terça-feira, 24 de maio de 2016

PARA QUE SERVE A BÍBLIA ?



Tenha calma... Se você se dispuser a seguir esse longo argumento, você vai constatar que a pergunta que lhe dá título é feita com seriedade, e com vontade sincera de discernimento. No mais, isso aqui é só um argumento mesmo, e nada mais. Eu sou teólogo por formação, e não consigo não meter o bedelho nessas coisas, especialmente nesses dias de “muita fé”, em que a Bíblia tem tido milhares de utilizações diferentes. A maioria desastrosa... para mim.
Na verdade, eu estou entre aquelas pessoas que pensam que a sociedade inteira deveria levar a Teologia como algo muito sério. Por quais razões? Porque diferentemente da Modernidade, que confinou a influência da Religião à dimensão privada da vida das pessoas, atualmente assistimos à reocupação do espaço público-político por representantes de instituições religiosas, que a partir dessas tradições de fé tentam pautar certas políticas públicas. O caráter laico dos Estados atuais nunca esteve tão relativizado quanto agora. E eu vejo nisso um risco à Democracia.
A Bíblia é o documento central para uma grande parte dos cristãos no mundo todo. Os protestantes, por exemplo, dizem não reconhecer outra autoridade normativa para a sua fé e prática além da Bíblia (na prática não é bem assim, mas abafemos esse caso...). Para os católicos, a Bíblia tem o mesmo peso normativo que a Tradição Eclesial e o Magistério Hierárquico. Assim, a autoridade de fé e prática dos católicos está assentada num tripé. Os protestantes nunca aceitaram isso (ou nunca entenderam!). Enfim...
Mas a Bíblia mesma, o que é?
Os cristãos mais fervorosos dirão: ‘é a Palavra de Deus’ – inerrante, infalível, atemporal e deve ser o mapa a nortear a existência humana. Outros ponderarão e dirão: ‘ela contém a Palavra de Deus’. O verbo ‘conter’ ajudaria a contemporizar essa noção, situando a Palavra de Deus em porções muito especiais da Bíblia, o que, obviamente, exclui muita coisa ali presente. Ela conteria a Palavra de Deus, mas conteria também muita palavra humana, falível, errante e cultural.
De fato, a Bíblia é uma coletânea de tradições religiosas muito antigas e muito diferentes, que por meio de longos processos históricos e acirradas disputas de poder, foram reunidas na forma de um ‘cânon’. Isso vale para o Antigo Testamento e para o Novo também. Esse longo processo histórico e essas acirradas disputas de poder deixaram de fora conteúdos tais que, se reunidos, produziriam outras três ou quatro Bíblias. Deus mesmo, segundo penso, esteve ausente o tempo todo dessas disputas de poder. A seleção, portanto, foi um processo bem profano...
O produto final – essas Bíblias que carregamos hoje em dia – reúne narrativas religiosas que vão desde a sacralização da guerra (culto ao Deus da morte) até a proposta de universalização do amor e da misericórdia (culto ao Deus da vida). Ela reúne tradições que vão desde a meditação sapiencial para qualificar a vida, até a religião dos profetas, que era marcada pela denúncia dos diversos tipos opressão. Há muitas imagens de Deus ali presentes, muitas delas bastante contraditórias, e porque não, excludentes. Jack Miles dizia que se os ministros religiosos dissessem publicamente tudo o que se atribui a Deus na Bíblia, eles seriam imediatamente demitidos de seus cargos. Eu concordo!
É por isso que nós precisamos de Teologia e de Hermenêutica. Porque ler a Bíblia não é simples. O fundamentalismo religioso e seu irmão siamês, o literalismo bíblico, só se sustentam à base de muita desonestidade intelectual. O fundamentalismo afirma que Deus inspirou cada letra do texto bíblico, e, portanto, o mesmo tem validade integral e atemporal. Onde está a desonestidade intelectual aí? Está no fato de que, na prática, o que o fundamentalista faz é selecionar passagens bíblicas que sirvam de pretexto para condenar os outros, enquanto faz vistas grossas a tantas outras passagens nas quais ele mesmo estaria implicado. Ele literaliza para os outros, e relativiza para si. Por exemplo, ele condena o homossexual ao inferno com base na interpretação literal de um texto bíblico, e faz vistas grossas para dez outros textos que condenam o julgamento precipitado, o acúmulo de riquezas, a omissão perante a miséria alheia, a prepotência, e por aí vai...
As pessoas de mentalidade mais secular, que por alguma razão se distanciaram da Religião, e hoje são marcadas por uma suposta cultura ilustrada, tendem a considerar a Bíblia um livro anacrônico e imprestável. Para algumas dessas pessoas, a Bíblia se reduz à narrativa religiosa que se tornou hegemônica na cultura Ocidental (porque sempre instrumentalizada pelo Poder). Esse modo de ver, no meu entendimento, está parcialmente correto. Mas a Bíblia pode ser mais que isso!
Há hermenêuticas subversivas. Há maneiras alternativas de ler o mesmo texto. A Bíblia é polifônica, como qualquer outra narrativa textual. Tudo depende do coração de quem a lê. Eu tenho a impressão de que o fundamentalismo bíblico consiste no seguinte: numa forma com que a pessoa justifica seus preconceitos com o texto da Bíblia na mão. O sujeito já é homofóbico, classista, racista, misógino, angustiado, neurótico, antissocial, e outras coisas. Na Bíblia ele encontra uma forma de dar legitimidade a tudo isso. E nada mais eficaz para legitimar um comportamento que fundamentá-lo a partir da ideia do ‘sagrado’.
Mas como eu ia dizendo, há maneiras alternativas que buscam dar outra utilidade à Bíblia. Há leituras que partem do pressuposto de que o amor é a grande vocação a que todos os seres humanos foram chamados por Deus. Assim, o amor passa a ser um tipo de “óculos” ou de “filtro” a partir do qual lemos a Bíblia. Em Teologia chamaríamos a isso de “princípio hermenêutico”. O amor, portanto, seria o princípio hermenêutico pelo qual a Bíblia deveria ser lida e interpretada.
Nessa perspectiva a Bíblia não seria nem anacrônica nem imprestável. Pelo contrário, ela teria muita coisa a dizer à cultura contemporânea. Ainda que ela não servisse para explicar todos os aspectos e pormenores da vida (esse nunca foi mesmo o seu propósito!), ela serviria para criar relações humanas muito melhores e muito mais qualificadas que essas que temos. Para mim, a Bíblia não tem muita serventia se não for para isso: humanizar as relações entre as pessoas. E isso, penso eu, todos os Cristianismos devem ao mundo até agora...

sábado, 2 de abril de 2016

SOBRE A ARTE DE DESVINCULAR-SE


Você já parou pra pensar na qualidade dos seus vínculos humanos? Me refiro aos vínculos familiares, profissionais, e principalmente aos vínculos afetivos. Você já avaliou alguma vez a qualidade emocional desses seus vínculos?
O grande filósofo judeu Martin Buber (1878-1965) escreveu uma obra seminal, intitulada Eu e Tu (1923). Nela, Buber avalia esses vínculos humanos, e denuncia uma mania muito comum entre nós, que é a de estabelecer relações do tipo eu-isso. Nessas relações o outro é um "isso", um objeto, um fetiche, uma projeção do nosso desejo. O outro é tudo, menos um "tu". Essas são as relações sem alteridade.
Zygmunt Bauman (1925-), por sua vez, também nos ajudou a entender os vínculos humanos mais recentemente, com um livro gostoso chamado Amor líquido (2013). Segundo o autor, esse é um livro sobre a fragilidade dos laços humanos nesses dias atuais. Bauman explica que o fascínio das redes sociais não está nas conexões que elas possibilitam. O fascínio das novas redes está justamente na facilidade de desfazer vínculos, tamanha a fragilidade deles. Um clique e tudo resolvido! Já na vida off-line...
Hoje (02/04) eu realizei uma visita a uma pessoa querida, internada no hospital psiquiátrico José Lopes, aqui em Maceió. Lá, conheci outra pessoa, em profundo quadro depressivo, e descobri que o seu quadro havia se instalado após uma separação afetiva. Eu não sou especialista em nada, muito menos em saúde mental. Mas estou me especializando cada vez mais em fazer perguntas a partir das experiências que vivencio.
Para além de possíveis predisposições genéticas a certos transtornos mentais, que tipo de vínculo é esse que leva uma pessoa a afundar-se num quadro semi-catatônico, em função do fim de uma relação amorosa? Qual era a qualidade emocional desse vínculo afetivo? O outro dessa relação era um "tu" ou um "isso"?
Há um investimento cultural pesado sobre o estabelecimento de vínculos afetivos saudáveis. Isso é salutar e necessário. Mas acho que necessitaríamos do mesmo investimento na arte de desvincular-se. Desvincular, desapegar, superar separações, é algo que nunca se faz sem certo sofrimento e pesar. Flávio Gikovate explica que nossa dificuldade com as separações afetivas vem do fato de que toda ruptura desse nível tem cheiro de morte.
Em Mal-estar na civilização (1930) Freud chega a afirmar que "nunca nos encontramos tão indefesos contra o sofrimento como quando amamos, nunca tão desamparadamente infelizes como quando perdemos o nosso objeto amado ou o seu amor".
Mas, se criar vínculos afetivos saudáveis é necessário e urgente, talvez mais urgente seja aprendermos a arte de desvincular-se do modo mais digno, menos traumático, e menos violento do ponto de vista de nossa saúde mental e emocional. Nos relacionarmos com o outro como um "tu", e não como um "isso" parece ser um início interessante para o aprendizado da difícil arte de desvincular-se.

sábado, 12 de março de 2016

BREVE EXERCÍCIO DE EXEGESE SOBRE OS "EFEMINADOS" DO NOVO TESTAMENTO (1Co 6,9-10)

O grande teólogo suíço Karl Barth (1886-1968) dizia que "uma comunidade de fé verdadeiramente interessada na verdade do Evangelho deve ser uma comunidade interessada em Teologia". Eu estou entre os que acreditam nisso. Pensar a fé teologicamente não tem nada a ver com pedantismo. Antes, é um ato mais que necessário, especialmente em nossos dias, marcados por um pluralismo religioso cada vez mais irrefreável.
Escrevo essas notas tendo em mente as turbulências causadas pela decisão da minha comunidade de fé -- a Igreja Batista do Pinheiro --, relativa ao recebimento de pessoas LGBTs em seu rol de membros. Como explicou o Pr. Wellington Santos em texto amplamente divulgado, a decisão da comunidade foi a culminação de dez anos de debates, estudos, pesquisa séria, e muita oração. Graças a Deus prevaleceu o entendimento de que o amor, mais que a doutrina sem coração, é o maior dos imperativos cristãos!
Como sei que o povo evangélico, em especial, tem um apego grande ao texto bíblico, eu gostaria de escrever umas poucas e simples linhas acerca de um dos textos no Novo Testamento utilizado nessas polêmicas sobre a homossexualidade. Vou usar algumas ferramentas da exegese bíblica, especialmente as vinculadas com questões de linguagem, a partir do texto grego no qual o Novo Testamento foi escrito. Repito: não há nenhum pedantismo nesses exercícios. E vou tentar simplificar ao máximo.
O texto de São Paulo, de 1Co 6,9-10, diz o seguinte:
"Então não sabeis que os injustos não herdarão o Reino de Deus? Não vos iludais! Nem os devassos, nem os idólatras, nem os adúlteros, nem os depravados, nem as pessoas com costumes infames, nem os ladrões, nem os avarentos, nem os bêbados, nem os injuriosos herdarão o Reino de Deus" (Tradução da Bíblia de Jerusalém).
A primeira coisa que faremos é destacar duas palavras, ambas no versículo 9: malakoi e arsenokoitai. Na tradução que citei, essas palavras gregas foram traduzidas por "devassos" e "pessoas com costumes infames" respectivamente. Outras traduções optam por "imorais" e "efeminados". A Nova Versão Internacional (NVI) fez opção por traduzir essas palavras gregas por "homossexuais passivos e ativos".
Note um primeiro grupo de questões a serem ponderadas:
- Quais critérios são utilizados na tradução de um texto como a Bíblia?
- Por que há tantas traduções diferentes dos mesmos textos?
- O que leva um tradutor a fazer opção por um termo, e não por outro?
- Os termos usados pela língua receptora (a atual) conseguem dar conta do significado literal dos termos originais?
Precisamos pensar um pouco nisso!
Mas agora vamos pensar um pouco sobre as palavras malakoi e arsenokoitai, presentes no texto grego original do NT. Em primeiro lugar, elas não podem ser traduzidas por "homossexuais ativos e passivos", por uma razão muito simples: o mundo antigo e o contexto do Novo Testamento não conheciam essa palavra, que só veio a ser cunhada no século 19, por Richard von Krafft-Ebing, no contexto do saber psiquiátrico. A tradução da NVI, portanto, é um ato muito mais teológico que filológico (linguístico), porque escolhe deliberadamente os termos em questão. Toda tradução, nesse caso, é uma forma de teologização!
Muitas traduções, especialmente as mais utilizadas entre os evangélicos, têm optado por traduzir malakoi por "efeminados", o que remeteria a uma condenação da homossexualidade. Malakoi, contudo, em termos muito literais, era uma palavra cujo significado queria dizer "mole", "macio", "suave". Algumas correntes filológicas sugerem que se tratasse de uma referência à moleza nas relações afetivas, própria dos "mulherengos", que não se firmavam em laços afetivos sólidos. Os malakoi seria uma referência ao homem dedicado a muitas mulheres de uma vez.
O caso de arsenokoitai é mais difícil, pois se trata de uma palavra quase nunca utilizada no Novo Testamento. Tudo aponta para o fato de que temos aqui um neologismo cunhado por Paulo, oriundo de duas outras palavras gregas: arsen (homem) e koiten (cama). Nesse difícil campo de decisão acerca de qual palavra utilizar como um equivalente próximo do termo original, uma corrente de tradução tem optado pela expressão "prostituição cultual", em função do contexto religioso que dá origem a estes escritos. A prostituição sagrada foi uma prática muito comum no contexto tanto do Antigo quanto do Novo Testamento, e não há contradição em relacionar a condenação paulina a essas práticas cultuais, muito presentes em Corinto.
Traduzir é colocar em movimento uma Teologia. Essas notas aqui escritas em função do texto de 1Co 6,9-10 valem para todos os textos bíblicos. Toda tradução bíblica é feita em função da tradição onde o tradutor se situa. Ela é quase sempre um instrumento teológico para fortalecer o ponto de vista da respectiva tradição. O texto de 1Co 6,9-10 é um dos que tem sido traduzidos para discriminar e fechar a porta a uma comunidade enorme de pessoas, diferentes em sua orientação sexual, mas igualmente valiosas em sua humanidade. Entretanto, tudo indica que não há qualquer referência à homossexualidade no texto que estamos destacando.
Mas, e agora: devem todas as pessoas que fazem parte das comunidades religiosas atuais aprenderem grego, e aprenderem exegese ??? Obviamente que não! Mas isso não reforçaria um tipo de intelectualismo, que põe aqueles que tiveram acesso a essas ferramentas numa posição de poder privilegiada ??? Também não!
Isso simplesmente nos chama a sentar, juntos, em comunidade, e tentarmos pensar nossa fé teologicamente. Cada pessoa pode trazer a contribuição do seu olhar. O povo tem sua sabedoria, e ela também vale nessa história de "pensar a fé teologicamente". Quem estudou e possui as ferramentas da exegese, dá a sua contribuição. Será apenas mais uma, nessa importante tarefa de compreender melhor aquilo que cremos.
Não estou falando de uma tarefa fácil. Mas complicado mesmo é continuar usando a Bíblia para justificar os preconceitos que já existem em nós. Esse é um caminho mais cômodo e mais fácil. Mas além de burro, nos afasta da maturidade que se espera dos cristãos.