terça-feira, 16 de abril de 2013

O QUE É A “FAMÍLIA BRASILEIRA”?

Não, não sou contrário à família, aos bons costumes, à moral, a Deus, à igreja, a nada disso! Não sou um relativista radical, um crítico inveterado da religião, muito menos um polemista. Nada disso. Mas não me furto ao pensamento. Não tenho medo da dúvida. E adoro perguntar! Então, se alguém puder, me responda, por favor:
O que é esse ente que todas as pessoas de igreja resolveram chamar de “a família brasileira”? O que é “a família brasileira”?
Me parece que “família” é algo que nunca é, mas sempre está sendo. Nesse sentido, são dispensáveis todos os estudos acadêmicos da antropologia e da história social dos povos, uma vez que a própria Bíblia, enquanto narrativa-recorte da história de um povo e sua fé, denuncia esse fato. O numeroso clã de Abrão e Sarah, errante pelo deserto e arrastado pela convicção de uma voz divina, era uma família. E a naturalidade com que a própria Sarah aceita a barriga de aluguel de Agar é indicativo de como as coisas funcionavam naquele arranjo familiar. Do mesmo modo como o era o clã de Josué, que decidiu deixar para trás a fé aprendida no Egito para abraçar a nova fé em Javé.
Mas também a bigamia de Elcana, certamente farta dos prazeres gozados com Ana e Penina, era uma família. E Deus nunca se zangou de nada! Muito menos com as poligamias de David e Salomão. Mas Ana nunca esteve satisfeita com a perversidade de Penina, porque perversidade não combina com relações familiares! A Lei do Levirato, uma peça rara da engenhosidade cultural daqueles dias, servia de modo eficaz ao modelo de família vigente. E consagrava também o papel superior dos machos por perpetuar sua memória, além de glorificar a Deus com a afirmação do papel reprodutor das mulheres. Valores sagrados, que certamente aquelas famílias consideravam atemporais, e por isso, intocáveis. Nossas famílias nucleares lhes seriam um insulto e uma blasfêmia, porque, para dizer como os gregos antigos, os valores divinos são imóveis... Mas eu juro que um dia me dedico a investigar acerca de quem inventou o Levirato.
O Novo Testamento é produzido também em um contexto em que as famílias estão sempre sendo... O próprio Levirato ainda era vigente entre os judeus. Os clãs não haviam morrido. E o papel das mulheres pouco havia mudado. Alguns escritos atribuídos a Paulo chegam a tomar a família Greco-romana como um modelo de gerência eclesiástica: o dominus é o cabeça da casa. Abaixo dele as relações são de submissão. Pregadores e exegetas tentam dar um jeito nisso. Mas não é possível! Esses hagiógrafos (os escritores sagrados) sabiam o que estavam fazendo. E certamente estão respondendo a mulheres insubmissas, que encontravam na comunidade de fé um espaço para sua voz e para a sua vez, dois milênios antes do feminismo! Mas elas não venceram. O modelo de família Greco-romana, assumido como modelo de administração eclesiástica, fez dos pastores, bispos, padres e demais eclesiásticos, os verdadeiros cabeças da Igreja. O Vento, contudo, sopra onde quer...
Esse é um resumo mal feito. Tosco, se preferir. Mas o que ele quer dizer é o seguinte: o mundo pré-moderno não conheceu a família nuclear-patriarcal que vigora em nossos dias!
A família nuclear-patriarcal -- painho, mainha e sua prole -- é uma invenção muito recente do ponto de vista do processo histórico. Seu processo de formação envolve elementos variados, que vão desde as mudanças nas estruturas de produção econômicas fundadas pelo Capitalismo ocidental, à invenção do “amor romântico”, até seu vaticínio pelo Estado moderno, como um dispositivo estratégico para o governo político da vida das populações. Bom, esse papo é um pouco chato, e eu resisto a ficar citando livros e autores que só o povo da academia tem estômago para ler. Por hoje, não!
Não duvido que a benção de Deus, que o amor mútuo, que isso e que aquilo mais estejam presentes nas famílias nucleares que se formam hoje. Deus me livre de julgar alguém! Mas é preciso tranquilidade e lucidez para admitir que a formação do modelo de família nuclear-patriarcal tem muito mais a ver com razões bem mundanas, bem profanas, bem históricas, se a gente preferir. E que Deus abençoe a todos nós, que vivemos sob a égide desse modelo que nos foi imposto por nossa cultura, e não por Ele. E que ele mesmo nos ajude a reconstruir esse modelo, especialmente enquanto um espaço de relações de poder e de papéis sociais consagrados. Sim! Não aposto no fim do modelo de família nuclear. Mas acho que ele precisa ser reconstruído. As mulheres, sobretudo, dizem isso, porque são elas que habitam o polo mais problemático desse modelo. Que Deus nos ajude nessa tarefa. Dizem que o Deus da Bíblia se revela na História...
Diante disso, penso que deveríamos parar com essa retórica de “defesa da família brasileira”. Porque dito de um modo direto: esse ente não existe! No mínimo, se formos honestos, vamos admitir que esse ente não passa de uma retórica, de um discurso, de um objeto construído pela linguagem, para não reconhecer o devir da história e a autonomia humana, que se põe a reinventar, como sempre o fez, a ideia de “família”.
Sim, a família nuclear-patriarcal foi o modelo vigente no Brasil a partir dos idos da Modernidade. O fim do sistema escravocrata e a introdução do Brasil no circuito do Capitalismo mundial ajudaram a consolidar esse modelo entre nós. E foi assim em todo Ocidente também! Contudo, o Censo do IBGE realizado em 2010 aponta para profundas transformações nesse modelo, que embora ainda se constitua como maioria, não goza mais de uma posição de hegemonia. E é bom que se diga que isso tem pouco a ver com gays, lésbicas, bissexuais, transexuais, travestis e heterossexuais. Essas mudanças todas têm a ver com os fluxos complexos da História, alimentados por fatores múltiplos, diversos, simultâneos e irrefreáveis. Acima de tudo, é a autonomia humana que está em jogo. E já chegou a hora do “povo de Deus” aprender a lidar com isso!
Portanto, precisamos saber que quando falamos em “família brasileira”, estamos cometendo o equívoco de empacotar todos os arranjos familiares, tradicionais e emergentes, numa categoria que só poderia ser aplicada ao povo das igrejas. A “família brasileira”, esse ente imaginário e puramente retórico, é muito mais heterogêneo e diverso do que nossa linguagem quer admitir, não cabendo nos limites do modelo nuclear-patriarcal, consagrado historicamente pelo discurso das igrejas cristãs.
É preciso saber também, que quando nos filiamos à retórica da “defesa da família brasileira”, estamos participando de um jogo de forças, em que assumimos como estratégia a invisibilização pelo não-reconhecimento do Outro, de sua autonomia, e de seu direito de ser. Se a “família brasileira” coincide com o modelo nuclear-patriarcal, o que são os demais modelos emergentes de organização familiar? Eles simplesmente “não são”? O que significa um apagamento desses? Não há violência nesse não-reconhecimento ou nesse confinamento do outro ao não-ser? Sim, há muita violência nisso tudo!
Por isso penso que é preciso amar as famílias, velhas e novas, como se não houvesse amanhã. Porque se você parar pra pensar...

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

BREVÍSSIMA HISTÓRIA DE UMA NEUROSE

Essa é rapidex!

É simples. O atual movimento evangélico brasileiro reproduz fielmente as neuroses pertencentes às suas matrizes norte-americanas. De que neurose se trata, neste caso? Daquela na qual não se pode viver sem "inimigos públicos", cujo confronto ajuda a reforçar nossa identidade adoecida [vide a própria política internacional dos EUA na segunda metade século 20: Vietnam, Cuba, União Soviética, América Latina, Oriente Médio]. 

O protestantismo de missão, vindo dos EUA, e que aqui chegou a partir da segunda metade do século 19, já trouxe na bagagem seu inimigo público: o Catolicismo, visto como responsável pelo atraso e pela minoridade da cultura brasileira. Os pentecostais, ainda cheirando a leite, foram nessa onda, embora sempre rivalizassem com os próprios protestantes históricos também. E por todo século 20, praticamente, nesses meios a Igreja Católica foi eleita como contra-identidade. 

Já os neopentecostais, visceralmente ligados também a matrizes norte-americanas, decidiram dar continuidade à neurose por outro caminho. E elegeram, por muito tempo, as religiões de matriz africana como seu "inimigo público". Inimizade safada, com certeza, já que nesse pega-pá-capá muitos elementos dos cultos afroameríndios foram assimilados pelos "irmãos". E até hoje isso continua em voga. Mas a bola da vez mudou. 

E estranhamente, o "inimigo público" atual teve a capacidade inédita de suscitar o horror de todo mundo: de protestantes e pentecostais históricos e de neopentecostais também. E mais: também de forma inédita, o "inimigo público" da vez é externo ao Grande Arraial Religioso. Tô falando desse pessoal da sexualidade diferente, tirada do armário recentemente. E a neurose continua, pois sem inimigos públicos pra fazer guerra "nóis num vévi" !!! E se vivermos mais uns anos, ainda vamos ver esse "inimigo público" com cara nova. 

Quem será? Não faço ideia. Viva e verá !!!

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

POR UMA HERMENÊUTICA BÍBLICA DA SUBVERSÃO


Considero muito oportuno o que nos propõem os editores da revista e editora Novos Diálogos, quando nos convidam a pensar conjuntamente a nossa fé a partir do espírito da Quaresma. Três coisas muito boas temos aí: 1) o convite a continuarmos pensando a nossa fé, com seriedade, humildade e amor, para a edificação de todo povo de Deus e para promoção da vida; 2) o convite para pensarmos a fé coletivamente, pois ninguém sozinho é capaz de dar conta de toda a demanda reflexiva desse tempo no campo da espiritualidade cristã. Creio que essas reflexões devem ser entendidas como um convite ao pensamento para todos e todas que compõem a comunidade cristã, já que pensar a fé não é privilégio de especialistas; 3) o convite para fazermos isso tudo a partir do sentimento da Quaresma, negligenciada por nós, evangélicos e protestantes brasileiros, mas presente nas mais antigas tradições cristãs como um tempo de contrição e de preparação para a Semana Santa.
Muito mais do que oferecer-lhes um pensamento pronto, o que eu desejo fazer nessas breves linhas é partilhar interrogações, e convidar a você, leitor e leitora, a pensarmos juntos. Como você verá a seguir, escolhi o tema das relações entre as igrejas evangélicas e a Bíblia. Acredito ter feito isto por razões muito óbvias.
A primeira delas diz respeito à centralidade que se busca dar à Bíblia enquanto texto fundamental, com autoridade exclusiva na vida de nossas comunidades e de nossas tradições religiosas. A despeito das enormes diferenças ideológicas que nos distinguem, somos todos parte dessa grande “religião do livro”, na qual se tornou o Cristianismo ocidental. E enquanto herdeiros diretos e indiretos das reformas religiosas do século 16 na Europa, a luta pela preservação do sola scriptura tem sido uma das marcas distintivas dessa espiritualidade que nos caracteriza enquanto evangélicos e protestantes no Brasil. Prova disto é que o protestantismo, como nenhuma das demais religiões do livro, tem contribuído nos últimos anos para uma difusão massiva da Bíblia em grande parte das culturas do mundo. Tudo isto sinaliza para a centralidade conferida ao texto bíblico na autocompreensão que evangélicos e protestantes têm de si, como povos da fé bíblica.
Contudo, não é apenas essa centralidade conferida à Bíblia entre os evangélicos e protestantes que me instiga. Além disto, são seus usos, suas leituras e interpretações, que considero serem muito peculiares no contexto das demais grandes igrejas que formam o cristianismo ocidental. Instiga-me o fato da Bíblia servir aos mais diferentes tipos de propósitos entre nós, desde o fomento à fragmentação grupal que nos marca, até a estigmatização de grupos sociais cujo estilo de vida difere daquele preconizado pelos evangélicos. Confesso a minha insistente sensação de que as formas com as quais nos relacionamos com a Bíblia, via de regra, estão muito distantes da maneira como o próprio Jesus de Nazaré leu e interpretou sua Escritura Sagrada.
Assim, neste ensaio parto de um pressuposto, que é ao mesmo tempo uma interrogação para pensarmos juntos. Considero que a centralidade conferida à Bíblia entre evangélicos e protestantes brasileiros tornou-se tão autoevidente e tão naturalizada, que nos impede de questionarmos a nossa própria relação com esse texto religioso e com a vida de um modo geral. Creio ser unânime a ideia de que a autocompreensão de nossas comunidades está imbuída do sentimento de que pertencemos, de forma quase exclusiva, ao povo da fé bíblica. Para ficarmos com apenas o exemplo de um teólogo famoso, o suíço Karl Barth afirmaria que as reformas religiosas do século 16 na Europa se constituíram como recuperações e continuações históricas da fé experimentada por Israel, testemunhada nos textos bíblicos.
É justamente os efeitos dessa autocompreensão e da suposta autoevidência desta “fé bíblica” que gostaríamos de interrogar a partir de agora. São esses efeitos que, a nosso ver, nos impedem de problematizar a relação que estabelecemos com a própria Bíblia, e consequentemente com a vida.
Eu nos questionaria: por que nossa relação com a Bíblia não tem a mesma liberdade que Jesus de Nazaré tinha diante dos textos sagrados de sua religião?[1] Evidencia-se muito a atitude subversiva de Jesus frente as autoridades político-religiosas de seu tempo, e mesmo o seu enfrentamento (quer velado quer explícito) ao imperialismo romano. No entanto, pouco falamos da liberdade subversiva de Jesus de Nazaré frente à Lei, e o modo de relação dele com os textos sagrados. Quase nunca notamos que a novidade da pregação e da atividade de Jesus de Nazaré tem como pano-de-fundo uma profunda releitura dos textos fundamentais de sua tradição religiosa, feita com muita liberdade e tendo na defesa da vida mais frágil uma espécie de “princípio hermenêutico”.
Jesus subverte aquele tipo de leitura que se relaciona com as Escrituras Sagradas a partir de um modelo jurídico, circunscrito ao esquema mandamento-observância, em que as demandas da vida devem se submeter às exigências da lei. Antes da observação irrestrita e inflexível da lei grafada com tinta, Jesus sempre privilegiou a restauração das forças da vida, feita à base da fé, do acolhimento e do amor manifestado em gestos muito concretos. A letra da lei só faz sentido na medida em que contribui para que a “lei do amor” restaure as relações humanas. Em sua liberdade de intérprete das Escrituras Sagradas, a preservação da vida é que tem proeminência, e a palavra sagrada só faz sentido se se prestar a protegê-la e afirma-la. É a santidade da vida que faz luzir a sacralidade da Escritura.
Como lemos e interpretamos hoje a nossa Bíblia? Que relações estabelecemos entre a Bíblia e a vida? Que nível de liberdade temos ao ler e interpretar a nossa Bíblia hoje? O quanto ainda estamos identificados com uma leitura feita no modelo jurídico do mandamento-observância? Como esse modelo arcaico, subvertido pela forma com que Jesus de Nazaré lia a sua Escritura Sagrada, molda ainda hoje o nosso sentido de missão na sociedade? Quem tem proeminência na leitura que fazemos de nossa Bíblia hoje: a preservação da vida frágil, ou a aplicação insensível da letra à vida?
É preciso observamos ainda que aquele modelo arcaico de interpretação das Escrituras Sagradas, subvertido por Jesus de Nazaré, e fundado sob o esquemamandamento-observância, foi bastante lucrativo do ponto de vista do exercício do poder. O sistema de opressão simbolizado pelo Templo de Jerusalém, enquanto exercício do poder das elites religiosas sobre os mais fragilizados, só podia manter-se mediante uma concepção jurídica das Escrituras. Havia a própria Escritura Sagrada, concebida como lei inflexível a ser aplicada literalmente à vida. Havia uma elite privilegiada daqueles que mantinham o monopólio da interpretação correta. E havia grupos sociais fragilizados, a quem só restava os altos custos da submissão, quase sempre traduzidos em altos custos financeiros, já que nenhum bem simbólico era gratuito nesse esquema. Em resumo, manter uma leitura das Escrituras no esquema mandamento-observância é fundamental para o exercício do poder.
Creio firmemente que nosso chamado, nossa vocação e nossa missão como comunidades cristãs na sociedade não devem se dar no nível do exercício do poder. Pelo contrário, imitar a atitude de Jesus de Nazaré é assumir o papel de agentes proféticos diante dos poderes que fazem minguar a vida, quaisquer que sejam seus meios de ação: políticos, religiosos, ideológicos etc. Não estou certo de que tem sido este o papel, de um modo geral, representado pela grande comunidade evangélica em nosso país. Os expressivos números do crescimento de nossas comunidades ainda não se converteram no crescimento da justiça social, na diminuição da violência e da corrupção política, ou na consolidação de uma cultura de paz e fraternidade. Desconfiamos profundamente que o projeto de grande parte da comunidade evangélica no Brasil vai se convertendo acintosamente em um projeto de poder, cuja face mais recente é a presença maciça nas plataformas político-institucionais de Estado.
Desconfio que esta inércia social, assim como a atitude de flerte com o exercício do poder, estejam profundamente arraigadas pela forma arcaica de ler e interpretar a Bíblia, que ainda caracteriza grandemente as comunidades evangélicas em nosso país. É por isso que lhe convido, neste tempo de Quaresma em que nos preparamos para celebrar a Semana Santa, a pensarmos um pouco acerca de nossa relação com o documento central de nossa identidade religiosa. Carlos Mesters, conhecido biblista holandês radicado há muitos anos no Brasil, apelidou a Bíblia de “flor sem defesa”. Bela, singela, capaz de aromatizar a vida, a Bíblia pode ser instrumentalizada em função de projetos completamente antagônicos ao espírito de Jesus. Como flor sem defesa, ela pode instrumentalizar o ódio em lugar do amor, a arrogância em lugar da simplicidade, e o poder em lugar do serviço gratuito ao próximo.
Meu convite, portanto, nesse tempo de Quaresma, é para seguirmos a Jesus de Nazaré também em seu gesto subversivo de leitura das Escrituras Sagradas. E como ele, fazer da leitura da Bíblia motivo para tornar a vida mais bela, mais justa e boa de ser vivida para todo mundo (João 10,10). 
PARA APROFUNDAR
COM JESUS NA CONTRAMÃO
Carlos Mesters
Edições Paulinas│2007│135pp.
[Neste pequeno livro o biblista Carlos Mesters tenta nos aproximar do contexto mais amplo (social, político, geográfico, econômico) que serviu como pano-de-fundo para a atividade de Jesus de Nazaré. Muito mais do que a formulação de novos valores religiosos, Mesters nos mostra como a prática de Jesus buscava resgatar as potencialidades da vida em todas as suas dimensões. A releitura dos textos fundantes da tradição religiosa judaica tem importância pivotal para essa prática subversiva de Jesus, registrada nos evangelhos canônicos. Esse livro pode nos ajudar a repensar nossa forma de ler a Bíblia e de fazer missão hoje.]


[1] Cf., por exemplo, Mt 5,17-48.

Texto também disponível em Novos Diálogos.

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

"ABANDONEI A FÉ"


Por Pr. Reginaldo Silva 
(mais um que não se vê representado pelo $ilas)

Depois que deixei de ser “pastor de igreja” (coloquei entre aspas apenas para identificar um tipo de pastorado) e de passar a pensar em falar coisas que a oficialidade de minha denominação religiosa condena, algumas pessoas que me conhecem começaram a afirmar que abandonei a fé. Eu sempre respondi dizendo que não foi isso que ocorreu comigo. Mas, depois de assistir à entrevista de Silas Malafaia no programa de Marília Gabriela, chego à conclusão que as pessoas que falam isso de mim têm razão. Abandonei a fé.

Não acredito na Bíblia como o livro que encerra todas e quaisquer questões sobre ciência e filosofia, como afirmou Silas Malafaia.

Não acredito que seja normal ser um milionário num país de tantos miseráveis, conforme defende o milionário Silas Malafaia.

Não acredito que ser homossexual é ser igual a bandido, como acredita e afirma Silas Malafaia.

Não acredito que seremos uma nação justa se negarmos direitos aos homossexuais, como acredita Silas Malafaia.

Não consigo ver nos evangelhos Jesus falando mais sobre o inferno do que sobre qualquer outra coisa, com o objetivo de convencer as pessoas a partir do medo da punição, como vê Silas Malafaia.

Não consigo respeitar a autoridade celestial de Silas Malafaia.

Não acredito no Deus anunciado por Silas Malafaia. Prefiro acreditar no Deus que, nas terras empoeiradas da Palestina, foi condenado à morte por ter preferido a companhia dos pobres, das prostitutas... E afastou-se dos “santos”, daqueles que faziam orações altas nas esquinas, que se sentavam nos primeiros lugares do templo...

É, abandonei a fé.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

EM MEMÓRIA DOS MORTOS DE SANTA MARIA


Minima Theologica: em memória dos mortos de Santa Maria


Por Leonardo Boff

Os antigos já diziam:”vivere navigare est” quer dizer, “viver é fazer uma viagem”, curta para alguns, longa para outros. Toda viagem comporta riscos, temores e esperanças. Mas o barco é sempre atraído por um porto que o espera lá no outro lado.
Parte o barco mar adentro. Os familiares e amigos da praia acenam e o acompanham. E ele vai lentamente se distanciando. No começo é bem visível. Mas na medida em que segue seu rumo parece aos olhos cada vez menor. No fim é apenas  um ponto. Um pouco mais e mais um pouco desaparece no horizonte. Todos dizem: Pronto! Partiu!
Não  foi tragado pelo mar. Ele está lá, embora não seja mais visível. E segue seu rumo.
O barco não foi feito para ficar ancorado e seguro na praia. Mas para navegar, enfrentar ondas, vencê-las e chegar ao destino.
Os que ficaram na praia não rezam: Senhor, livra-os das ondas perigosas, mas dê-lhe, Senhor, coragem para enfrenta-las e ser mais forte que elas.
O importante é saber que do outro lado há um porto seguro. Ele está sendo esperado. O barco está se aproximando. No começo  é apenas um ponto levemente acima do mar. Na medida em que se aproxima é visto cada vez maior. E quando chega, é admirado em toda a sua dimensão.
Os do porto dizem: Pronto! Chegou! E vão ao encontro do passageiro, o abraçam e o beijam. E se alegram porque fez uma travessia feliz. Não perguntam pelos temores que teve nem pelos riscos que quase o afogaram. O importante é que chegou apesar de todas as aflições. Chegou ao porto feliz.
Assim é com todos os que morrem.  O decisivo não é sob que condições partiram e saíram deste mar da vida, mas como chegaram e o fato de que finalmente chegaram. E quando chegam, caem, bem-aventurados, nos braços de Deus-Pai-e-Mãe de infinita bondade para o abraço infinito da paz. Ele os esperava com saudades, pois são seus filhos e filhas queridos  navegando fora de casa.
Tudo passou. Já não precisam mais navegar, enfrentar ondas e vencê-las.  Alegram-se por estarem em casa,  no Reino da vida sem fim. E assim viverão para sempre pelos séculos dos séculos.
(Em memória dolorida e esperançosa dos jovens mortos em Santa Maria na madrugada do dia 27 de janeiro de 2013).

Fonte: http://leonardoboff.wordpress.com/2013/01/28/minima-theologica-em-memoria-dos-mortos-de-santa-maria/

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

A EFICÁCIA DA MAGIA HOJE


Meu amigo Cacau (para alguns Rev. Cláudio Márcio) me perguntou por que a magia, sobretudo essa patrocinada pelas religiões, seria algo tão fascinante e que suscitaria adesões tão apaixonadas ainda hoje. Eu dizia a ele que não tinha muita certeza sobre a razão disto, mas desconfiava que a resposta tivesse a ver com duas palavras: imediatismo e conforto. Hoje eu acrescentaria mais um elemento: significado.
Todas as soluções mágicas para a resolução dos problemas cotidianos prometem ser imediatas. Poupa-se, dessa forma, o tempo considerável em resoluções não-mágicas. E tempo é moeda forte na atualidade, sobretudo quando aplicado como empreendedorismo. Uma das contradições de nossa vida pós-moderna consiste no fato de que trabalhamos e investimos esforços para uma plenitude de vida que está sempre a nossa frente, como uma terra prometida à qual nunca chegamos. Portanto, remir o tempo na solução de nossos conflitos ajuda-nos a manter os passos firmes nesse caminho para um futuro de plenitude (que nunca se realiza!). A magia, por sua promessa de imediatismo, faz todo sentido num esquema como esse.
Ela também nos poupa dos conflitos e dos desconfortos sempre implicados em soluções não-mágicas de dilemas humanos. Ela nos poupa, por exemplo, dos desgastes de um vis-a-vis. Nesse sentido, funciona mais ou menos como aquilo que a psicanálise chamou de “mecanismos de defesa”. Os mecanismos de defesa, segundo Freud, são dispositivos inconscientes cuja finalidade seria proteger o ego do sofrimento. Opera-se essa proteção do ego a partir de uma modificação da realidade. Assim, a pessoa em luto racionalizará a perda de seu parente como tendo sido “a vontade de Deus”, e seu sofrimento terá sido, pelo menos, atenuado. A magia, por evitar um face a face do indivíduo com seu próprio dilema, também tende a protegê-lo dos possíveis sofrimentos de encarar a realidade de forma nua e crua. Ela deposita esse trabalho nas mãos de um Outro mais poderoso: o deus, o espírito, as forças da natureza, ou qualquer Outro Ente em que a pessoa possa creditar a resolução do seu dilema, e ver-se livre do sofrimento de ter que resolvê-lo ela mesma.
A magia também seria uma maneira de imprimir significado a situações confusas. Por meio dela, o indivíduo “compreende” a raiz do seu dilema, e por meio dela também se desresponsabiliza da parte que lhe cabe no aparecimento do mesmo. Grande parte do sofrimento humano está ligado a questões de significado. Por isso são tão frequentes questões como “por que sofro?”, ou “por que isto ocorreu justo a mim?”. E é só significando magicamente a raiz do seu dilema que o indivíduo poderá manipular as forças mágicas na sua solução.  
Não se pode negar aquele aspecto de fascínio que Rudolf Otto apontou como uma das faces do sagrado. O sagrado, conforme Otto, é simultaneamente aterrorizante e fascinante. A magia, por seu pertencimento à esfera do sagrado, também é fascinante. Não acredito que as pessoas de hoje possuam mais dilemas humanos que as de qualquer outro tempo. Mas tudo indica que o objetivo de racionalização radical da vida, buscado pela Modernidade, vai se mostrando fracassado numa pós-modernidade em que o pensamento mágico se vê mais fortalecido a cada dia.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

EU SOU UM SER SINCRÉTICO


Por Roberto Amorin
Pastor da Igreja Batista da Proclamação (Salvador-BA)
Nasci católico, fui batizado por pais católicos, embora minha avó materna tivesse lá os seus apegos às religiões de matriz africana - bastava o relâmpago clarear o céu e a palha benta e santa Bárbara eram invocados para protege-la (fato é que nenhum raio jamais a atingiu rsrsrs). Ainda na minha infância vi a minha mãe converter-se ao protestantismo, sua vida e apego à fé são fundamentais na pessoa que tenho me tornado. 
Tenho uma tia esotérica (que me ensinou que há dois tipos de pessoas vivendo no mundo: as que querem ter razão e as que querem ser felizes), fiz a primeira comunhão e desejava o sacerdócio (franciscano) - pela influência da religiosidade da minha familia, mas também dos sacerdotes que serviam na minha cidade. A influência dos meus avós paternos e os seus exemplos de vida me fizeram me apegar aos ensinos de Jesus. Minha tia paterna exerceu forte influência sobre a minha vida com sua alegria de viver.
Moro numa cidade acolhedora e sincrética, tenho amigos das mais diferentes correntes religiosas e até os sem nenhuma corrente ... 
Tentei "produzir" uma religião puro sangue, fracassei. Vez por outra me pegava negociando, fazendo acordos para continuar sendo quem sou ... minha religião sempre foi morena, mistura. Assim sendo fui aprendendo a unir coisas aparentemente diferentes em favor de algo maior. Fui aprendendo o que significa:"ouvistes o que foi dito aos antigos, eu porém vos digo ...". 
Hoje me dei conta que sou um ser sincrético, ou parafrasenado Cora Coralina: vive dentro de mim todas as crenças... 
Hoje me dei conta que apesar disso tenho uma fé convicta, definida (embora não definitiva), em processo, resultado do caminhar comunitário ao lado do meu Salvador, fruto da minha experiência com o sagrado.
No Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa AME, mesmo aquele "infiel" que pratica uma religião diferente da sua, se seu amor nao chegar a tanto, ao menos tolere ... continue crendo do seu jeito, segundo a sua caminhada e sua experiência com o sagrado, mas perceba que o outro tem o mesmo direito e este deve ser não apenas respeitado, mas defendido ...

sábado, 19 de janeiro de 2013

A RAZÃO ESPIRITUAL DO CRISTIANISMO DE LIBERTAÇÃO

Por Jung Mo Sung

Recentemente assisti uma entrevista de um padre famoso por suas liturgias-show em um canal de TV aberto. Ele disse que respeitava a Teologia da Libertação, mas que ela levava somente assistência social aos pobres, mas não a fé; e que ele levava a fé e também a assistência social.



Eu não quero discutir aqui se a opinião dele sobre a TL está correta ou não, mas temos que reconhecer que essa é uma imagem muito divulgada sobre a TL. Isto é, difundiu-se na sociedade, e também em muitos setores das igrejas cristãs, que a TL se preocuparia somente ou prioritariamente com as questões sociais e políticas (o que é mais do que mera assistência aos pobres dito por aquele padre) e, com isso, deixaria sem segundo plano a religião, fé e espiritualidade.

Quem conhece melhor a TL sabe que isso não é correto, mas algo deve ter passado para que essa "falsa imagem” tenha se espalhado. Não pode ser somente culpa ou responsabilidade de algum tipo de "difamação” ou incompreensão por parte dos que se opõe a TL. Talvez não tenhamos sido suficientemente claro em explicitar os fundamentos bíblicos, a experiência viva da fé e a espiritualidade que nos move nas lutas e debates sociais e políticos. Em me lembro de uma aula que tive com Hugo Assmann, no mestrado em teologia, em 1988, quando ele nos dizia muito seriamente: se a TL perder a bandeira da espiritualidade para setores carismáticos conservadores será o início do seu fim.

Não sei se já perdemos essa bandeira e luta, mas penso que é fundamental sempre nos relembrarmos e reforçarmos uma das convicções fundamentais dos primeiros teólogos da libertação: a TL é uma teologia espiritual! Não porque discute a espiritualidade na Bíblia ou retoma o estudo dos grandes mestres espirituais – coisas que também faz –, mas porque assume como o seu momento "zero” uma experiência espiritual. É bastante divulgada a tese de que a TL é o momento segundo, sendo o momento primeiro as lutas pela libertação. (Por isso, a TL não é uma simples releitura dos tratados teológicos a partir da opção pelos pobres, ou como diversos propõe hoje a partir do pluralismo religioso, mas uma reflexão teológica a partir e sobre as lutas de libertação.) Mas, poucos se lembram que, na tradição do cristianismo de libertação, o que nos motiva para essa luta é a indignação ética frente a realidade da injustiça social, do sofrimento dos pobres. E que essa indignação é mais do que meramente uma questão ética. Como a primeira geração da TL afirmou: é uma experiência espiritual de ver na face do pobre a face de Jesus.

Talvez esse ponto fundamental, que está no fundamento, deva ser mais aprofundado e difundido pelo cristianismo de libertação. Quando se diz que no encontro solidário com os pobres e outras vítimas das injustiças e preconceitos encontramos com Jesus ressuscitado, é claro que isso não deve ser entendido no sentido literal, como se pudéssemos ver Jesus com os olhos que " a terra irá comer”. É uma linguagem espiritual-teológica. Entendemos melhor o seu sentido quando nos perguntamos de onde vem essa força que nos empurra a lutar por pessoas que não podem nos pagar ou retribuir – lutar de "graça” – e quando nos perguntamos também porque, apesar de tanta dificuldade e incompreensões, essa luta deixa nossa vida com mais "graça” de ser vivida, razão pela qual nos mantemos fieis a luta.

É da sabedoria espiritual cristã ser capaz de "ver” esses "mistérios da fé” – a experiência da "graça” de Deus no cotidiano – que estão por detrás, para além da mera aparência, de "assistência social” ou de "luta política”. Uma sabedoria que é capaz de perceber e compreender o Espírito de Jesus Crucificado e Ressuscitado nas nossas vidas. É isso que quer dizer "encontrar Jesus no encontro solidário com os pobres e vítimas”.

Pessoas e grupos que vivem movidas por essas experiências espirituais se congregam em comunidades para celebrar sua fé e sua caminhada espiritual. É uma celebração "energizada” por algo mais profundo do que performances de rituais humanos, uma celebração movida por esse Espírito de Amor solidário, que nos faz compreender o que diz a primeira carta de são João: "Ninguém jamais contemplou a Deus. Se nos amarmos uns aos outros, Deus permanece em nós e o seu Amor em nós é realizado” (1Jo, 4, 12).

Talvez o que precisamos é melhorar nossa comunicação com a igreja e a sociedade para mostrar mais claramente que o que move o cristianismo de libertação não é ideologia política ou problemas sociais, mas é a fé em Jesus e o Espírito Santo, que nos movem ao encontro das pessoas que sofrem e juntos lutar pela Vida. E isso porque, além de ser teologicamente correto, a força social do cristianismo está na sua espiritualidade.

[Jung Mo Sung, autor, com Hugo Assmann, de "Deus em nós: o reinado que acontece no amor solidário aos pobres” (Paulus). Twitter: @jungmosung].

Fonte: http://www.adital.com.br/site/noticia.asp?lang=PT&cod=73185

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

JESUS E FREUD

Um pouquinho de bom humor pra quem não se achar mais santo que Jesus!