quinta-feira, 17 de março de 2011

FOUCAULT E O CRISTIANISMO


A construção de uma “analítica do poder” – fase que ocupou os estudos genealógicos de Michel Foucault durante a década de 1970 – tem como objetivo uma investigação sobre a genealogia do sujeito moderno. Como estudioso das relações de poder nas culturas ocidentais, Foucault identificaria três grandes formas de exercício do poder, que poderiam ser descritas como paradigmáticas desde a modernidade. São elas: opoder pastoral, o poder disciplinar e o biopoder. São sucessivas modalidades históricas do exercício do poder, muito embora a ascensão de cada uma delas não elimine por completo elementos do paradigma anterior. Há elementos do poder pastoral e do poder disciplinar em nossa sociedade onde vige o biopoder.

Muitos movimentos históricos podem ser considerados importantes na genealogia do sujeito moderno. Há certa tendência nos estudos que se ocupam dessa temática em dar centralidade ao domínio econômico, elegendo a ascensão do liberalismo capitalista como um agende central para a emergência desse sujeito. No entanto, sem negar a importância disto, outros elementos históricos, igualmente importantes, não recebem a devida atenção. O trabalho de Foucault procura dar conta desses outros elementos, não como meramente complementares, como se pudessem ser estudados em paralelo aos aspectos econômicos. Os demais elementos históricos – como o campo religioso, a economia, as artes, as ciências humanas, a filosofia – são considerados como organicamente ligados e intrinsecamente imbricados com os fatores de ordem econômica, sem hierarquias, para a produção do sujeito moderno.
Como não poderia ser de outra forma, o Cristianismo, enquanto uma das grandes matrizes da cultura ocidental, recebe grande atenção nos trabalhos deste filósofo. No pensamento de Michel Foucault, ele é considerado uma das forças culturais mais importantes na produção desse sujeito moderno. Obviamente, a aproximação de Foucault ao Cristianismo se dá pelas razões genealógicas, e não teológicas. No entanto, o campo dos estudos teológicos (cristãos) aos poucos vai se abrindo ao diálogo como este pensador. Suas teses têm sido importantes enquanto operadores teóricos para pensar nas relações de poder sancionadas pelo conhecimento religioso e socialmente difundidas. Assim, temos encontrado interessantes apropriações dos trabalhos de Foucault em teologias progressistas, feministas, em teologias queer, e em outros campos de estudos teológicos (cristãos) interessados em contestar a naturalidade do status quo em diversos setores da cultura ocidental[1].
Gostaríamos de destacar dois aspectos relacionados às teses foucaultianas acerca do Cristianismo que consideramos de importância capital para os nossos propósitos. Primeiro, a caracterização do poder pastoral representado pela Igreja Cristã, e posteriormente mundanizado na forma da biolítica e do biopoder, capitaneados pelo Estado. Segundo, o lugar do Cristianismo na produção do dispositivo da sexualidade que marca o sujeito moderno.
O estudo do poder, para Foucault, é condicio sine qua non para uma genealogia do sujeito moderno. Isso porque o sujeito seria um “produto das relações de poder”, e não somente o objeto sobre o qual o poder se investe para reprimir, deformar, alienar e assujeitar. Em outros termos, Foucault confere relevo especial aos aspectos positivos e produtivos do poder, mais que aos aspectos repressivos. É preciso ter isso bem em conta, porque apesar do poder produzir coisas – nesse caso, subjetividades –, é perfeitamente possível resistir às formas de subjetivação no interior de suas relações. Foucault resumiria o objetivo de seu trabalho como sendo o de mostrar às pessoas que elas são mais livres do que supostamente pensam. Um dos pressupostos centrais de sua analítica do poder, além do acento na positividade e na produtividade do mesmo, é a afirmação de que toda injunção do poder, seja sobre indivíduos ou sobre grupos humanos, enseja a possibilidade de resistências.
O poder pastoral seria aquele representado pelas formas de relação da Igreja Cristã com a sociedade ocidental, baseado no zelo espiritual e na condução das almas à salvação. Ele é simultaneamente totalizante e individualizante, pois se dirige a todo corpo social e a cada indivíduo em particular. Não apenas comanda, mas também sacrifica a si mesmo pela salvação do rebanho, e exige um conhecimento da intimidade de cada indivíduo que está sob seus cuidados. Mais tarde, no bojo das transformações político-econômicas ocorridas a partir dos séculos XVII e XVIII na Europa, uma nova modalidade de exercício do poder sucederia o poder pastoral e se disseminaria como marca do exercício do poder político na modernidade: o biopoder. Foucault dá a compreender que o biopoder seria uma espécie de “poder pastoral mundanizado, secularizado”, onde o pastor passaria a ser o Estado, e o rebanho passaria a ser as populações. Não mais a salvação deste mundo, mas a salvação neste mundo: a salvação da peste, da fome, e das condições concretas da vida das populações; o controle demográfico e de natalidade, por exemplo, seriam os alvos de uma biopolítica e de um biopoder. O biopoder, que se encarrega da gerência da vida das populações, e somente enquanto populações, configura-se como sucessivo histórico do poder pastoral.  
Rubem Alves afirmaria, ainda na década de 1970, que “vivemos nas entranhas de um monstro”[2]. Nós poderíamos afirmar semelhantemente que somos produzidos nas entranhas de um monstro. Esse monstro seria o leviatã hobbesiano, isto é, o Estado. Não é possível pensar na constituição da subjetividade moderna sem atentar para as formas com que o Estado está presente na construção daquilo que somos. Nossa vida inteira e a construção de nossas identidades têm sido forjadas, ainda que não exclusivamente, mas massiçamente pela presença do poder de Estado, em suas várias faces (ou “aparelhos”, como prefere Althusser), representados mais explicitamente pela educação e pela cultura. Seus aparelhos – jurídico, penal, educacional, médico, científico etc. –, como formas de expressão das relações de saber-poder, são importantes constituintes na construção daquilo que nos tornamos enquanto sujeitos modernos. É preciso lembrar que Foucault sempre resistiu a uma redução das relações de poder e da constituição da subjetividade no ocidente à influência exclusiva dos aparelhos de Estado. Mas não se pode desprezar – e ele não o fez – o lugar que a biopolítica tem na genealogia do sujeito moderno. 
A herança cristã – nesse caso, o poder pastoral – configurou-se como tendo produzido, pela primeira vez no Ocidente, as condições de possibilidade para que um poder totalizante e individualizante irradiasse sobre os corpos dos indivíduos (anatomopolítica do corpo), assim como sobre todo tecido social, gerenciando a vida das populações e produzindo subjetividades.
Além disso, nos trabalhos de Foucault a sexualidade do sujeito moderno – com suas peculiaridades, e principalmente com as suas distinções entre o normal e o anormal – tem raízes profundas na pastoral cristã. É preciso dizer, ainda que ligeiramente, que a sexualidade humana em Foucault é um “dispositivo” historicamente produzido[3]. Não tem matizes naturalizantes, biologizantes, universalizantes e conseqüentemente a-históricos. A sexualidade, tal como a concebemos no ocidente, é produto de contingências históricas localizáveis e analisáveis[4].
Para a eficácia de sua atividade, o pastor necessita perscrutar seu rebanho, conhecer-lhe os segredos, incitar-lhe a falar acerca de si, ainda que a verdade acerca do sujeito (ou do rebanho) permaneça sob o domínio do próprio pastor. Foi a partir das injunções do poder pastoral no tecido social que na modernidade deu-se a possibilidade da invenção do dispositivo da sexualidade. Conforme Foucault, nenhuma outra cultura foi capaz de produzir, como no ocidente, um discurso sobre a sexualidade que obtivesse status normalizador, ou como uma scientia sexuallis. Isso, o Cristianismo produziu ao generalizar para toda a Cristandade o ritual da confissão. É aí que, pela primeira vez no ocidente, o sexo é posto em discurso, para mais tarde, no âmbito das ciências humanas (com grande destaque para o que hoje chamamos de “saberes psi”), ganhar aspectos normativos e taxonômicos, difundindo no tecido social o normal e o anormal no campo da sexualidade humana.  
No debate acerca da invenção do dispositivo da sexualidade Foucault surpreende o seu leitor ao rejeitar a “hipótese repressiva” acerca do sexo, isto é, ao rejeitar que em nossa cultura a repressão sexual seja o que há de mais evidente. Para Foucault, no lugar da repressão à sexualidade, a modernidade assistiu a uma verdadeira incitação aos discursos sobre o sexo, com tonalidades inéditas. Esses discursos sobre o sexo não podem ser equiparados com o que Foucault chama de uma ars erotica, encontrada nas culturas orientais. Aars erotica, embora também seja a colocação do sexo em discurso, move-se exclusivamente pela fruição, diferentemente de uma scientia sexuallis, encetada sobretudo pelo saber psiquiátrico, cuja finalidade é uma assepsia cada vez maior daqueles comportamentos tidos como anormais e desviantes.
Neste caso, são as ciências humanas, especialmente a Psicologia e a Psiquiatria, mas também a Psicanálise, que se constituem como formas mundanizadas e secularizadas do poder pastoral, contribuindo na constituição dos padrões sexuais que guiam nossa sociedade, e modelam nossa “verdade acerca de nós mesmos”. Somente a partir daí nos tornamos sujeitos de uma sexualidade, e o Cristianismo tem nisso uma enorme contribuição.
Sua morte em 1984 deixou inacabada uma fase em que a “ética”, a “estética da existência” e o “cuidado de si” eram os tópicos centrais de suas pesquisas. Embora não estivesse desatento aos diversos tipos de lutas presentes no campo social, esta era uma fase de seu pensamento em que as lutas contra a dominação da subjetividade ocupavam o centro de suas preocupações. Dessa forma, o que se pode dizer é que Foucault tenha deixado pistas interessantes, relacionadas à constituição do sujeito moderno, a serem trilhadas por outras e outros que desejam se aventurar por essas terras. O conceito de biopoder, por exemplo, é um desses construtos teóricos sinalizados pelo autor, mas pouco desenvolvidos, e à espera de investigações ulteriores.
Sem dúvida, creio ser correto dizer que a modernidade viu emergir uma forma de poder que toma o governo da vida das populações como alvo de seus investimentos. Entretanto, como pensar a biopolítica e o biopoder em nosso tempo, em que as próprias populações, por meio dos mecanismos das democracias participativas, têm lugar na construção das políticas que beneficiam a elas mesmas? Também consideramos correto dizer que a modernidade viu a ascensão inédita de uma scientia sexuallis e de uma normatividade acerca do sexo, ou seja, que a modernidade viu o surgimento da invenção do dispositivo da sexualidade. Nesse sentido, nos compete perguntar a que incitações pelo poder pastoral, tão presente na conjuntura pós-moderna, estão submetidos os sujeitos? O que elas produzem? Que sujeito, em nossa dita pós-modernidade, o poder pastoral e as incitações a certos discursos, sobretudo no campo econômico, ajudam a produzir?
O melhor dessa empreitada é a possibilidade da investigação livre de fidelidades epistemológicas, que segue as pistas deixadas por um autor que não teme a infidelidade nem exige sentimento de discipulado. Foucault dizia que a melhor maneira de honrar a um pensamento como o de Nietzsche é usá-lo e distorcê-lo. Poderíamos dizer o mesmo em relação ao pensamento do próprio Foucault? Ser “foucaultiano” consistiria em ser justamente “anti-foucaultiano”?

Bibliografia
ALVES, Rubem. Tomorrow’s child: imagination, creativity and the rebirth of the culture. New York: Harper & Row,
DELEUZE, Gilles. O que é um dispositivo? In: Michel Foucault, filósofo. Barcelona: Gedisa, 1990
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes, 1999

_______. Estratégia, Poder-Saber – Ditos e Escritos IV. (2 ed). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006

_______. História da sexualidade: a vontade de saber. 20ª ed., Rio de Janeiro: Graal, 2010. Vol. 1
_______. História da sexualidade: o uso dos prazeres. 13ª ed., Rio de Janeiro: Graal, 2009. Vol. 2
_______. História da sexualidade: o cuidado de si. 10ª ed., Rio de Janeiro: Graal, 2009. Vol. 3
_______. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979
_______. Nascimento da biopolítica: curso no Collège de France (1979). São Paulo: Martins Fontes, 2008
_______. Território, segurança, população: curso no Collège de France (1978). São Paulo: Martins Fontes, 2008
_______. Vigiar e punir: nascimento das prisões. 36ª ed., Petrópolis: Vozes, 2009
_______. O sujeito e o poder. In: DREYFUS, Hubert L.; RABINOW, Paul. Michel Foucault: uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. 2ª ed., Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010  
McSWEENEY, John. Foucault and Theology. In: Foucault studies. n 2, pp. 117-144, May 2005

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[1] A esse respeito, recomendamos a leitura do importante artigo de McSWEENEY, John. Foucault and Theology. In: Foucault studies. n 2, pp. 117-144, May 2005. Nesse artigo, entre outros objetivos, o autor oferece um sumário de estudos no campo da Teologia Acadêmica que tomam o trabalho genealógico de Foucault como referencial dialógico.
[2] Veja ALVES, Rubem. Tomorrow’s child: imagination, creativity and the rebirth of the culture. New York: Harper & Row, 1972.
[3] Para maiores aprofundamentos acerca do conceito foucaultiano de “dispositivo”, recomendamos a leitura do seguinte artigo: DELEUZE, Gilles. O que é um dispositivo? In: Michel Foucault, filósofo. Barcelona: Gedisa, 1990.
[4] Foucault analisou essas contingências históricas, ligadas à transição da burguesia enquanto classe revolucionária para classe hegemônica, como condição de possibilidade para a produção do dispositivo da sexualidade em A vontade de saber. Para maiores detalhes, cf. FOUCAULT, Michel. História da sexualidade: a vontade de saber. 20ª ed., Rio de Janeiro: Graal, 2010, vol. 1.

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