sexta-feira, 21 de outubro de 2011

RESENHA DE “CINCO MENTES PARA O FUTURO”


GARDNER, Howard. Cinco mentes para o futuro. Tradução de Roberto Cataldo Costa, Porto Alegre: Artmed, 2007, 159p.
***
Me surpreendi com a leitura de Cinco mentes para o futuro, do psicólogo norte-americano Howard Gardner. Certamente isso se deve à expectativa em torno dessa leitura, ligada ao trabalho pregresso de Gardner.
Howard Gardner é um prestigiado psicólogo cognitivista, que se tornou mundialmente conhecido por conta da Teoria das Inteligências Múltiplas[1]. As definições da inteligência humana quase sempre estiveram circunscritas ora ao raciocínio lógico-matemático, ora à capacidade de resolução de problemas e processamento de informações, quando não à mera capacidade mnemônica. O próprio conhecimento psicológico ajudou a popularizar esses reducionismos por meio dos famosos testes de quociente de inteligência (QI). Inteligência, nesses termos, se resume às capacidades cognitivas ligadas às operações de raciocínio lógico-abstrato e formal, altamente valorizados pela cultura ocidental.  
Com a Teoria das Inteligências Múltiplas, Gardner propõe elevar ao status de inteligência algumas capacidades humanas antes descritas apenas como “habilidades” ou “talentos”. Dessa forma, as capacidades sinestésico-corporais, as habilidades musicais e linguísticas, as habilidades espaciais, interpessoais e intrapessoais, e também as habilidades lógico-matemáticas, são elevadas ao status de inteligências. Há grande profusão de publicações entre livros e artigos, do próprio Gardner e de seus colaboradores, destinados à difusão da Teoria das Inteligências Múltiplas. Por motivos óbvios, Gardner tornou-se um teórico de interesse para diversos campos acadêmicos, sobretudo para a pedagogia. No Brasil, no campo dos estudos pedagógicos, Celso Antunes tem sido o maior difusor dessa teoria[2] 
Em minha opinião, a novidade de Cinco mentes para o futuro consiste no fato de se tratar de livro de opiniões, distinguindo-se do estilo anterior de Gardner, balizado por um amplo aparato empírico e heurístico. Platão compreendia a tarefa da filosofia como o movimento da doxa (doxa = opiniãopara a episteme (epistémé =conhecimento). Gardner, com Cinco mentes para o futuro, parece ter feito o caminho inverso.
Gardner tem em mente as demandas culturais do futuro – principalmente aquelas do universo da educação e do trabalho –, e seu livro consiste numa espécie de bússola para os cidadãos que estiverem dispostos a ter um lugar nesse futuro. Aqui já aparecem, a meu ver, alguns pontos passíveis de crítica nesta obra. Gardner não chega a problematizar os arranjos culturais, políticos e econômicos aos quais se refere. Toma-os como realidades objetivas com as quais os sujeitos devem adaptar-se. Portanto, o livro é marcado por uma postura profundamente acrítica, e por vezes propagandística em relação às configurações de mercado. Sua preocupação é oferecer pistas de sobrevivência a um arranjo cultural, notoriamente identificado com o american way of life.
Em sua prescrição, cinco tipos de mentes estarão mais aptas à sobrevivência nos arranjos culturais do futuro: a mente disciplinada, a mente sintetizadora, a mente criadora, a mente respeitosa e a mente ética. Em nosso entender, o que Gardner descreve como “tipos de mente”, deveria ser descrito como “habilidades mentais”. É bem verdade que dificilmente um indivíduo consegue desenvolver todas as habilidades mentais aqui listadas. Há aqueles que se especializam em uma ou em outra, e aqueles que conseguem ter certo domínio de mais de uma dessas habilidades. Mas não estamos certos de que as aptidões cognitivas de um indivíduo possam ser reduzidas a uma dessas habilidades mentais, de tal maneira que se configure como um “tipo de mente”. Assim, em lugar de falar em um indivíduo com uma “mente sintetizadora”, por exemplo, preferimos falar em indivíduos com grandes potenciais de sínteses, entre outras habilidades mentais.
Para Gardner, a mente disciplinada é aquela marcada pela capacidade de empregar as formas de pensamento associadas a importantes disciplinas acadêmicas (história, matemática, ciências, arte, etc.) e importantes profissões (direito, medicina, gestão, finanças etc., bem como ocupações e ofícios), além de ser capaz de se aplicar de forma diligente, melhorando permanentemente e continuando além da educação formal.
mente sintetizadora seria aquela capaz de escolher as informações cruciais entre a enorme quantidade disponível, e de organizar essa informação de maneira que façam sentido a si e aos outros.
mente criadora seria aquela capaz de ir além do conhecimento e das sínteses existentes para propor novas questões, oferecer novas soluções, realizar trabalhos que levem mais longe gêneros atuais ou configurem novos, sendo que a criação parte de uma ou de mais disciplinas estabelecidas e requer um “campo” informado para fazer julgamentos de qualidade e aceitabilidade.
mente respeitosa seria aquela capaz de buscar responder de forma simpática e construtiva a diferenças entre indivíduos e grupos, buscar entender e trabalhar com aqueles que são diferentes, e ir além da mera tolerância e da atitude politicamente correta.
mente ética seria aquela capaz de abstrair características cruciais de seu papel no trabalho e como cidadão e agir de forma coerente com essas conceituações, além de esforçar-se para realizar bom trabalho e boa cidadania.
Gardner disserta sobre cada uma dessas mentes buscando fazê-lo a partir dos contextos educacional e do trabalho. É daí, majoritariamente, que surgem seus exemplos, e é para as demandas futuras da educação e do trabalho que suas prescrições são direcionadas. Como bom cognitivista, há também uma preocupação com a periodização do surgimento e do desenvolvimento de cada uma dessas mentes, sendo que a maioria dos atributos relacionados com cada uma delas surge, para Gardner, na infância, tendo forte ligação com os estímulos da educação formal. Gardner também faz questão de apresentar as possíveis “pseudo-formas” para cada uma dessas mentes. Por exemplo, a atitude de mera tolerância frente à diversidade, conforme Gardner, pode se constituir como uma pseudo-forma da mente respeitosa.
A despeito das críticas aqui apresentadas, eu recomendaria Cinco mentes para o futuro, sobretudo àquele público que agora inicia a trajetória intelectual. Como disse antes, os tipos de mentes aqui tratadas devem ser encaradas como “habilidades mentais” a serem cultivadas por qualquer pessoa. O cultivo dessas habilidades pode ser extremamente útil para aqueles(as) que desejam se enveredar na atividade intelectual (que não é sinônimo de carreira acadêmica). No entanto, eu ressaltaria mais uma vez o risco de se discutir epistemologia sem discutir política, como vem sinalizando o trabalho de Bruno Latour[3]. A ciência não pode ser vista como uma atividade politicamente neutra. Neste caso, em lugar de recomendar “cinco mentes” que se adéqüem ao futuro, eu preferiria recomendar “cinco mentes que problematizem o futuro”.


[1] Cf do autor: GARDNER, Howard. Estruturas da mente: a teoria das inteligências múltiplas. São Paulo: Artmed, 1996; Inteligências múltiplas: a teoria na prática. São Paulo: Artmed, 2000; Inteligência: múltiplas perspectivas. São Paulo: Artmed, 2001; Inteligência: um conceito reformulado. São Paulo: Artmed, 1998.
[2] Veja ANTUNES, Celso. As inteligências múltiplas e seus desafios. Campinas: Papirus, 2002; Jogos para a estimulação das inteligências múltiplas. Petrópolis: Vozes, 1999.
[3] Cf. LATOUR, Bruno. Políticas da natureza: como fazer ciência na democracia. Bauru: EDUSC, 2004

Nenhum comentário: