terça-feira, 30 de outubro de 2012

GONZAGÃO, GONZAGUINHA E O EVANGELHO


Certamente, uma das maiores belezas do Nordeste está na história do seu povo. Além da música, do artesanato, da culinária, da poesia, a beleza do nordeste está espalhada nas incontáveis biografias anônimas, que nunca se tornarão filme ou livro. Mas a história de Luiz Gonzaga, o Rei do Baião, e de seu filho Gonzaguinha, retratada no filme Gonzaga: de pai para filho, é dessas que nos forçam a pensar na nossa própria vida.
No Sermão do Monte, Jesus afirma que “onde estiver o nosso tesouro, ali estará o nosso coração” (Mt 6,21). Em Marcos 8,36 Jesus indaga a seus discípulos perguntando-lhes: “que adianta ao homem ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma?” Mas, o que tudo isso tem a ver com Gonzagão e Gonzaguinha? Sem querer contar o filme, e estragar seu o prazer em assisti-lo, eu diria que saí daquela sala de cinema com as seguintes reflexões:
Quais são os bens mais preciosos na vida de uma pessoa? Onde está o nosso coração? Nós hoje vivemos num tipo de sociedade onde o consumo, o reconhecimento, o prestígio social tornaram-se deuses a quem as multidões se devotam. Valores básicos e fundamentais como a família, o companheirismo conjugal, o tempo com os filhos, estão ficando cada vez mais nos últimos degraus da escala de prioridades na vida de muita gente. Quais são os custos disso?
Gonzaga: de pai para filho é uma belíssima narrativa, que, semelhante a algumas narrativas bíblicas, fala de amor, de superação, mas também dos dilemas e angústias que marcam de um jeito ou de outro a vida de todo mundo. Mas acho que, sobretudo, se trata de uma narrativa que fala de escolhas. O adágio do povo diz sabiamente que “a vida é feita das escolhas que fazemos”. Mas saber disso ainda é pouco!
O que a história de Gonzagão e Gonzaguinha tem a ver com o Evangelho? Como o Evangelho, ela nos lembra de que nossas escolhas têm consequências, e que realmente não vale a pena ser “rei de nada”, se perdemos o que é mais fundamental nessa vida...
* Texto do boletim dominical da Igreja Batista do Pinheiro (Maceió-AL), para o dia 04/11/2012.

sábado, 13 de outubro de 2012

E POR FALAR EM “KIT GAY”...


Já que o chamado “kit gay” – cujo nome técnico definido pelo Ministério da Educação havia sido Kit Anti-homofobia – voltou a ser assunto nas mídias do país, por causa da estapafúrdia ameaça de Silas Malafaia de “arrebentar em cima de Fernando Haddad” no segundo turno da disputa pela prefeitura de São Paulo, eu gostaria de trazer outra vez uma questão que considero respondida insuficientemente: se vivemos em um estado laico e não-confessional, como é possível que diretrizes religiosas possam interferir nas políticas públicas educacionais do país?
Uma tentativa de resposta que deve ser corrigida apresenta o argumento de que “o estado é laico, mas a nação é cristã”. Na verdade, o estado é laico, mas a nação é plural. A maioria cristã é uma realidade óbvia e inquestionável. Mas o reconhecimento dessa maioria não deveria ser utilizado como o fim do debate pela imposição da mesma. Isso não seria uma democracia, mas uma teocracia. O reconhecimento da maioria cristã deveria abrir a discussão de como é possível em um regime democrático, conciliar os interesses da maioria com as demandas sociais de grupos minoritários, sem desprezar esses últimos; ou ainda, como atender à legitimidade das demandas sociais dos grupos minoritários sem atribuir-lhes privilégios sobre o todo. Em síntese, o reconhecimento da maioria cristã deveria abrir o debate acerca de como o estado laico poderia, em meio a interesses e demandas sociais tão diversas, garantir o direito de plena cidadania a todos.
A rigor, diretrizes religiosas não devem conduzir as dinâmicas estatais em arranjos laicos e não-confessionais. Todavia, isso não quer dizer os atores religiosos estão impedidos de participar da arena política nacional nesses contextos. Enquanto cidadãos do país, e enquanto pertencentes ao enquadre multicultural que marca a sociedade, é legítimo que atores religiosos participem ativamente da condução política do país. Essa afirmação, entretanto, nos coloca diante da seguinte questão: como conciliar a presença e os interesses de atores religiosos na esfera público-política em um estado laico?
Alguns intelectuais, como Jürgen Habermas, por exemplo, defendem a ideia de que deve haver por parte de tais atores religiosos uma espécie de “tradução da linguagem” e dos interesses religiosos para uma linguagem política e secular. Habermas defende ainda que tais atores religiosos partam de alguns pressupostos cognitivos, que são basicamente dois: a aceitação da pluralidade cultural da nação, e a aceitação da neutralidade do estado em termos ideológicos. Portanto, os atores religiosos não estão vedados de participarem da arena público-política do país. A questão a ser pensada é como se dá tal participação. Dar contribuições específicas, direcionadas para problemas políticos e em linguagem secular, é muito diferente de conduzir o país empunhando um cetro cristão, ou qualquer outro cetro religioso.
Em outra oportunidade, já manifestamos nossa discordância da noção de “estado neutro”. No lugar dessa noção, propomos a ideia de um estado não-confessional. A laicidade dos estados modernos quer dizer que os mesmos deixaram de ser normatizados por valores religiosos. Contudo, isso não significa neutralidade. Perguntamo-nos: a partir de então, quem informa ideologicamente as ações dos estados modernos? Em nossa opinião, essa resposta deve apontar para duas instâncias principais: os saberes científicos e o direito. E aqui estaria o link para voltarmos a pensar no chamado “kit gay”, proposto à época pelo então Ministro da Educação Fernando Haddad.
A ideia de introduzir materiais educativos com pretensões anti-homofóbicas nas escolas públicas brasileiras se radica em dois elementos. Primeiro, no reconhecimento de que a educação sexual que se transmite na educação pública atualmente estaria vinculada a uma matriz cultural que é religiosa e cristã. O simples reconhecimento desse fato seria problemático para a educação a ser oferecida por um estado laico e não-confessional. Segundo, a pressuposição de que a homofobia, que se expressa desde níveis mais cotidianos enquanto desqualificação, até níveis mais duros como os assassinatos motivados por questões de preconceito sexual, não são apenas problemas individuais, mas estruturais, que passam pela educação formal. A violência individual seria a ponta de um processo muito maior, que contemplaria também a educação formal.
Michel Foucault e Judith Butler são exemplos de autores que trabalham com a noção de matriz cultural. Em suas pesquisas, o Cristianismo tem lugar central enquanto matriz cultural presente na formação dos saberes científicos (médico, psicológico, psiquiátrico etc.), e também nas concepções de gênero que balizam grande parte das atuais relações sociais. A escola moderna tem sido um dos ambientes estratégicos mais eficazes para que tais saberes tornem-se forças normalizadoras, contribuindo com a naturalização das noções de normal e patológico, neste caso, no campo da sexualidade.
Uma vez que se reconhece o lugar da escola nas estratégias que normalizam e naturalizam concepções de gênero cuja matriz é religiosa e cristã, como não falar sobre isso na educação promovida por estados laicos e não-confessionais? Uma vez que se reconhecem os problemas ligados ao binarismo normal versus patológico relacionados à sexualidade, traduzidos na violência contra o “patológico” e a necessidade de sua eliminação, como não trazer essa discussão para a escola não-confessional? Uma vez que se reconhece que a homofobia, seja em nível simbólico ou concreto, não é apenas um problema de indivíduos, mas um problema sistêmico que envolve inclusive o tipo de educação sexual nas escolas e o silêncio delas acerca disso, como não levar para elas esta discussão?  
A meu ver, a introdução de materiais educativos nas escolas públicas voltados para o combate à discriminação e à violência sexual, não pode ser reduzido à discussão de convicções dogmáticas sustentadas por grupos religiosos. Ela deveria ser pensada na perspectiva da “governamentalidade”. Com esse termo, Foucault falava acerca de uma nova arte política inaugurada na Modernidade, que tem a população como seu objeto. Essa governamentalidade tem por função regular da melhor maneira possível a relação entre pessoas e coisas, a fim de maximizar os efeitos produtivos de tal relação. Porém, mais do que isso, trata-se aqui de maximizar da melhor forma possível a relação entre pessoas e pessoas. E em minha opinião, a violência sexual – assim como a violência contra mulheres, crianças e idosos, o racismo etc., – é um tema da ordem da segurança pública que precisa ser trabalhado desde os primeiros anos da educação formal.
Portanto, é função dos estados modernos (laicos e não-confessionais), garantir os diferentes modos de existência humana, e zelar por sua plena cidadania. Também é sua função pôr em ação todos os meios possíveis que garantam a segurança de seus cidadãos. Esses meios não devem se reduzir aos dispositivos da repressão e das sanções penais, mas devem se estender aos dispositivos de prevenção, que passam pela construção de uma cultura de paz. A escola, nesse sentido, continua sendo um lugar estratégico para tudo isso. As igrejas, quaisquer que sejam, deveriam aplaudir e se unir a tais iniciativas que corroboram o respeito às diferenças e a convivência pacífica entre as pessoas. Afinal, estas coisas lembram em muito os ideais daquele a quem uma parte das igrejas chamam de Senhor.