etc. Essas coisas todas certamente faziam parte das conversas entre as pessoas “conscientizadas” e “politizadas” daqueles dias em Israel.


Bartimeu, todavia, poderia ser uma pessoa pouco informada sobre essas coisas de fato “importantes”. Mas à sua maneira, Bartimeu estava bem antenado. Mesmo cego, seus “olhos espirituais” estavam o tempo todo bem abertos. Gritar “Filho de David”, para além de ser um clamor pessoal, indica que ele mantinha profunda sintonia com as esperanças messiânicas de sua nação. De dentro da escuridão biofísica, Bartimeu fazia notar a lucidez (relativa à “luz”) de quem está bem informado pelo imaginário espiritual de seus pares judeus. Isto é, Bartimeu na verdade via muito, porque via com os olhos esperançosos de seu povo!


3. Quando nossa “sede oceânica” é atiçada, nada mais nos impede de “ver a Deus”


A resistência e a insistência de Bartimeu em receber o milagre (v. 48) são demonstrações de que nada e ninguém mais podem ser barreiras entre um homem e uma mulher cujo desejo é “ver a Deus”. Quando essa necessidade existencial se nos abre, todo nosso desejo se volta para Deus, e não importa o que os outros digam ou pensem. A “sede oceânica” que nos invade é capaz de enfrentar toda oposição. Acaba o temor, e entra em cena uma “santa insistência” em ser de Deus e em “ver a Deus”.


Quando a “sede oceânica” nos invade, muitas das antigas barreiras e restrições ficam minúsculas em face da nova experiência espiritual. Pedro, Tiago e João nem sequer lembraram da necessidade do ofício que lhes garantia o pão diário. Aquilo ficou minúsculo em face da “sede oceânica” que lhes invadiu. Largaram tudo (Lucas 5,1-11)! Zaqueu, homem de status e importante figura estratégica do sistema tributário romano, “paga o mico” e esquece o constrangimento de, trepado numa árvore, ver a Jesus passar (Lucas 19,1-10). Bartimeu, cego e mendigo – por tabela alguém cuja fragilidade física e a auto-estima estão inferiorizadas em relação à média –, encontra força tal para resistir à oposição daqueles que o repreendiam (v. 48).


Essa tal “sede oceânica”, essa resistência espiritual ao flagelo da vida expressa nas formas religiosas do povo oprimido, é algo a ser considerado, mesmo que sejamos ateus, e muito mais se desejamos ser “teólogos da libertação”.


4. Quando o/a homem/mulher expressa pública ou intimamente o seu desejo, cresce sua confiança em Deus e inicia-se o seu processo libertador


Parece uma pergunta sem sentido a que Jesus fez a Bartimeu (v. 51). Hoje diríamos tratar-se de uma “pergunta retórica”. Mas a pergunta retórica é interessantíssima. Parece ingênua, mas não é. Até Carl Rogers se apercebeu disso em seu método terapêutico. A pergunta retórica faz o sujeito se voltar para a sua própria questão. Faz o sujeito se debruçar sobre o seu próprio objeto de desejo. Perguntando “o que você quer que eu faça Bartimeu?” Jesus devolve ao sujeito a responsabilidade de pensar no objeto de seu próprio desejo. “Quero voltar a ver”, naquele caso, era a expressão de um desejo genuíno. E nossos desejos genuínos só podem ser discernidos por nós mesmos com tal precisão a ponto de dizermos no meio da praça: “quero ver!”.


Ademais, não só Jesus sabia, mas todos ali sabiam que ele era cego. Jesus sabia disso muito mais que todos. Penso que o que Jesus intenta é que, ao expressar seu desejo, Bartimeu coopere no seu processo de cura e de libertação. É assim mesmo que acontece na oração. Ao exteriorizarmos nossas petições, a “cura” e a libertação já se iniciam. Afinal, conforme Jesus, “o vosso Pai conhece todas as vossas necessidades antes que vocês as expressem” (Mateus 6,8).


Conclusão


As pessoas informadas e “conscientizadas” de nossa sociedade, isto é, as “não-alienadas”, deveriam se dar conta da força espiritual e existencial de gente como Bartimeu. Quando não se dão conta disso, passam a engrossar a fileira daqueles que adjetivam de alienados. E, diga-se de passagem, Bartimeu continua muito vivo na biografia de milhões de pessoas vitimadas pelas atuais circunstâncias estruturais e também pessoais.


Nós, de postura auto-intitulada progressista e libertária, deveríamos levar mais em consideração os projetos de libertação escolhidos pelo próprio povo “oprimido”. Afinal, alardeamos na nossa teoria que “o pobre deve ser o próprio sujeito de sua libertação”. Mas ao mesmo tempo, insistimos em que essa libertação se dê conforme o projeto pronto que nós escrevemos e idealizamos. Talvez seja ideal mesclar criticamente os clamores e gritos dos bartimeus de hoje com esses nossos projetos libertários, que também são escritos com muito boa vontade. Mas ainda assim, se não se abrem para a experiência libertadora e para a “sede oceânica” do povo, ficam tão cegos quanto o próprio Bartimeu antes de seu encontro com Jesus.

domingo, 23 de novembro de 2008

APOCALIPSE 17 E 18: UMA RELEITURA


Eu acabei de reler os capítulos 17 e 18 do livro bíblico do Apocalipse. Eles descrevem a ruína de Babilônia. Um primeiro pensamento que me ocorreu após esse exercício devocional, confesso, foi uma sensação de estupidez ligada à interpretação clássica desses textos pelo imaginário das Igrejas Evangélicas. Eu aprendi desde as primeiras lições na EBD (Escola Bíblica Dominical) que a Babilônia ali é uma figura da Igreja Católica. E que o texto era um prognóstico de sua destruição.

Babilônia, a antiga capital da Suméria e Acádia, de fato já não existia no tempo em que o Apocalipse foi escrito, por volta de 96 d.C. Portanto, sua menção nominal ali de fato é um artifício de linguagem. É a expressão velada de uma revolta. Mais ou menos como fez o Chico Buarque de Holanda com o ...Pai, afasta de mim esse cálice... no período da ditadura militar no Brasil. É a exploração inteligente das amplas possibilidades da linguagem em meio à censura e à castração da liberdade de expressão.

Mas não podemos cometer a infâmia de pensar que o próprio texto da Escritura tenha sido escrito à imagem e semelhança do Protestantismo Brasileiro, isto é, que ele seja anticatólicoo.

Aqui, uma denúncia: esses textos não respaldam aquilo que construímos historicamente, ou seja, a nossa condição de inimizade declarada com a Igreja Católica. Pelo contrário, esses textos respaldam aquilo que nunca quisemos ser historicamente, isto é, inimigos dos ídolos reais que oprimem os povos! Porque o texto é escancaradamente anti-imperial!!!

Sim, o texto é anti-romano. Mas não é o prognóstico do declínio de nenhuma Instituição Religiosa de agora. Antes, é o testemunho de um desejo ardente de que o opressor Império Romano feneça. E esses textos só ganham caracteres prognósticos na medida em que sua força espiritual nos impulsione a uma fé anti-imperial hoje.

Nessa leitura também me dei conta de quão anacrônica é a nossa fé e a nossa postura cristã-protestante no mundo. Sem os instrumentais analíticos das Ciências Sociais dos quais dispomos hoje, os textos bíblicos em destaque falam da opressão imperial por via da economia. Sem análise conjuntural, sem marxismo, sem estatísticas e sem diagnose social, os textos ainda assim entendem que o Império e a estrutura econômica que lhe sustenta, em sua influência oni-abrangente, vitima os miseráveis da terra, e, portanto, merece a sentença divina.

Não posso compreender como em nome dos textos das Escrituras ainda sejamos empurrados para fora do mundo. Dispomos hoje de todo um aparato intelectual de excelência – Sociologia, Economia, Ciências Políticas, Psicologia Social, por exemplo – para decifrarmos os meios pelos quais se dão os novos modos de dominação e as novas violências imperiais. Mas surpreendentemente nada disso nos interessa.

Os versículos do capítulo 18,11-20 dizem respeito ao pranto dos mercadores diante da destruição de Babilônia. E ao final consta a conclamação à exultação evangélica diante da coisa toda (18,20). Algumas perguntas a serem feitas são: por que aqueles cristãos desejavam exultar ante a derrocada de um sistema de relações comerciais? O que havia nesse sistema de relações comerciais que suscitasse o desejo de seu desaparecimento por parte do povo de Deus? Por que aquele sistema de relações comerciais fazia parte do discurso evangélico daqueles cristãos? Se o que importava era a salvação pessoal dos eleitos, o discurso de negação de um sistema de relações comerciais não compareceria com uma digressão esquisita? O mundo das relações comerciais não faz parte daquele vil destino à condição laboral que nos foi imputado após a transgressão do Éden?

Só posso pensar que as intuições do autor (ou “dos autores”) dos textos em questão tenham sido germinadas em profunda comunhão com o Espírito de Deus. Sim, porque já esse autor saca com maestria e perspicácia que o mundo do trabalho e das relações comerciais, por sua amplitude oni-abrangente, tem maior poder para oprimir que qualquer outro artifício humano. A riqueza econômica humana, toda ela, é produto de nossa atividade laboral. E é justamente por aí que passam as formas mais recorrentes de pecado que o homem inventou. Porque a guerra, em toda sua monstruosidade, é sempre uma calamidade transitória. Ademais, sua crueldade exige lapsos de tempo bem mais exíguos. Mata-se velozmente. Porque ali o tempo é um fator decisivo.

Com o mundo do trabalho a coisa é diferente. Sua crueldade por vezes exige que as vítimas míngüem e vertam até a última gota de sangue ou de suor. A ele pertence uma dialética tão em voga em nossos dias: a da exclusão/inclusão. E também nós já estamos nessa corrida desenfreada para garantir nossa inclusão nesse arranjo sistemático. Estamos nas universidades, nos cursos técnicos, nas pós-graduações. E nem nos damos conta de que esse processo é dialético, ou seja, que a minha inclusão não existe sem o seu revés: a exclusão de outrem. As dessimetrias classistas também são filhas do mundo do trabalho e das relações de comércio. Porque nunca houve produção de riqueza seguida da equitativa distribuição das mesmas entre os humanos. E aqui também o processo é dialético: toda produção de riquezas implica na produção de dominação. Toda concentração de riquezas num lado implica na exploração do outro.

Engraçado que Lutero, com toda sua ambigüidade, ainda ultrapasse amplamente a maioria de nós. Não podia suportar a usura dos comerciantes cristãos de seu tempo. Via no mundo do trabalho e das relações de comércio de seus dias uma terrível profanação, assim como os primeiros cristãos viram no Império e na Babilônia essa mesma profanação e a relataram no Apocalipse. Lutero escreveu de forma virulenta contra aqueles que haviam tornado a necessidade do outro uma fonte de lucro.

Portanto, não tenho dúvidas de que se trata mesmo, no caso do Apocalipse, de um texto inspirado. E pelo que me lembro, entrou bastante tardiamente no Canon oficial das Escrituras. Foi o último na composição do Novo Testamento. Mas entrou a tempo de nos fazer perceber que não existe pertinência evangélica sem o paradoxal movimento de negação e de amor ao mundo. Amo o mundo na medida em que penetro em suas entranhas para compreender-lhe a partir de si mesmo. Nego-o na medida em que ao invadir suas entranhas, me deparo com criações e artificialidades anti-evangélicas, desumanizantes e pecadoras. O reconstruo em amor, a partir do Evangelho, que é paz, alegria e justiça no Espírito Santo!

O autor de Apocalipse sabia disso tudo antes de mim. Se convidou a todos a que jubilassem a queda de Babilônia, é porque estava embevecido desse paradoxo de negação do mundo e de amor ao mundo – negação da opressão que se dá por meio do mundo do trabalho e das relações de comércio – amor pelos seres humanos espoliados por isso.

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

A ESPIRITUALIDADE DE EINSTEIN E SAGAN


Cheguei à conclusão de que nem a mais profunda decepção com a Instituição Religiosa seria suficiente para que eu me tornasse um homem “sem espiritualidade”. Nem a mais profunda decepção com as pessoas mais piedosas que conheço serviria para abalar a dimensão espiritual em mim. Sim, porque tanto o referencial da Instituição Religiosa quanto o testemunho de pessoas santas servem também como uma espécie de “base complementar” para nossa experiência espiritual, além da nossa própria convicção pessoal.

Mas é bem verdade que nesses tempos atuais nem todas as pessoas pensam como eu. Muita gente se assume profundamente espiritual a despeito das Instituições Religiosas e do referencial de outras pessoas. Desde que se operou a distinção entre religiosidade e espiritualidade, muita gente se sente solta para cultivar a espiritualidade fora das paredes dos templos.

Isso nunca agradou as instâncias oficiais que gerenciam o arcabouço simbólico das religiões. E essa espiritualidade “espontânea” fica sempre com a pecha da marginalidade. De certa forma, o próprio Jesus de Nazaré teve que enfrentar esse de tipo de censura nos seus dias. Sua espiritualidade não foi oficial, mas marginal. E penso que hoje a oficialidade dos múltiplos cristianismos talvez repetissem o que a oficialidade judaica de seu tempo fez com ele.

Carl Sagan, falecido astrofísico estadunidense e popularizador da ciência [cuja réplica no Brasil tem sido a figura de Marcelo Gleiser], chega a afirmar estranhamente que a espiritualidade é um dos produtos resultantes da própria atividade científica. Obviamente, não podemos nos iludir a ponto de pensar que Sagan está falando da espiritualidade preconizada pela Religião. Não! Espiritualidade aí é o produto da contemplação de nosso lugar na inefável grandeza do universo. Em O mundo assombrado pelos demônios Sagan chega a dizer que “a ciência não é só compatível com a espiritualidade; é [também] uma profunda fonte de espiritualidade”. Segue ainda dizendo que:

“Quando reconhecemos nosso lugar na imensidão de anos-luz e no transcorrer das eras, e quando compreendemos a complexidade, a beleza e a sutileza da vida, então o sentimento sublime, misto de júbilo e humildade, é certamente espiritual”.

Antes disso, Einstein – quer era judeu de raça, mas não de religião – parece ter dito as mesmas coisas com palavras diferentes. Para mim Einstein até teve mais ousadia do que Sagan – obviamente em função de sua maior genialidade. Porque para aquele a espiritualidade não era somente um produto da atividade científica, como dizia Sagan, mas era o próprio poder oculto na biografia de cientistas famosos. Einstein falava em religiosidade cósmica. Em outras palavras, trata-se daquele mesmo vislumbre perante o universo enunciado por Sagan. Assim ele a explica em Como vejo o mundo:

“O ser experimenta o nada das aspirações e vontades humanas, descobre a ordem e a perfeição onde o mundo da natureza corresponde ao mundo do pensamento. A existência individual é vivida então como uma espécie de prisão e o ser deseja provar a totalidade do Ente como um todo perfeitamente inteligível”.

Einstein admite a presença germinal dessa religiosidade cósmica já em alguns Salmos de David e em alguns profetas bíblicos; em seguimentos do Budismo e em Schopenhauer; nos gênios religiosos e também nos hereges de todos os tempos; em Demócrito, São Francisco de Assis e em Espinoza, por exemplo. Essa religiosidade cósmica, segue Einstein, “não tem dogmas nem Deus concebido à imagem do homem, portanto nenhuma Igreja a ensina”. Em função da sempiterna voracidade de poder das Oficialidades Religiosas, explica nosso físico, homens e mulheres dessa estirpe sempre foram considerados subversivos, ou mesmo ateus. Não obstante, a vontade de fusão na totalidade do Ser encontrada nessas pessoas religiosas, é a mesma que movia as vidas de cientistas como Kepler e Newton, por exemplo.

Nunca houvesse sido erigida uma única Religião Organizada sequer, teríamos ainda mil motivos para ser profundamente espirituais. Porque não bastasse essa sublimidade estonteante do universo apontadas por Einstein e Sagan, o próprio mistério da vida convoca a uma atitude de reverência. O próprio mistério do Ser Humano, enquanto espécie sui generis na terra, nos convida a dedicar-lhe algum tempo. O que brota daí é espiritualidade em sua mais autêntica expressão.

Pequeno, eu chamava meu pai de painho. Coisa típica da Bahia. Um professor meu, gaúcho, disse certa vez que lá no sul isso soaria pouco masculino (os gaúchos e seu velho complexo de masculinidade!). Outros usam simplesmente “pai”, ou “papai”, para se referir ao seu genitor. Nós usamos “Deus” para falar da fonte primária de tudo isso. Einstein e Sagan usavam outros nomes. Somente os nomes são diferentes, mas no fundo, todos estamos falando de uma coisa só. E só se pode falar dessa “uma coisa só”, ainda que num breve texto como esse, se não abdicamos de nossa espiritualidade a despeito de nada.

LEIA MENOS, PENSE MAIS!


“Quem pensa por si mesmo é livre, e ser livre é coisa muito séria...” (Renato Russo)

Há bem poucos dias eu andava por aqui me queixando da queda em meu ritmo pessoal de estudos. É um tipo diferente de neurose, que tem forma de autopunição intelectual, e se manifesta nessa cobrança auto-imposta por leituras e estudos. Voltei a pensar que aquele adágio popular, “quem estuda demais fica doido”, pudesse ser verdadeiro. Como se o sumo bem da vida consiste em devorar pilhas de livros. E como se precisássemos disso como forma de auto-afirmação diante dos outros.

Bobagem pura!

Ser um devorador de livros, pelo contrário, denuncia o quanto somos tolos!

Comumente reverenciamos as pessoas ditas “inteligentes”. Olhamos os acadêmicos com uma admiração silenciosa, e por vezes nos projetamos neles. E sempre que fazemos isso repetimos a confusão entre ciência e sapiência.

Eu, pessoalmente, ando mesmo é desencantado com a maioria dos intelectuais e acadêmicos que conheço. Não estou a fim de seguir os passos de nenhum deles. E não tenho dúvidas de que a própria Universidade, enquanto espaço de produção de novos intelectuais e acadêmicos, também aliena por formar justamente esses acadêmicos irrelevantes com os quais não quero me aparentar.

Paulo Freire (Pedagogia da Autonomia) falava sobre uma espécie de intelectuais a quem chamava criticamente de “memorizadores”:

“O intelectual memorizador, que lê horas a fio, domesticando-se ao texto temeroso de arriscar-se, fala de suas leituras quase como se estivesse recitando-as de memória – não percebe, quando realmente existe, nenhuma relação entre o que leu e o que vem ocorrendo no seu país, na sua cidade, no seu bairro. Repete o lido com precisão mas raramente ensaia algo pessoal. Fala bonito de dialética mas pensa mecanicistamente. Pensa errado. É como se os livros todos a cuja leitura dedica tempo farto nada devessem ter com a realidade de seu mundo (...).

Mas antes de Paulo Freire, quem “pegou pesado” mesmo com os intelectuais memorizadores, acadêmicos universitários e eruditos puros foi Arthur Schopenhauer. Numa fantasia do pensamento, pensei que se eu fosse reitor de Universidade, de Seminário, ou diretor de Escola, promulgaria lei que levasse à leitura em cada classe, no primeiro dia do ano letivo, da seguinte passagem de Schopenhauer (A Arte de Escrever):

“A peruca é o símbolo mais apropriado para o erudito puro. Trata-se de homens que adornam a cabeça com uma rica massa de cabelo alheio porque carecem de cabelos próprios. (...) O excesso de leitura tira do espírito toda elasticidade, da mesma maneira que uma pressão contínua tira a elasticidade de uma mola. O meio mais seguro para não possuir nenhum pensamento próprio é pegar um livro nas mãos a cada minuto livre. (...) Os eruditos são aqueles que leram coisas nos livros, mas os pensadores, os gênios, os fachos de luz e promotores da espécie humana são aqueles que as leram diretamente no próprio livro do mundo. (...) Assim, uma pessoa só deve ler quando a fonte de seus pensamentos próprios seca, o que ocorre com bastante freqüência mesmo entre as melhores cabeças. Por outro lado, renegar os pensamentos próprios, originais, para tomar um livro nas mãos é um pecado contra o Espírito Santo. (...) Ler significa pensar com uma cabeça alheia, em vez de pensar com a própria. Nada é mais prejudicial ao próprio pensamento".

Confesso que tomei um susto quando li pela primeira vez, em Discurso do Método, Rene Descartes afirmando que para alcançar um conhecimento verdadeiro sobre as coisas, o primeiro passo que ele tomou foi o de esquecer tudo o que aprendeu no melhor colégio da Europa de então – La Fleche:

“Eu sempre tive um enorme desejo de aprender a diferenciar o verdadeiro do falso, para ver claramente minhas ações e caminhar com segurança nesta vida. (...) Após dedicar-me por alguns anos em estudar assim no livro do mundo, e em procurar adquirir alguma experiência, tomei um dia a decisão de estudar também a mim próprio e de empregar todas as forças de meu espírito na escolha dos caminhos que iria seguir. Isso, a meu ver, trouxe-me muito melhor resultado do que se nunca tivesse me distanciado de meu país e de meus livros”.


Mas não são justamente as Escolas, as Universidades e os outros Centros de Formação da vida que carregam a tarefa de nos “instruírem” e nos ajudarem a “forjar nossos conhecimentos”?

Sim, salvo se eles não esquecerem o fato de que não é de “perucas” que precisamos. O que nós precisamos é de centelhas de conhecimento que aticem nosso pensar próprio. Porque nossas cabeças são fogueiras! O conhecimento alheio só será pertinente na medida em que for fomento para a liberdade do próprio pensar de cada um de nós. Caso contrário, no lugar de nos “instruir” esse conhecimento vai “destruir” nossa liberdade criativa e nossa inventividade. E no lugar de “forjar nossos conhecimentos” vai “forjar nosso aliciamento às algemas epistemológicas alheias”.

Eu já decidi que não quero isso pra mim! Parei de reclamar pelo fato de estar lendo pouco. Porque, reitero, não quero peruca: quero fogo!

terça-feira, 18 de novembro de 2008

MARX VERSUS MARXISTAS


Se eu fosse espírita, pediria a Deus para que na próxima reencarnação me fizesse aranha. Mas não é a sua belíssima teia que me fascina, mas seus oito olhos. Mas também não são seus oito olhos em si que me fascinam. Mas a metáfora que eles provocam. Ver o mundo com oito olhos, ou mais, é o que todos devemos fazer se quisermos vê-lo em toda a sua beleza.

Me assustei quando vi a faixa esticada na frente da Biblioteca Central da UFAL. Era o anúncio de um seminário promovido pelos estudantes de Filosofia: O funeral inconcluso: A insuperável filosofia marxiana para o século XXI. Apenas esse ano é o terceiro evento cujo tema central é esse: a filosofia de Karl Marx. Participei dos outros dois primeiros. Gosto de Marx! Mas duvido que o mesmo ficasse satisfeito se pudesse saber o que se passa com os seus ditos seguidores do século XXI em Alagoas.

Marx não seria marxista ortodoxo nos dias de hoje. Nesse tempo de novas demandas políticas, sociais, econômicas e conjunturais como um todo, Marx seria um “revisionista”. Hoje ele falaria mais em “pobretariado” do que em proletariado. E ao assistir a performance dessa cultura de massa, falaria em “ideologia” de outra forma. Atitudes que o tornaria suspeito entre os marxistas atuais da UFAL. Seria Marx versus marxistas alagoanos!

Sim, porque os tais se imaginam em pleno século 19. Viram as costas para um mundo de transformações ocorridas nesses 160 anos desde a publicação do Manifesto Comunista em 1848. Não conseguem ver os limites e os recortes que o marxismo ortodoxo ainda não podia dar conta naquele momento. E chamam pejorativamente de “revisionistas” a todos aqueles e aquelas que tentam dar conta dessas insuficiências. Nada sabem sobre a opressão da raça e do gênero, por exemplo.

Foi Erick Hobsbawm quem disse que “Marx não regressará como uma inspiração política para a esquerda até que se compreenda que seus escritos não devem ser tratados como programas políticos, mas sim como um caminho para entender a natureza do desenvolvimento capitalista”*. Mas os marxistas de agora pensam diferente. E querem eles, em nome dos trabalhadores, ascender ao poder por via de uma revolução que nunca se viabiliza na prática. Eu não temeria tanto uma “ditadura do proletariado”. Mas morreria de medo de uma ditadura desses marxistas que nunca souberam o que é a miséria na sua carne.

O que eu penso mesmo é que esses sujeitos são bastante religiosos. Fundamentalistas com tudo o que têm direito: messias (Marx), credo apostólico (Manisfesto Comunista), panteão particular (Lenin, Mao Tse Tung, etc.) e corpo doutrinário (materialismo histórico e dialético). Deram forma secular a um dos piores legados da religião, que é o pensamento único. Não conseguem enxergar o mundo senão com as lentes do marxismo ortodoxo.

Nesse sentido, não há como não entrar no campo da epistemologia.

Não sabem eles que a própria razão humana vem resistindo feroz e secularmente ao império do pensamento único. Nem é preciso falar nada acerca do oceano de revisões e revisões teóricas produzidas em cada campo do conhecimento humano todos os dias. Basta falar nas próprias modalidades de relação com o real que a razão humana criou: o senso comum, a filosofia, a ciência, a arte e a própria religião.

Todas essas modalidades se constituem em possibilidades de construção do real. Porque o real não nos está dado fora de nossa relação com ele. O real se torna tal desde nossa interação com o mesmo. Pensando assim, não existe, a rigor, conhecimento humano que seja ilegítimo em si mesmo, uma vez que todo ele é produto dessa nossa relação exasperada com o real, querendo conhecê-lo. Todo ser humano aspira naturalmente ao conhecimento, dizia Aristóteles no princípio de sua Metafísica. Hoje já sabemos que essa busca instintiva não quer dizer um desvelamento do que o real é, mas a construção mesma do real por nós.

Portanto, Deus que me livre de ver o mundo (ou de construir o real) com uma lente só. Quero os olhos da aranha. O que não entrar no campo de visão de um olho, entra no do outro. E quanto mais olhos, mais larga em extensão será a visão. Aí o senso comum dialoga com a ciência, que mergulha na fruição da arte – da poesia, da música, da plasticidade –, que medita junto à filosofia, que contempla à luz da religião. E o mundo fica mais colorido. E sem esquecer que o próprio Marx tem um lugar de honra nisso tudo!

sábado, 15 de novembro de 2008

A CRISE ECONÔMICA E A FOBIA DOS PROFETAS


Não posso esconder que a idéia de “sociedade secularizada” me provoca um certo contentamento. O “mundo emancipado e adulto”, tematizado por Bonhoeffer, mundo que alcançou a maioridade e deixou pra trás a dependência das cangas da religião organizada, esse mundo é para mim uma tentação, um flerte, em quem encontro um prazer recatado. Mas em nome da religião organizada e de sua pertinência ancestral, temos que viver de recalque em recalque a esse sonho secularista. Isso é uma confissão. E não vou negar que é isso que sinto verdadeiramente.

Mas também não posso negar que boa parte desse processo secularizador deu-se sobre bases religiosas. Por exemplo, interpreto (criticamente) os movimentos sociais de agora como formas secularizadas das esperanças evangélicas que tombaram no percurso histórico do Cristianismo. Para mim, a “voracidade de poder” das igrejas cristãs custou a morte dessas esperanças, que hoje pululam aqui e acolá nos movimentos sociais.

Mas meu flerte com o mundo “adulto e emancipado” não se faz acriticamente. Também este vai dando mostras suficientes de que ainda não é bem a síntese que desejamos.

Aponto somente uma razão que me faz pensar assim. E nisso, penso, o mundo secularizado repete tacitamente a atitude do mundo sob a égide religiosa. Refiro-me à fobia dos profetas. Tal como o mundo balizado pelas religiões organizadas, o mundo secularizado, adulto e emancipado tem medo dos profetas.

Quero iluminar a questão com um exemplo prático e atual.

O mundo todo anda estupefato com as oscilações em Wall Street. Mesmo nós, que pouco sabemos sobre conjuntura econômica, começamos a organizar nossas vidas em sintonia com os atuais dilemas do mercado mundial globalizado. Aqui e ali encontro pessoas que já refizeram planos e adiaram sonhos de consumo. Temerosas acerca dos próximos desdobramentos do chacoalhar da economia mundial, essas pessoas desistiram da compra de carros, casas, viagens parceladas e outros compromissos que demandassem financiamentos longos. Se há fundamento verdadeiro por trás dessas ações, não sei. Mas fenomenologicamente elas são uma demonstração explícita do poder dessa teia global na qual estamos todos integrados.

Mas o fato que eu gostaria de mencionar, é que muito antes de todo esse alarde em torno dos atuais desarranjos econômicos, muitos Teólogos/as (sim, T-E-Ó-L-O-G-O/A-S!!!) anteciparam-se com discursos proféticos que alertavam as sociedades contra um modelo de economia que era insustentável a médio e longo prazo. Não falavam na condição de economistas, mas na condição de profetas evangélicos. Mas com as categorias analíticas próprias das Ciências Humanas, diziam ao mundo que o pior pecado desse sistema de relações econômicas estava no seu “DNA antievangélico”, excludente (para dois terços dos seres humanos), opressor (concreta e simbolicamente) e imperialista (identificado com centros geográficos bem definidos).

Recomendo, a despeito de dúvidas a esse respeito, uma investigação em torno desses nomes: Hugo Assmann, Jung Mo Sung, Franz Hinkelammert, Ulrich Duchrow, Ignacio Ellacuria, Jon Sobrino, José Comblin, Juan Luis Segundo, Leonardo Boff e Elza Tamez. Esses são somente alguns nomes acerca dos quais consigo lembrar sem consulta.

Em certa medida, observando as especificidades de cada um desses articuladores, todos apontaram para o que Assmann se referia como sendo uma idolotria do mercado. Aplicar a idolatria como chave interpretativa em relação ao mercado mundial globalizado significa dizer que este assumiu as características da “idéia de Deus”. Mas essa identificação da idolatria do mercado não se faz por simples analogia. Antes, faz-se a partir do reconhecimento da auto-divinização mesma do mercado ao impor-se como um absoluto para as pessoas, como objeto de esperança ditando as “leis do sucesso”, o perfil do homem e da mulher bem-sucedidos (nesse caso, os consumidores), e, por tabela, identificado os interesses dos grupos dominantes com os interesses de todos e com os da natureza.

Confira você mesmo, num exemplo, se a tipologia dos ídolos modernos elaborada por Jon Sobrino não explica muito da bifurcação econômica pela qual atravessa o mundo agora:

(1) os ídolos [nesse caso, o mercado] apresentam características de divindades: ultimacidade (não se pode ir além deles), autojustificação (não necessitam justificar-se a si mesmos diante dos seres humanos), intocabilidade (não podem ser questionados e quem o fizer será destruído);

(2) agregam a si instituições sociais como instrumentais de ação: poder militar, político, patriarcal, cultural, étnico, judicial, intelectual e também com freqüência o poder religioso;

(3) exigem culto: as práticas cruéis do capitalismo;

(4) exigem uma ortodoxia: exigem uma ideologia acompanhante [neoliberalismo?] e prometem salvação a seus adoradores, isto é, torná-los semelhantes aos ricos e poderosos do primeiro mundo.

Li em Nietzsche (O Anticristo) que “o proprium de toda grande idolatria reside no fato de que ela apaga no ser idolatrado idiossincrasias e feições originais, feições com freqüência penosamente estranhas; ela mesma sequer as enxerga”. E ouvi de Jorge Nery, numa aula de Mentoreamento em 2001, que “todo ídolo, quando se quebra, é odiado pelo idólatra”. Nietzsche tem razão quanto a relação entre os homens que “movem o mundo” das relações econômicas hoje e seu ídolo (o mercado). Queira Deus que agora Jorge também tenha razão em seu aforismo.

Sim, os profetas precisam ser ouvidos. Eu já sabia que eles não eram da ordem da religião organizada. Agora vejo que também não são da ordem do mundo “emancipado e adulto”. Eles devem pertencer a essa síntese que buscamos e que ainda não sabemos o nome. Melhor, sabemos o nome, mas esquecemos o significado profundo: Evangelho.

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

RELIGIOSIDADE E ESPIRITUALIDADE


Hoje (12/11), enquanto uma de nossas colegas do curso de Psicologia apresentava seu pré-projeto de pesquisa perante a turma, surgiu uma discussão acerca das palavras religiosidade e espiritualidade. Seriam essas palavras sinônimas? Não seriam? Se não forem sinônimas, qual a distinção entre elas?

Engraçado que depois de expor seu ponto de vista, o jovem professor exclamou diante de todos, se referindo a mim: “e o que diz o nosso teólogo?” E eu tive que me manifestar. Sim, disse na sala o que já havia dito em público, no mês de maio desse ano, num encontro estadual sobre adolescência, onde me incumbiram de falar justamente sobre espiritualidade.

Segue aqui o conteúdo transcrito de minha fala[1] ali sobre o mesmo tema que voltou hoje, em nossa aula de Pesquisa em Psicologia I.

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Quero iniciar minha fala com um trecho do Dalai-Lama. Escrevendo sobre esse tema que por hora nos ocupa, diz ele: “Uma revolução se faz necessária, com toda a certeza. Mas não uma revolução política, ou econômica, ou mesmo tecnológica. (...) O que proponho é uma revolução espiritual”[2].

Uma revolução de espiritualidade! Sim, o Dalai-Lama é um desses magníficos mestres do espírito que vem, junto com tantos outros, tentando fazer as pessoas compreenderem o conteúdo profundo da espiritualidade. Isso porque essa palavra, já consagrada no Ocidente, está atrelada demasiadamente à religiosidade, de forma que seu núcleo essencial ficou quase perdido. Falar em espiritualidade em nossa sociedade é o mesmo que falar em religiosidade. Num primeiro momento permitam-me fazer uma breve distinção entre esses dois conceitos.

Quero pontuar a espiritualidade como fenômeno humano. E por que não dizer, em consonância com o pensamento do grande filósofo Nietzsche, que se trata de um fenômeno “demasiadamente humano”?! Assim, devemos compreender a espiritualidade como expressão de uma das dimensões profundas da experiência humana a que as religiões deram o nome de espírito. Não se trata de algo que seja monopólio das religiões, embora possa perpassar todas elas.

Acreditamos que no seio da religião se encontram grandes testemunhos históricos de ícones de espiritualidade. Da mesma forma como acreditamos que em todos os tempos a religião testemunha também o quanto pode estar diametralmente oposta à espiritualidade. Chamamos, portanto, de religiosidade a todo o construto cultural-simbólico erigido pelo homem na tentativa de codificar a dinâmica da transcendência. O homem é homo-religiosos. No dizer de Leonardo Boff, o homem é um projeto apontado para o infinito. Às produções culturais que veiculam essa faceta humana da transcendência damos o nome de religiosidade. A ela estão apegados o Dogma, os Credos, os ritos, os Livros Sagrados, os símbolos.

Mas não se pode dizer que isso tudo já encerre o que entendemos por espiritualidade.

Enquanto expressão da profundidade do ser humano, eu desejo pensá-la a partir de três eixos fundamentais: ela está atrelada à dimensão da alteridade, do encantamento do mundo e do sentido da vida. É assim que em minha trajetória pessoal tenho cruzado com pessoas profundamente espirituais, ainda que sem nenhuma filiação religiosa institucional. Por essa razão as palavras iniciais dessa reflexão – as do Dalai-Lama – ganham grande importância, porque nosso momento histórico pós-moderno e neoliberal guia-se à base da negação dessas três dimensões.

Nega-se aí a dimensão da alteridade como descartável e desnecessária num ambiente onde vige a competição e o individualismo. Nega-se também a dimensão da alteridade pela massificação da barbárie, que se concretiza nas milhares de vítimas desse sistema excludente no qual vivemos. Nega-se o encantamento do mundo, visto somente como campo da árdua tarefa de viver. Campo de batalha mesmo. Não mais Casa Comum, Mãe Terra, Pachamama ou Jardim Edêmico, lugar de fruição. Por fim, nega-se a dimensão de sentido profundo da existência humana, substituindo-a por uma mesquinha corrida pela satisfação de desejos insaciáveis de consumo.

Diante disso algumas questões que me inquietam: como falar dessa espiritualidade para as crianças, jovens e adolescentes dessa geração? O que dizer-lhes? Por onde começa essa tal “revolução de espiritualidade” ensejada pelo Lama tibetano? Eis algumas pistas a partir da realidade alagoana.

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Alteridade, encantamento do mundo e plenificação do sentido da vida são manifestações espirituais do homem. Não necessitam sequer fazer referência nominal aos símbolos da religião. Nascem espontaneamente nas pessoas. Não necessitam de templos, ritos ou dogmas. Mas mesmo assim são manifestações do sagrado, que, insistimos em crer, é a “vida do mundo” (Giordano Bruno).


[2] Cf. DALAI-LAMA. Uma ética para o novo milênio, p. 22.

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

PARTICIPAÇÃO EM SEMINÁRIO SOBRE FILOSOFIA


Essa é uma foto de minha participação num seminário sobre Filosofia ocorrido no último dia 09/11, no Maceió Mar Hotel, na Ponta Verde em Maceió-AL. Falei sobre Filosofia e Pós-modernidade para alunos do ensino médio da rede pública estadual. O resultado foi o melhor possível!!!

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

OBAMA E EU


Tudo começou quando minha amiga Tatiana Paula me disse antes de todos: “Tu és a cara do Obama!”. Mal sabia ela que eu teria que enfrentar essa gozação em todos os lugares que freqüento: igreja, universidade, seminário, roda de amigos... Pensei comigo: “isso só dura até a campanha presidencial desse sujeito terminar”. Porque até ali eu não podia me dar conta de que um negro, filho de mulçumano e com o sobrenome “Hussein” pudesse mesmo chegar à presidência dos Estados Unidos.

Nenhum de nós poderia conceber que um país cuja história registra as formas mais escandalosas (porque cristãs) de segregação racial – vide, por exemplo, a saga da Ku Klux Klan –, país também que assumiu a contra-ofensiva perante o “eixo do mal” marcadamente mulçumano, e que fez de Saddam Hussein um totem disso, pudesse eleger Barack Hussein Obama Jr. seu presidente.

Estamos, portanto, alegres, mas também estupefatos.

E é impossível não estabelecer um paralelo entre Lula e Obama. Lula, na época de sua primeira vitória presidencial, era o ícone da esperança dos pobres. Além de sua significativa militância entre os metalúrgicos do ABC paulista, sua própria biografia depunha em seu favor. Some-se a isso o fim de um ciclo presidencial no Brasil, fortemente identificado com o modelo neoliberal de política, de economia e de sociedade, que foi o governo FHC. Obama representa agora algo similar ao que Lula representou em 2002. Tem uma biografia e uma atuação sócio-política que depõem em seu favor, além de também se situar no fim de um ciclo presidencial já desgastado e desaprovado por uma boa parcela dos estadunidenses e pela comunidade global (pelo menos entre as pessoas sensatas).

Mas se há algo que venho aprendendo com a história da política, é que devemos ser sempre otimistas, mas sem nunca prescindir de sermos bem realistas. Afinal, nenhum de nós recebe hoje com o mesmo entusiasmo de 2002 o mote de Lula: “a esperança venceu o medo”.

Não resta dúvida de que a assunção de um afro-americano à presidência dos Estados Unidos seja um enorme sinal de resignificação dessas relações na sociedade norte-americana. Portanto, cada lágrima derramada por Jesse Jackson, logo após a notícia da vitória de Obama, reserva um mundo de significados. É como se cada uma daquelas lágrimas fizessem uma homenagem silenciosa a cada uma das palavras do inesquecível discurso I have a dream, proferido em 1963, em Washington, por Martin Luther King Jr. Foi assim que vi aquilo tudo.

Todavia, a verdade é que o novo presidente tem diante de si uma enormidade de questões que extravasam os dilemas raciais.

O atentado contra as torres gêmeas em 2001– que permanece injustificado sob todos os aspectos – acabou servindo para legitimar o militarismo demoníaco estadunidense, além de ocultar a presença mortífera desse militarismo que vinha batendo na cifra de mais 500.000 vítimas no Oriente Médio desde a Guerra do Golfo. Ademais, desde então o mundo tem que suportar a vexatória e famigerada presença das forças militares americanas no Iraque, sob o discurso mentiroso e descarado da afirmação dos valores democráticos naquele país. Obama herda esse “balaio de gato”.

As recentes oscilações em Wall Street parecem prenunciar uma reedição de 1929. Apesar de o presidente Lula insistir no absurdo de que a presente crise econômica não afetará seriamente o Brasil, estamos todos convencidos de que o que se prenuncia é uma ampla e profunda reconfiguração no mercado internacional globalizado que de maneira alguma deixará tocar o cotidiano também em nossas terras tupiniquins. Seria a presente crise o último estertor de uma convulsão crônica atrelada a um projeto de desenvolvimento econômico que vai mostrando seus limites e sua ineficácia? Ou o que ocorre com o mercado internacional agora é somente uma azia momentânea para mostrar que uma economia não pode prescindir da total intervenção dos estados nacionais à custa da sobrevivência de seu próprio arranjo interno? Obama também herda essas questões para si.

O primeiro presidente negro dos Estados Unidos herda uma fatídica relação de seu país com os dilemas ecológicos do planeta. Levará ele a que seu país resolva assinar o Protocolo de Quioto, se comprometendo a reduzir a emissão de gazes poluentes na atmosfera? Insistirá ele num modelo de produção de biodiesel assentado no trabalho escravo nos países produtores desses bens primários – cana, soja, etc. – e que também violenta severamente o meio ambiente pelo desmatamento e pelas queimadas? Como intermediará as negociações na Faixa de Gaza? Legitimará o sistemático militarismo israelense naquela região ou dialogará com os “fanáticos homens e mulheres-bomba palestinos” que agem somente em nome de si mesmos e de seus ídolos?

É um farto e considerável leque de questões – e não lembrei nem da metade – que vão exigir muito mais que o carisma pessoal e que os discursos eloqüentes. Nem mesmo os problemas raciais nos Estados Unidos estão resolvidos com a eleição de Obama. Mas sem dúvida esta eleição é um grande sinal de esperança. Queira Deus que ela seja o prelúdio para uma série de outras transições desse tipo.

Quanto a mim, começo agora a curtir quatro anos como sósia de uma celebridade! Oxalá isso me traga sorte!

sábado, 1 de novembro de 2008

UMA REFORMA PROTESTANTE ÀS AVESSAS


Na oportunidade dos 491 anos da Reforma Protestante, aconteceu no SETBAL (30/10) uma mesa redonda onde me coube a provocação inicial. Disponibilizo a todos e todas o conteúdo transcrito de minha fala ali. Espero que a exemplo do momento da fala, o texto agora também possa provocar inquietações e quem sabe uma boa discussão.

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Se a Reforma do século 16 consistiu num afastamento das práticas da Igreja Católica, uma Reforma em nossos dias deveria consistir numa aproximação a outras práticas dessa mesma Igreja. Que quer dizer essa tese estranha?

O Protestantismo se sedimenta no Brasil a partir do século 19, com uma primeira frente a que chamamos de protestantismo de imigração, mas ganha status majoritário no protestantismo de missão: batistas, presbiterianos, episcopais, metodistas, etc.

Mais do que as intenções missionárias, esses grupos protestantes aqui chegados, em maior parte dos EUA, estão imbuídos do ideal político liberal-modernizante. No que ele consiste? Primeiro, numa avaliação do “atraso” da sociedade brasileira como relacionado à hegemonia católica, e, segundo, na pressuposição de que o modelo político liberal-moderno representaria uma oportunidade para vencer o atraso dessa sociedade (daí muitos desses grupos apostarem forte na educação). Missão, para esse protestantismo recém importado, consiste no proselitismo, na luta anticatólica e na construção de uma sociedade que reproduza as condições norte-atlânticas de onde vem esse protestantismo.

E a Igreja Católica? Bem, essa ainda está presa à formatação tridentina, ou seja, a uma auto-percepção de uma Igreja superposta à sociedade, tutora espiritual hegemônica das comunidades, preocupada mais em preservar seu tesouro simbólico do que em servir à sociedade. Missão, para essa Igreja Católica, consiste em preservar sua hegemonia e sua influência social.

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Em meados do século 20 no Brasil fatores de ordem social, política e econômica, exigiriam uma revisão de todos os pressupostos missiológicos tanto de católicos quanto de protestantes. Quais fatores são esses?

O Brasil, país que até a década de 1950 permanecia sendo de base social eminentemente agrária (grande exportador de café, fumo, borracha, açúcar), por ocasião dos governos populistas (com especial acento no governo Kubistcheck), entra no circuito dos países capitalistas tentando sair da mísera condição de exportador de bens primários e inicia seu processo de industrialização. Esse projeto recebeu a alcunha de desenvolvimentista (teoria crítica que teve inclusive como co-criador Fernando Henrique Cardoso).

Muito cedo as contradições desse projeto desenvolvimentista vieram à tona. No lugar do desenvolvimento, o subdesenvolvimento; no lugar da autonomia econômica, a dependência total dos países ricos; no lugar da superação da situação colonial, o neocolonialismo; no lugar do bem-estar social, o acirramento da desigualdade e do fosso entre ricos e miseráveis. E as Igrejas, como reagiram a isso tudo?

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Em nível mundial, eu destacaria o Concílio Vaticano II (1962-1965) como a maior tentativa de reforma eclesial do catolicismo no século passado. Trata-se do concílio de abertura, que, definido rapidamente, representou o desejo de abrir a Igreja para o mundo, ouvir seus clamores e respondê-los pertinentemente. Pressupõe-se que uma estrutura velha não pode dar respostas a desafios novos. Dizia Pablo Richard num artigo recente dedicado à memória de Dom Helder: “o futuro da Igreja não está na aliança com o poder político, mas na encarnação da Igreja na sociedade civil. (...) A promoção humana é o terreno privilegiado da evangelização”. Menciono a seguir uma série de novas estruturas eclesiais alimentadas por esse espírito e surgidas depois do Vaticano II:

A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), fundada por Dom Helder Câmara, que hoje é responsável pelas anuais Campanhas da Fraternidade; a Conferência do episcopado latino-americano em Puebla (1968), cujas decisões mais importantes inflamaram os anseios da Teologia da Libertação por voltarem-se todas para a realidade de opressão e miséria das maiorias nesses países; o Movimento Bíblico, cuja grande contribuição fora recolocar a Bíblia na mão do povo (embora a liberdade interpretativa esteja sempre sob os rigores do Magistério); as milhares de Comunidades Eclesiais de Base (CEB’s) espalhadas pelo Brasil e cujos anseios, de acordo com Leonardo Boff, refletiam uma nova maneira de ser Igreja (Católica) no Brasil – uma eclesiogênese –, mais descentralizada em termos de poder, mais afeita à participação efetiva dos leigos e mais engajada nos problemas concretos das maiorias pobres; as diversas Pastorais Civis, como a Pastoral da Terra, Carcerária, Universitária e da Criança, que representam a encarnação da igreja nos dilemas mais profundos da sociedade civil; além dos muitos grupos sem vínculo institucional, porém imbuídos do mesmo espírito e amparados pela participação de representantes oficias da Igreja, como as Comissões Justiça e Paz e o Conselho Indigenista Missionário.

Vejam, há algumas questões aí a serem ponderadas. Duas delas são: primeiro, a vantagem católica de ter um centro unificador do pensamento e do comportamento, que é o Vaticano; segundo, boa parte dessas conquistas é produto da “esquerda católica” e dos movimentos marginais. Tenho isso em mente.

Por mais surpreendente que seja, nós, protestantes, também reagimos muito bem a esses novos desafios. As décadas de 1950 e 1960 são, a meu ver, as mais ricas da história de nosso protestantismo brasileiro. Nasceram aí entre batistas, presbiterianos, luteranos, e outros, movimentos marcados pela preocupação com a realidade sócio-política do país.

Mas pergunto: quantos de nós ouviu falar em Richard Shaull e em sua obra? Ou do Setor de Responsabilidade Social da Igreja (SRSI), órgão da Confederação Evangélica Brasileira (CEB)? Ou da União de Estudantes Cristãos do Brasil (UCEB)? Quantos batistas aqui ouviram falar no Manifesto de Ministros Batistas de 1962? Quantos de nós ouviu falar na Conferência do Nordeste de 1963, cujo tema foi Cristo e o processo revolucionário brasileiro, contado com a participação de Paul Singer, Celso Furtado e Gilberto Freyre? Entre 1955 e 1962 o SRSI organizou quatro grandes conferências nacionais. Eis os temas: A responsabilidade social da Igreja (1955); A Igreja e as Rápidas Transformações Sociais no Brasil (1957); A Presença da Igreja na Evolução da Nacionalidade (1960); Cristo e o processo revolucionário no Brasil (1963). Quem entre nós tinha conhecimento disso?

Infelizmente, as forças conservadoras dessas igrejas todas venceram esse espírito. De mãos dadas com o regime militar, identificaram esses ideais como “comunistas”, e baniram o espírito profético do nosso protestantismo brasileiro. Diferentemente de nossos irmãos católicos, não temos hoje em dia muitos frutos perenes dessa época. Infelizmente.

Encurtando o papo: qual nossa tara hoje, e quais as Reformas das quais nos orgulhamos? Quais são os temas de nossos encontros e congressos? Eu digo: Igreja com Propósitos, Igreja em Células, G 12, G 5, e os demais genéricos... Isso porque estou falando do protestantismo de missão e não do neopentecostalismo e suas variantes. Por que não voltar a semear a mesma reforma daquele nosso protestantismo? Não seria essa uma grande Reforma para o nosso tempo?

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Termino mudando um pouco a minha tese inicial: Se a Reforma do século 16 consistiu num afastamento das práticas da Igreja Católica, uma Reforma em nossos dias deveria consistir numa aproximação a outras práticas dessa mesma Igreja e num reavivamento do nosso espírito profético das décadas de 50 e 60. Deixe eu citar pra vocês ainda um trechinho do maior profeta brasileiro do século 20, Dom Helder Câmara:

“Nunca se deve temer a utopia. Agrada-me dizer e repetir: quando se sonha só, é um simples sonho, quando muitos sonham o mesmo sonho, é já a realidade. A utopia partilhada é a mola da história”.