segunda-feira, 26 de abril de 2010

SOB A LUZ DA ESPERANÇA


Apologia e testemunho acerca de uma comunidade Batista

Para a Igreja Batista Esperança, em Salvador-BA

Em minha pequena caminhada cristã e pastoral, há duas coisas para as quais nunca me senti vocacionado: a apologia, como defesa do protestantismo frente a confissões de fé diferentes, e o espírito “testemunheiro”, como meio propagandístico e marqueteiro de divulgar a fé. Mas também eu não desejaria jogar fora a bacia de água suja junto com o bebê. Apologia e martyria (testemunho) são, de fato, constituintes da vida cristã. No período Patrístico, especialmente entre os séculos III, IV e V de nossa Era, apologia e testemunho foram os pilares de sustentação da fé cristã, pelo menos para o Cristianismo Ocidental. Justamente esse que nos chegou nos moldes católico e protestante.

Todavia, para nossos atuais movimentos evangelicais, apologia e testemunho ganharam outras significações. E são justamente contra estas significações que sempre me pus. Apologia tornou-se aí sinônimo de polêmica, e de cruzada frente ao catolicismo e às religiões não-cristãs. Testemunho, por sua vez, tornou-se uma das formas (sempre muito suspeitas) com que o aparelho institucional lança mão como meio propagandístico e marqueteiro. Apologia, que deveria consistir no esforço de demonstrar a plausibilidade da fé cristã frente aos desafios do mundo contemporâneo, tornou-se expressão da eterna celeuma interreligiosa própria dos fundamentalismos. Testemunho, que deveria consistir na “eloqüência silenciosa” da nova vida experimentada por indivíduos e comunidades em função de sua fé em Jesus Cristo, tornou-se “obsolescência barulhenta” como meio de lotar templos e multiplicar fiéis.

[Não esqueça:

Apologia = Esforço de demonstrar a plausibilidade da fé cristã frente aos desafios do mundo contemporâneo.

Testemunho = “Eloqüência silenciosa” da nova vida experimentada por indivíduos e comunidades em função de sua fé em Jesus Cristo.]

***

No último fim de semana tive o privilégio de participar como preletor das comemorações do sétimo aniversário de organização da Igreja Batista Esperança (IBE), no bairro de Pituaçu em Salvador. Considero a IBE como uma dessas comunidades cristãs dignas de nosso esforço apologético e testemunhal. E até me arriscaria numa comparação ousada.

Paulo de Tarso, escrevendo à comunidade cristã de Tessalônica, expressaria sentimentos e teceria elogios relacionados à postura daquela comunidade frente ao contexto no qual estava inserida. O contexto dizia respeito ao início da onda de perseguições deflagrada contra os primeiros cristãos nas províncias do Império Romano. Nesse difícil contexto de perseguição imperial, Paulo elogiaria os crentes tessalonicenses pela “operosidade de sua fé, pela abnegação do seu amor, e pela firmeza da sua esperança em Jesus Cristo” (1Ts 1,3). Naquele contexto de violência imperial, Paulo louvaria a Deus pela comunidade de Tessalônica, dizendo que seus membros haviam “se tornado imitadores dele e de Jesus Cristo, de sorte que aquela comunidade se tornara modelo para todos os crentes na Macedônia e na Acaia” (1Ts 1,6-7). Em outros termos, Paulo parece entusiasmado com as respostas da comunidade frente aos desafios colocados pela situação contextual. Naquele caso: fé operante, amor abnegado, firmeza na esperança, e testemunho da pertinência comunitária para toda região.

A IBE, como a maioria de nossas comunidades cristãs, vive hoje à luz de outras situações contextuais. Tendo sido criada em 2003 sob influência do pastor Raimundo César Barreto (hoje à frente da divisão de Liberdade e Justiça da Aliança Batista Mundial), a IBE fez a opção preferencial por localizar-se numa comunidade periférica de Salvador, situada no bairro de Pituaçu. Hoje, sob a influência do pastor Waldir Martins, a IBE segue em sua vocação de comunidade cristã profundamente preocupada em responder adequadamente às demandas sociais, culturais e espirituais do seu entorno.

Como é peculiar nas periferias de nossas grandes cidades, a carência de educação, saúde, lazer, cultura e espiritualidade também formam o contexto do bairro de Pituaçu. Nesse sentido, o calendário e o organograma da IBE se estruturam em função dessas demandas, concretizando a tese missiológica do pastor Luis Longuini Neto, para quem “a missão é da igreja, mas a agenda é do mundo”. As iniciativas sócio-culturais da IBE vão desde um belíssimo projeto de uma biblioteca comunitária para atender às crianças do bairro, passando pelo oferecimento de cursos de capacitação em informática, e culminando no fomento à cultura por meio do oferecimento de cursos de dança. Além disso, a IBE mantém convênio com a Secretaria Municipal de Saúde, oferecendo seu espaço físico como posto de atendimento à comunidade nas políticas públicas relacionadas à saúde.

No mais, a IBE está filiada à Aliança de Batistas do Brasil (junto com a Igreja Batista do Pinheiro em Maceió, a Igreja Batista de Bultrins em Olinda, e a Igreja Batista Nazaré em Salvador), o que se constitui como uma das formas de declaração de seu perfil ecumênico, progressista, inclusivo, libertário e evangelicamente preocupada com o ser humano em sua integralidade.

Dessa forma, com o mesmo espírito com que Paulo de Tarso elogiou a comunidade cristã de Tessalônica em função de suas respostas às demandas daquele contexto, eu penso ser possível fazer o mesmo em relação à IBE. A partir da maneira com que a IBE tem se relacionado frente às demandas do bairro de Pituaçu, é perfeitamente possível louvar a Deus pela “operosidade de sua fé, pela abnegação de seu amor, e pela firmeza de sua esperança”. É também perfeitamente possível dizer que a IBE, nesse sentido, tornou-se “modelo para todas as igrejas da região”.

***

É verdade, os Evangelhos nos ensinam a não falar muito acerca das coisas que fazemos pelos outros. “Que a mão direita não saiba o que a esquerda fez” (Mt 6,3), ensinava Jesus de Nazaré. Quem vive de propagandear suas práticas caritativas quase sempre o faz sob a necessidade de autopromoção e de beneficio próprio. Mas também é verdade e conselho evangélico o fato de que “não podemos deixar de falar daquilo que temos visto e ouvido” (At 4,20). Enquanto a autopromoção é expressão do desejo de autopremiação, “falar do que temos visto e ouvido” outras pessoas e comunidades fazerem, pode ser a maneira de atualizar a função apologética e testemunhal de nossas comunidades cristãs. Isso por algumas razões simples.

Primeiro, porque a reboque do que aparece na televisão, as pessoas são cada vez mais conduzidas à homogeneizar a experiência das comunidades cristãs e do ministério pastoral. O que quero dizer é que a “representação social” que a maior parte das pessoas não-religiosas tem das igrejas e dos pastores, é aquela divulgada na televisão. Todo mundo sabe que a televisão, apesar de não ser o único, é um dos meios mais eficazes na produção de nossas representações sociais, isto é, na produção do pensamento do senso comum. As representações sociais são as formas com as quais damos significação ao desconhecido, ao novo, e o enquadramos em quadros de referência que nos tranqüilizam e dão sentido à nossa forma de encarar a realidade. Ninguém nega que as representações sociais mais comuns que se têm dos “evangélicos” no Brasil tenham estreita dependência daquilo que aparece na televisão. Dessa forma, nosso exercício apologético deve consistir em relativizar essas representações sociais, apontando para a pluralidade nas maneiras do ser “evangélico”.

Segundo, mais do que a simples relativização das representações sociais majoritárias acerca dos grupos chamados de “evangélicos”, nossa apologética deve consistir em demonstrar, por meio da força testemunhal e prática de comunidades como a IBE, que a espiritualidade cristã pode ser perfeitamente pertinente em face das demandas de nosso mundo contemporâneo. Portanto, nosso dever apologético já não gira mais em torno do binômio “verdade-falsidade”, mas em torno do binômio “pertinência-impertinência”. Isso porque em um mundo que se desintegra em função de projetos humanos que não humanizam a todos e todas (sendo o hegemônico o projeto capitalista-neoliberal), o mais urgente não é saber quem está mais perto de uma ortodoxia. O mais urgente é saber quem está mais perto de uma ortopraxia.

Nesse sentido, acredito que “Esperança” tenha sido mesmo o melhor nome escolhido para essa comunidade Batista plantada há sete anos em Pituaçu.

sábado, 10 de abril de 2010

CULTURA, IDENTIDADE E SUBJETIVIDADE


Ensaio sobre o processo civilizatório de Alagoas

Não é verdade que a “identidade de um povo” – essa coisa surpreendentemente rígida e fluida ao mesmo tempo – sempre se serve de certas produções culturais, tomando emprestado delas seu prestígio, e identificando nelas peculiaridades capazes de colocar toda uma gente sob o brilho dessas mesmas produções culturais? Não é verdade que os gênios da literatura, da música, das artes cênicas, das manifestações populares da cultura etc., conseguem a proeza de agregar sob a luz de suas criações o orgulho distintivo de todo um povo? Não é verdade que certos gêneros literários e musicais, certas manifestações religiosas e também profanas da cultura etc., profundamente idiossincráticas, nos remetem quase espontaneamente à vida de certos povos?

O professor de história Douglas Apratto Tenório (2005, p. 11), da Universidade Federal de Alagoas, prefaciando o clássico alagoano A Utopia Armada (Dirceu Lindoso), nos oferece eloqüentes exemplos para as sugestões acima, do ponto de vista estritamente literário. Ele nos diz:

A Ilíada, obra prima da literatura mundial, o poema épico de Homero em torno do episódio da Guerra de Tróia marca indelevelmente, como a Odisséia, a civilização grega. Os hebreus elegeram os livros do Antigo Testamento como farol da vida judaica. Os hindus têm o Rig Veda ou Mahabaratha. Quem não associa Portugal ao seu livro nacional, os Lusíadas, de Luis de Camões? Ou a Espanha ao extraordinário El Ingenioso Hidalgo Don Quixote de la Mancha, de Miguel de Cervantes? Ou a Nicarágua ao Azul, de Ruben Dário? Quem poderá esquecer a Colômbia ao folhear o fantástico Cem Anos de Solidão, de Gabriel Garcia Marquez? O nosso Brasil de tantas obras jamais poderá se dissociar de Casa Grande e Senzala, do Mestre de Apipucos, Gilberto Freyre. Ou Minas Gerais, de Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, ou o povo gaúcho e o Rio Grande, de O tempo e o vento, de Érico Veríssimo?[1]

Esses exemplos poderiam ser multiplicados à exaustão. E muito mais se nos puséssemos a relacionar a identidade dos povos às demais manifestações de suas respectivas culturas, como a música, a dança, a religiosidade, as festas populares, e as demais possibilidades de manifestações culturais. Tais exemplos nos mostram que identidade e cultura, embora sejam coisas muitíssimo distintas, parecem indissociáveis.

Os processos de construção identitária dizem respeito à formação de certas de peculiaridades na experiência histórico-social dos povos. Portanto, identidade, como bem apontou Silva (2000), pressupõe a alteridade. Só poderíamos falar na identidade de um povo, por exemplo, a partir do referente da alteridade. Mas a identidade não está relacionada somente ao referente da alteridade. Além disso, ela também se constitui como elemento de resistência em face da possibilidade de desintegração, seja a partir de agentes externos que atentem contra a vida de um povo, seja em face de crises e dilemas enfrentados internamente pelos próprios agrupamentos humanos. A história é pródiga em apontar para casos excepcionais de resistência de civilizações inteiras, ancoradas em elementos de sua cultura. Certamente o caso das sociedades africanas vitimadas pela ação colonizadora européia na Modernidade, transplantadas para outras culturas “a fórceps”, seja um dos exemplos mais eficazes disto que queremos dizer. Embora nenhuma cultura consiga preservar-se intocável de hibridismos desde que exposta a esse tipo de intercâmbio, é possível dizer que, neste caso, a cultura dos povos africanos aí implicados tornou-se um elemento imprescindível como forma de resistência à desintegração imposta pela violência colonizadora, assim como forma de preservação de uma relativa identidade, visível ainda hoje.

Diante dessas questões introdutórias já poderíamos nos perguntar: existem elementos que nos permitam pensar numa “alagoanidade”? Ou, com o professor Élcio Verçosa (2002), perguntar: existe uma cultura tipicamente alagoana? Em Alagoas, quais seriam as produções culturais que permitiriam a esse povo ancorar a sua identidade? Quais ícones culturais emprestariam a sua aura para a construção de uma civilização idiossincraticamente alagoana? Que elementos da cultura poderiam ser identificados como reforçadores da identidade do povo alagoano, e que pudessem ser pensados tanto do ponto de vista da alteridade em relação a outras culturas, quanto do ponto de vista da resistência e da preservação das formas tradicionais da vida desse povo? É bom que se diga logo: não é fácil, ao sujeito chegado de outros cantos, identificar em Alagoas esses elementos[2]. Fazê-lo pressupõe um exercício de grande amplitude, envolvendo antes de tudo a inserção na vivência cotidiana desse povo. Provavelmente a inserção nas dinâmicas do cotidiano seja o primeiro recurso para quem deseja discernir “o espírito de um povo”. Tais dinâmicas são sempre fluidas e plurais. Elas se prestam, além do mais, para desfazer preconceitos e representações que por vezes não condizem com a realidade cultural de certas gentes, além de serem o depósito vivo da identidade de todo e qualquer agrupamento humano.

Historicamente, o caso de Alagoas parece ser o de um estado que tem tido seus processos identitários profundamente marcados pela tensão e pela diversidade. Mas é verdade: seria diferente em algum outro lugar do mundo? Não obstante, eu proporia pensarmos em algumas dessas imagens identitárias múltiplas tributadas ao povo alagoano. Pois há uma Alagoas dos folguedos e da riquíssima diversidade artística e cultural, e há a Alagoas dos coronéis e da oligarquia político-econômica. Há a Alagoas da violência e da corrupção política, e há outra Alagoas do “paraíso das águas”. Há a Alagoas conscientemente negada como imagem civilizacional para o próprio povo desse estado (a negra, índia, mestiça e paupérrima), e há a Alagoas insistentemente promovida como imagem para o povo de outros lugares (a das amplas possibilidades turísticas). E a tal identidade alagoana, como situá-la nesse caleidoscópio de representações? Nesse sentido, como falar numa alagoanidade? Deveríamos falar então em “alagoanidades”?

Manuel Diegues Jr. (2002), em O Bangüê nas Alagoas, nos oferece pista interessante para tentarmos elucidar essas questões. Para falar da cultura alagoana e da possibilidade de uma alagoanidade, esse autor nos remeterá a uma das matrizes da cultura desse estado. O subtítulo de sua obra, já estabelecida como referencial clássico da historiografia local, deixa clara uma dessas essas matrizes: Traços da influência do sistema econômico do engenho de açúcar na vida e na cultura regional. Gilberto Freyre (2002), prefaciando a referida obra, escreve que por vezes a história da formação do povo alagoano se confunde com a história da expansão e consolidação da atividade açucareira. Semelhantemente, Fernando Lira (2007), economista e professor da Universidade Federal de Alagoas, é de opinião de que a expansão da cana feita à base do trabalho escravo (tanto do índio quanto do negro) e da grande propriedade definiu as linhas básicas de um sistema de produção que caracterizou o Estado, marcando-lhe definitivamente os aspectos políticos, sociais e econômicos.

Não obstante, eu perguntaria o seguinte: seria possível afirmar, dessa forma, que uma das chaves para a compreensão tanto dos processos de formação identitária em Alagoas, assim como da diversidade das representações a ela associadas, possa ser identificada, como nos sugerem os autores supracitados, pelo viés político-econômico ligado à expansão e consolidação da cultura canavieira? Por hora, que essa suspeita fique em aberto, como forma de provocação.

No entanto, quer a expansão da cultura canavieira tenha um papel oni-abrangente na formação da alma alagoana (“marcando-lhe definitivamente os aspectos políticos, sociais e econômicos”, como pensa Fernando Lira), quer não, parece seguro afirmar que o cotidiano atual desse povo dá testemunho da ocultação consciente da influência de outras matrizes culturais, invisibilizadas por meio dos “aparelhos ideológicos” que conduzem a vida cultural de todo povo. É comum a outros estados da federação, como é o exemplo da Bahia e outros, que se utilizem os elementos das matrizes culturais na própria promoção propagandística dos bens e serviços oferecidos pelos mesmos, assim como em políticas públicas de outras naturezas. Ainda que seja resultado de profundas tensões internas, o caso baiano, por exemplo, dá testemunho da forte utilização dos elementos da matriz africana na promoção do potencial turístico daquele estado. Em Alagoas, ao contrário, é flagrante a negação dessas matrizes, sejam negras ou indígenas, que, quer queiram os atuais gestores desse estado, quer não, pertencem à “genética civilizatória” local.

Eu ainda gostaria de dizer alguma coisa sobre as implicações disso tudo nos processos de subjetivação, já que estamos pensando todas essas questões a partir de uma perspectiva psicossocial. Porém, antes eu gostaria de propor uma hipótese arriscada, que pretendo relacionar à questão das implicações sobre os processos de subjetivação em Alagoas.

Primeiro, nossa hipótese depende da adesão à suspeita acima cogitada de que o processo civilizatório em Alagoas está todo atravessado pela influência da expansão canavieira. A presença da variedade cultural proveniente das matrizes negra, indígena, e européia, assim como dos hibridismos surgidos desses “choques de civilização”, com toda peculiaridade de cada uma deles, deve ser vista nas dinâmicas de reação às imposições da visão de mundo subjacente às elites político-econômicas de Alagoas[3]. Desse modo, até aquelas manifestações marginais da cultura alagoana estariam relacionadas (ainda que reativamente) à cultura canavieira cujos protagonistas são cristãos, católicos e brancos. A dificuldade na admissão de uma “alagoanidade” proviria justamente daí. O cotidiano do povo alagoano parece apontar para o paradoxo de uma cultura que ao mesmo tempo em que não se reconhece naquelas matrizes marginalizadas historicamente, pouco se reconhece na visão de mundo dos protagonistas da construção político-econômica do estado. Como povo fraturado na constituição de sua auto-imagem e de sua identidade, as imagens que provém “de fora”, ligadas majoritariamente à violência e à corrupção política, parecem encontrar ampla adesão na própria sociedade alagoana. É nossa arriscada hipótese.

Como essas questões ecoariam no campo da subjetividade humana? Que implicações a problemática da cultura e da identidade em Alagoas teria sobre os processos de subjetivação? Tomemos um único exemplo à guisa de conclusão: o do fenômeno da violência. Usando uma das categorias de Pierre Bourdieu, a socióloga alagoana Ruth Vasconcelos (2009) vai falar de um certo habitus violento na cultura e na política de Alagoas. Esse habitus violento da cultura e da política alagoana se radicaria nas tradições coronelistas e de concentração do poder político, fortemente atreladas à cultura canavieira. Conforme a mesma socióloga, tal habitus violento na política alagoana teria profundas repercussões no tecido social, pois o Estado constitui-se como forma de referência ética para a população. Nesse sentido, poderíamos dizer que a violência, como fato presente no cotidiano do alagoano e relacionada à violência de estado, seria um dos sintomas do desarranjo identitário sobre a subjetividade?

Bibliografia

DIEGUES JR., Manuel. O Bangüê nas Alagoas – Traços da influência do sistema econômico do engenho de açúcar na vida e na cultura regional. 2ª edição, Maceió: EDUFAL: 2002

FREYRE, Gilberto. Prefácio. In: DIEGUES JR., Manuel. O Bangüê nas Alagoas – Traços da influência do sistema econômico do engenho de açúcar na vida e na cultura regional. 2ª edição, Maceió: EDUFAL: 2002

LINDOSO, Dirceu. A utopia armada: Rebeliões de pobres nas matas do Tombo Real. 2ª edição, Maceió: EDUFAL, 2005

LIRA, Fernando. Formação da riqueza e da pobreza de Alagoas. Maceió: EDUFAL, 2007

SILVA, Tomaz Tadeu da. A produção social da identidade. In: SILVA, T. T. (org.), HALL, S., WOODWARD, K. Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2000

VASCONCELOS, Ruth. O habitus violento expresso no poder e na cultura de Alagoas. In: VASCONCELOS, Ruth & PIMENTEL, Elaine. Violência e criminalidade em mosaico. Maceió: EDUFAL, 2009

VERÇOSA, Élcio Gusmão. Existe uma cultura alagoana? Maceió: Catavento, 2002


[1] Para Douglas Apratto Tenório (idem), do ponto de vista literário, A Utopia Armada seria a produção cultural mais próxima de identificar-se com a alma do povo de Alagoas. Para ele, essa obra seria uma espécie de “Ilíada alagoana”.

[2] O autor do ensaio é proveniente do estado da Bahia.

[3] Um dos exemplos históricos dessa afirmação é o episódio ocorrido em Maceió, em 1912, que ganhou a alcunha de Quebra de Xangô, marcado pela repressão às manifestações religiosas de matriz africana, feita em nome de ideais políticos. A tradição conhecida como Xangô rezado baixo, derivada desse episódio, reproduz até os dias atuais os efeitos do conflito com a visão de mundo das oligarquias político-econômicas de Alagoas.

sábado, 3 de abril de 2010

“EIS QUE FAÇO NOVAS TODAS AS COISAS”


A fé na ressurreição de Jesus Cristo e suas implicações para a espiritualidade cristã


O aspecto libertador da Sexta-feira Santa e da Páscoa consiste em que os pensamentos são arrebatados para muito além do destino pessoal e dirigidos para o sentido último de toda vida, de todo sofrimento e de todo e qualquer acontecimento e que se sente uma grande esperança

(Dietrich Bonhoeffer, Resistência e submissão)

Somente onde há sepulturas há ressurreições

(Friedrich Nietzsche, Assim falava Zaratustra)

Abrindo a conversa...

Tudo na espiritualidade cristã deve decorrer da fé na ressurreição de Jesus Cristo.

À ressurreição de Jesus Cristo estão ligadas:

Ø A vinda do Espírito Santo (Jo 16,7);

Ø A habitação do Espírito de Deus no seu povo (Jo 14,23; 1Co 3,16);

Ø A vivência de uma espiritualidade comunitária e ecumênica (Jo 17,21-23);

Ø A vivência de uma espiritualidade ecológica (Sl 104; Rm 8,22-23);

Ø A vivência de uma espiritualidade não patriarcal (At 2,17-18);

Ø A vivência de uma espiritualidade que tem como pano-de-fundo a liberdade, e não a Lei (2Co 3,17; Gl 5,3/13);

Ø A vivência de uma espiritualidade inclusiva, sobretudo para os “impuros” contemporâneos (Lc 4,18-19);

Ø A hermenêutica das Escrituras Sagradas (Lc 24,25-27);

Ø A organização das comunidades cristãs fundadas nos diferentes dons e carismas ofertados aos seus membros (1Co 12-14);

Ø A dinâmica e a vitalidade das comunidades fé reunidas em torno da memória de Jesus Cristo e do poder do Espírito Santo (Jo 16,12-13; At 1,8);

Ø A tarefa de evangelização e humanização dos seres humanos por parte das comunidades denominadas “igrejas”, orientadas pela agenda do Reino de Deus (Mt 6,10);

Ø A consciência do estado de “alienação” no qual se encontram os indivíduos e as sociedades humanas, estado que em linguagem bíblica chamamos de “pecado” e “injustiça” (Jo 16,8-11);

Ø A esperança escatológica da parousia (At 1,9-11);

Ø A esperança escatológica da vitória sobre a morte (1Co 15,55);

Ø A esperança escatológica da ressurreição universal dos mortos (1Co 15);

Ø A esperança escatológica da criação de novos céus e da nova terra (Ap 21-22).

Conforme o Segundo Testamento, tudo isto está organicamente atrelado à fé na ressurreição de Jesus Cristo.

1. Uma hipótese teológica provocadora

Eu nunca me senti muito interessado em discutir a historicidade da ressurreição. Para mim, ela é um objeto de fé que traz mais esperança que inquietação. Como os demais elementos da fé cristã (e de todo tipo de fé), ela é um a priori, indemonstrável. Caso não fosse, não seria objeto de fé. Isso não quer dizer que a ressurreição não seja discutível. Mas qualquer discussão a seu respeito deve levar em consideração que se trata de algo indemonstrável, isto é, ela não pode ser afirmada a partir de dados empíricos, mas também não pode ser negada desta forma. Por isso é indemonstrável. Aliás, haveria algo demonstrável em Teologia?

Outra questão que também nunca me interessou muito é aquela que especula acerca do que seria a fé cristã caso não houvesse a ressurreição. A fé cristã teria triunfado historicamente sem ela? E hoje, como seria um Cristianismo sem a fé na ressurreição?

Presumo que a primeira questão encontre consenso numa resposta afirmativa. Sim! Assim como outros movimentos religiosos milenares possuem uma caminhada histórica consistente sem uma fé na ressurreição de seus patriarcas fundadores, o mesmo poderia se dar com o Cristianismo. Mas presumo que a segunda questão – aquela sobre um Cristianismo sem a fé na ressurreição – não seja respondida tão consensualmente. E embora um Cristianismo assim fosse possível em termos de factibilidade histórica, sem a fé na ressurreição certamente ele seria muito diferente daquilo que temos hoje. Mas não posso negar que estas questões me forçam a pensar numa terceira: os Cristianismos que temos hoje correspondem àquele que deveria decorrer da fé na ressurreição em Jesus Cristo?

Nesse artigo, eu não desejo especular acerca de como seria esse Cristianismo sem a fé na ressurreição. Como disse, isso nunca me interessou. Me interessa, todavia, pensar em como a fé na ressurreição pode se constituir num critério teológico para avaliar a caminhada histórica de nossas comunidades cristãs hoje. Dessa forma, eu arriscaria a seguinte hipótese teológica:

Embora a fé na ressurreição continue sendo um dos elementos dogmáticos presentes na ideologia religiosa das igrejas cristãs, a maioria destas nos dá a impressão de que vivem sem a fé na ressurreição de Jesus Cristo.

Penso que aqui também valha a exortação: “pelos seus frutos os conhecereis” (Mt 7,15-23).

Conforme minha hipótese acima, não é preciso especular sobre como seria um Cristianismo sem a fé na ressurreição em Jesus Cristo. Ao que tudo indica, podemos visualizá-lo aqui e acolá, como manifestações concretas nesse caleidoscópio que constitui o Cristianismo de nossos dias. Também não estou certo se teria sido diferente em algum momento da história.

2. A fé na ressurreição e a espiritualidade cristã

Toda a espiritualidade cristã deve decorrer da fé na ressurreição de Jesus Cristo. Embora o Espírito de Deus (Ruah Iahweh) seja uma realidade dinâmica amplamente presente na teologia do Primeiro Testamento, sua plenitude e a radicalidade de sua dinâmica estão atreladas à ressurreição de Jesus Cristo (Jo 16,1-24). A isto está ligada a habitação do Espírito de Deus no seu povo e tudo o que disso decorre. Conforme o Segundo Testamento, decorrem desta a habitação do Espírito de Deus no seu povo:

Ø Uma espiritualidade comunitária (1Co 12,6-7);

Ø Uma espiritualidade ecumênica (Jo 17,23);

Ø Uma espiritualidade ecológica (Rm 8,22-23);

Ø Uma espiritualidade não patriarcal (At 2,17-18);

Ø E uma espiritualidade que tem por fundamento a liberdade no lugar da Lei (2Co 3,17).

Também os pormenores da missão das comunidades cristãs decorrem da fé na ressurreição de Jesus Cristo. Se a ela está atrelada, como veremos abaixo, a nova consciência da situação de “alienação” na qual se encontram os indivíduos e as sociedades humanas (Jo 16,7-11), decorre daí que a missão das igrejas está atrelada à fé na ressurreição de Jesus Cristo. A fé na ressurreição faz com que a agenda da missão seja determinada pelas demandas do mundo onde grassam o pecado e a injustiça. A fé na ressurreição também faz com que o “Reino de Deus” seja o critério de ação das comunidades cristãs (Mt 6,10). Seria ótimo se nossas igrejas submetessem sempre suas agendas denominacionais às demandas do mundo e do Reino de Deus. Como afirmava o pastor Luis Longuini Neto, a fé na ressurreição em Jesus Cristo nos faz perceber que “a missão é da igreja, mas a agenda é do mundo”.

3. A fé na ressurreição e a eclesiologia

A fé na ressurreição em Jesus Cristo também tem profundas implicações na forma com que nossas comunidades cristãs atuam no mundo, e como elas se organizam. Primeiro, porque essa fé empurra essas comunidades na direção dos pobres e excluídos de toda sorte (Lc 4,18-19). Depois, porque a fé na ressurreição de Jesus Cristo instaura uma concepção do ser humano que se opõe a toda diferenciação baseada em méritos. Conforme esta fé, por exemplo, homens e mulheres, em pé de igualdade, são convocados a serem partícipes na condução da dinâmica eclesial (At 2,17-18). Portanto, uma eclesiologia que exclui as mulheres da liderança e do pastorado está em profundo desacordo com a fé na ressurreição em Jesus Cristo.

Conforme esta fé, também a estruturação dessas comunidades se dá de maneira profundamente nova e inusitada. A estruturação comunitária fundada à base da fé na ressurreição de Jesus Cristo não se dá a partir de relações de poder verticalmente estabelecidas, seja por mérito intelectual, de gênero, ou por qualquer outro critério meritocrático. Essa estruturação se dá a partir dos dons e dos carismas concedidos pelo Espírito Santo aos homens e mulheres aí implicados (1Co 12,4-31). O Espírito de Deus, em sua criatividade, infunde uma diversidade de dons e carismas a fim de que a comunidade seja dinâmica, criativa, promotora da diversidade, do equilíbrio, do amor e da humanização do mundo.

4. A fé na ressurreição como contraponto à alienação humana

A fé na ressurreição de Jesus Cristo também está atrelada à forma cristã de leitura da realidade humana. É a partir dela que podemos dizer que a presente situação humana, incluindo as relações com a própria criação, se encontra na condição de alienação. É o próprio Espírito de Deus, proveniente da ressurreição de Jesus Cristo, que convence a comunidade humana de tal situação (Jo 16,7-11). Estamos usando aqui a expressão “alienação” como sinônimo de “pecado” e de “injustiça”, instigados pela forma com que Paul Tillich trabalha com aquele termo em sua Teologia Sistemática.

Tudo isso corresponde a dizer que a ressurreição de Jesus Cristo e a infusão do Espírito de Deus sobre toda carne nos ajudam a convencermo-nos de que a presente situação humana carece de seu “ideal poder de ser”. Paulo Freire, do ponto de vista da pedagogia, dizia que os seres humanos possuem uma vocação ontológica para “ser mais”. Eu diria que Freire aí está fazendo teologia em profundo acordo com a fé na ressurreição de Jesus Cristo. A partir dessa fé, somos instigados a pensar que os seres podem “ser mais humanos, compassivos, justos, fraternos, solidários etc”. Estar alienado e em pecado corresponde justamente a “ser menos humano”. É o Espírito de Deus infundido pela ressurreição de Jesus Cristo que nos convence do nosso “ser menos”, e é ele mesmo que nos auxilia no caminho para “ser mais”.

5. A fé na ressurreição e as demandas mais profundas do ser humano

No domingo de Páscoa em 25 de abril de 1943, no interior de uma cela da prisão em Tegel (Alemanha), Bonhoeffer escreveu as seguintes palavras numa carta para seus pais, Karl e Paula Bonhoeffer: “O aspecto libertador da Sexta-feira Santa e da Páscoa consiste em que os pensamentos são arrebatados para muito além do destino pessoal e dirigidos para o sentido último de toda vida, de todo sofrimento e de todo e qualquer acontecimento e que se sente uma grande esperança”.

Essas palavras de Bonhoeffer confirmam o fato de que a fé na ressurreição também responde às mais profundas demandas do espírito humano. Primeiro ele, e depois também P. Tillich, chamaram a essas demandas de “preocupações últimas” (ultimate concerning). Elas caminham juntas com as “preocupações preliminares” (Bonhoeffer), ou “penúltimas” (Tillich). As preocupações preliminares ou penúltimas para os seres humanos são aquelas do cotidiano: a economia, o lazer, o trabalho, a política, e tudo o que deriva delas. Elas são preliminares e penúltimas porque não decidem o destino e nem dão o “sentido total” da existência da maioria das pessoas. Embora sejam questões de suma importância para a vida, elas não respondem às chamadas “questões existenciais” dos seres humanos, das quais a mais importante é: qual o sentido da existência?

[Embora eu goste dessa separação entre preocupações últimas e penúltimas, tenho a convicção de que, para uma parcela majoritária dos seres humanos, aquilo que consideramos como penúltimo (comida, trabalho, lazer etc.), seja encarado como de valor último. Sem dúvida, para mais dos dois terços da humanidade mergulhados na carência cotidiana dos meios básicos à sobrevivência, um prato de comida é, sem dúvida, uma “preocupação última”.]

Há um famoso aforismo existencialista de Martin Heidegger onde se diz que “o ser humano [Dasein] é um ser para a morte”. De um ponto de vista da lógica, de fato, não haveria uma dedução mais óbvia a se extrair da observação do devir da história e do cotidiano. Mas a fé na ressurreição de Jesus Cristo é o contraponto a essa visão realista e fatalista das coisas. Com ela podemos dizer: “O ser humano é um ser para a vida”. Em minha opinião, essa fé é o mais belo paradoxo aceito entre os seres humanos. Isso por duas razões: (1) ela não arranca dos fatos da existência, que, como diz Heidegger, aponta para o encontro inevitável da morte; (2) mas ao mesmo tempo ela inscreve seu fundamento na própria existência humana, ao afirmar metaforicamente que “o que é corruptível é semente do incorruptível” (1Co 15,42-49).

6. A fé na ressurreição e as primícias da Nova Humanidade

É a fé na ressurreição de Jesus Cristo que nos permite apostar no triunfo final da vida sobre a morte, da justiça sobre a injustiça, da alegria sobre a dor e o sofrimento (Ap 21,4). No entanto, mais do que nos permitir fazer essa aposta e relaxar de braços cruzados, ela nos põe já em marcha, enquanto comunidades cristãs, como as primícias da Nova Humanidade (2Co 5,14-17). A fé na ressurreição de Jesus Cristo nos transforma em sinal escatológico para o mundo. Ela nos transforma nos primeiros brotos daquilo que se fará na plenitude da História. Portanto, a fé na ressurreição não é uma mera adesão a uma crença, mas é a força dinâmica que nos transforma no adiantamento da glória de Deus sobre a face da terra (Hc 2,14).

Fechando com mais provocação...

Em 2002, ano da conclusão da minha graduação em Teologia, eu mal podia suspeitar que enveredaria pelos caminhos da Psicologia, quando me pus a trabalhar com Freud na pesquisa monográfica. Em O futuro de uma ilusão, entre muitas outras coisas, Freud tenta refutar o clássico aforismo de Tertuliano Credo quia absurdum [Creio porque é absurdo]. Freud pergunta ali: “Se a fé se assenta no caráter absurdo de uma afirmação, somos obrigados a crer em todos os absurdos?” Um grave Não! seria nossa resposta ao pai da psicanálise!

A natureza da fé não se assenta no caráter absurdo de suas afirmações. Antes, se assenta na possibilidade de abertura que os seres humanos possuem de não se prenderem aos determinismos do real. A fé – sobretudo a fé na ressurreição de Jesus Cristo – é a confirmação do caráter rebelde do espírito humano perante os dados mudos e frios da realidade. Rubem Alves conclui o seu O que é religião? dizendo que “é mais belo o risco [da fé] ao lado esperança, que a certeza [da ciência] ao lado de um universo frio e sem sentido”. Portanto, mais do que a adesão a uma proposição absurda, a fé na ressurreição de Jesus Cristo (e tudo o que a ela está relacionado), é a mais bela de todas as apostas e o mais arriscado dos ricos (com o perdão da redundância) que o espírito humano pode se permitir em sua revolta frente aos determinismos da realidade.

Mas, e as nossas comunidades cristãs concretas, tais como são hoje, refletem as conseqüências bíblicas que decorrem da fé na ressurreição de Jesus Cristo? Se elas vivessem à luz dessa fé, seriam assim como aparecem aos nossos olhos hoje?

Trabalhos citados

ALVES, Rubem. O que é religião? 10ª edição, São Paulo: Brasiliense, 1986

BIBLIA SAGRADA. Primeiro e Segundo Testamentos

BONHOEFFER, Dietrich. Resistência e submissão – Cartas e anotações escritas na prisão. São Leopoldo: Sinodal, 2003

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 2005

FREUD, Sigmund. O futuro de uma ilusão: Edição Standart Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1969, vol. XXIII.

LONGUINI NETO, Luis. A missão é da igreja e a agenda é do mundo: teologia da missão em Martin Luther King Jr. e Richard Shaull. In: ALIANÇA DE BATISTAS DO BRASIL (Org.). Religião, utopia e sociedade: Diálogos com Martin Luther King Jr. e Richard Shaull. Salvador: Livro.com, 2009

HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes, 2006,volume único

TILLICH, Paul. Teologia Sistemática: Três volumes em um. São Leopoldo: Sinodal, 2003

quinta-feira, 1 de abril de 2010

A LOUCURA DA CRUZ


A “teologia da cruz” como subversão e poesia dos crucificados


Fecisti nos ad Te et inquietum est cor nostrum, donec requiescat in Te.

[Fizeste-nos para Ti, e nosso coração permanece inquieto enquanto não repousa em Ti.]

(Santo Agostinho, Confissões, Livro I)

Considero a “teologia da cruz”, como elaborada por Paulo de Tarso, um duplo exercício intelectual de subversão e poesia.

Mas também não posso deixar de dizer que o Cristianismo parece ter desprezado o sentido político da crucificação de Jesus. Para Rudolf Bultmann foi justamente Paulo o primeiro a “espiritualizar” a crucificação, tornando-a de um evento político num evento religioso. Eu discordo totalmente dessa interpretação. Prefiro pensar com Pablo Richard, para quem a despolitização do evento da crucificação de Jesus de Nazaré foi levada a cabo mais tardiamente, pelos quatro primeiros concílios ecumêmicos da Igreja Católica. Na verdade, já o Credo Apostólico parece testemunhar um claro desprezo tanto pela práxis de Jesus de Nazaré quanto pelas razões humanas da crucificação. No Credo, os únicos elementos mencionados da vida concreta de Jesus são seu nascimento e sua morte. Os três anos de sua subversiva atividade não são contemplados na produção desse documento dos primeiros séculos da Era Cristã. Portanto, Paulo de Tarso não deveria ser responsabilizado por tal esvaziamento dos significados políticos da cruz.

A Sexta-feira Santa talvez seja o melhor dia do ano para dizer que a crucificação de Jesus foi um evento político-religioso. Gosto da frase de Frei Betto, mencionada pelo meu amigo Ascânio Júnior, que diz que “Jesus não morreu atropelado por um jumento numa esquina de Jerusalém”. Nossa teologia cristã se aferrou por muito tempo à idéia de que o Império Romano interpretou de forma equivocada a práxis de Jesus. Instigados pelas perturbações religiosas da elite sacerdotal judaica, os romanos teriam se equivocado na acusação impetrada contra Jesus de Nazaré. Dessa forma, a sua crucificação permaneceria sendo um evento de dimensões meramente religiosas, ligada à “teologia do sacrifício vicário” oferecido por Deus aos seres humanos.

Richard A. Horsley e John Dominic Crossan talvez sejam dois dos melhores nomes que têm nos ajudado a compreender o significado político da crucificação de Jesus de Nazaré. Conforme eles, a acusação romana resumida na inscrição ao alto da cruz Iesu(a) Nazarenus Rex Iudaeorum foi legítima. Com isso não se está concordando com a sentença do aparelho judicial romano em sua condenação de Jesus de Nazaré. O que se está afirmando é que conforme a natureza da atividade de Jesus de Nazaré, outra acusação não seria possível. Também se está afirmando que somente hoje, a partir de nossa dicotomia moderna entre práticas estritamente políticas e práticas estritamente religiosas, é que podemos pensar que a práxis de Jesus era exclusivamente dirigida à correção das almas humanas. Ora, sua crucificação é a melhor prova de que as coisas não eram bem assim!

A crucificação, por parte dos romanos, constituía a pena capital do aparelho jurídico imperial a fim de preservar o controle, a dominação e a expropriação econômica das províncias subjugadas pela presença romana. O controle, a dominação e a expropriação das províncias subjugadas davam o suporte econômico para a Pax et Securitas Romana, que era pax et securitas somente para os próprios romanos. Profetas ambulantes movidos à base de meros sonhos religiosos, numerosos naqueles dias, nunca exigiram o gasto de um prego por parte de Roma. Pregos, madeiros, soldados e armas, eram exclusivamente utilizados contra aqueles que representavam uma ameaça concreta às campanhas imperiais de expropriação das colônias, sobretudo com a prática abusiva de impostos. Conforme Horsley, a cruz romana deveria ser dirigida exclusivamente aos “bandidos”, isto é, ela era uma forma de reprimir os insurretos que representassem uma ameaça à expropriação imperial feita em nome da pax romana.

Nesse contexto, a atividade de Jesus de Nazaré não pode ser circunscrita a uma atividade meramente religiosa. Ela se inscreve numa tradição de resistência anti-imperial presente em Israel, representada sobretudo pelos profetas. Mais do que a correção das almas humanas, a práxis de Jesus de Nazaré deve ser vista como a luta por revitalizar as formas tradicionais de vida na Palestina, que vinham sendo paulatinamente esmagadas pela opressão imperial. Tais formas tradicionais de vida deveriam ser marcadas pelo comunitarismo, pela fraternidade e por uma sociedade sem os flagelos da pobreza, da miséria e da exclusão (por exemplo, cf. Dt 15,7-11). Não estou equiparando o “movimento de Jesus” aos demais movimentos revolucionários e aos banditismos sociais contemporâneos a Jesus de Nazaré na Palestina. Mas a cruz, como repressão máxima do aparelho jurídico romano, foi o fim comum entre Jesus de Nazaré e os demais líderes de movimentos anti-imperiais de que temos notícia naqueles dias.

A “teologia da cruz” como subversão dos crucificados

Paulo de Tarso, mais do que todos nós hoje, sabia de todos esses pormenores. E ainda que ele quisesse esvaziar o conteúdo político da cruz, isso não lhe seria possível, a menos que sua atividade apostólica fosse desempenhada fora do alcance geográfico do Império Romano. Sua “teologia da cruz”, pelo contrário, se dá justamente no miolo do Império. E eu concordo com Neil Elliott quando afirma que, mais do que isso, a “teologia da cruz” em Paulo se dá em oposição deliberada ao Império. Utilizar a cruz como símbolo teológico tal como Paulo o fez seria insano, a menos que ele quisesse fazê-lo como oposição deliberada ao Império, como diz Elliott.

Num raciocínio simples, perguntemo-nos o seguinte: como o Império reagiria ao saber que alguém propalava em algumas de suas principais cidades (Corinto, Roma, Éfeso, Tessalônica etc) que um dos muitos “bandidos” e “insurretos judeus” abatidos pela crucificação agora havia ascendido à condição de Sotér kai Kýrios (Salvador e Senhor)? Não seria subversivo atribuir a um crucificado os títulos cabíveis somente ao Divino César – justamente os títulos de Senhor e Salvador (1Co 12,3)? Mais ainda subversivo do que atribuir os títulos pontifícios a um crucificado galileu, é afirmar que os “príncipes deste mundo” (archontes em grego, uma explícita alusão aos dirigentes do Império [1Co 2,6-8]) estão julgados por terem crucificado aquele insurreto.

Portanto, fazer do crucificado Sotér kai Kýrios não pode ser tomado como um esvaziamento do caráter político da cruz. Num contexto de dominação imperial, essa teologização só pode ser vista como um grande ato subversivo, de afronta deliberada às autoridades romanas, sobretudo ao Imperador. Não devemos esquecer que a política de expansão romana se dava justamente à base das prerrogativas messiânicas da pax, securitas et soteria – paz, segurança e salvação –, agora tributadas ao crucificado Jesus de Nazaré.

No plano das possibilidades e desdobramentos dessa “teologia da cruz”, temos então a potencialização e o empoderamento de todos crucificados e crucificadas do mundo. O próprio Paulo chegou a explorar esses desdobramentos, ao dizer que “Deus escolheu as coisas loucas do mundo para envergonhar os sábios e escolheu as coisas fracas do mundo para envergonhar as fortes; e Deus escolheu as coisas humildes do mundo, e as desprezadas, e aquelas que não são, para reduzir a nada as que são” (1Co 1,27-28). É por isso que a palavra da cruz só pode ser “loucura” para uns e “poder de Deus” para outros (1Co 1,18).

Isso quer dizer que uma “teologia cruz”, enquanto potencialização e empoderamento dos humilhados e humilhadas da terra, é mais do que necessária entre nós que hoje vivemos entre milhares de crucificados e crucificadas [Não é Alagoas, por exemplo, um estado majoritariamente feito de crucificados e crucificadas?]. Nesse sentido, a “teologia da cruz” consiste em falar do potencial que os humilhados e humilhadas têm de retomar a força e de serem autores de sua própria história. Significa tratar-lhes de forma não infantilizada. Mas, como dizia o grande psicólogo social Ignácio Martin-Baró, significa explorar o potencial de libertação latente no coração dos próprios oprimidos. Significa ainda viver à luz da convicção de que, se a história hoje é escrita em função dos crucificadores, amanhã é possível uma reversão disso, de modo que ela seja escrita pelos crucificados.

Assim como o crucificado de ontem foi feito Senhor e Salvador, uma “teologia da cruz” consiste em que os crucificados e crucificadas de hoje também possam ser feitos “senhores” e “salvadores”, pelo menos de suas próprias histórias.

A “teologia da cruz” como poesia e reconciliação

A Adélia Prado dizia no programa Sempre um Papo que a criação poética consiste num exercício de transcendência. A pedra que Carlos Drummond de Andrade viu não é a mesma que eu vi hoje no meio do caminho. O corpo feminino que instigou Vinicius de Moraes a escrever o poema Receita de Mulher não é o mesmo corpo feminino que o anatomista vê. Os seres humanos se tornam poetas e poetizas assim que esta capacidade de ver as coisas “transcendidas” os alcança. E é assim mesmo: é essa capacidade que os alcança, e não elas a ela!

Pensando assim eu reputo a “teologia da cruz” como uma poesia de tamanho maior. Porque ver a pedra no meio do caminho e um belo corpo feminino transcendidos, talvez esteja entre a média da criação poética. Mas ver um espetáculo como a crucificação, marcado pelo horror e o terror, transcendido como a forma com que “Deus reconcilia consigo todo o mundo” (2Co 5,19), ou é o Maior Delírio Psicótico da História, ou é a criação poética maximizada à toda potência. É por meio da fé que fazemos a segunda opção!

A crucificação era um espetáculo de horrores. Como Michel Foucault mostrou muito depois em Vigiar e Punir, “o corpo” era o local de manifestação das penas judiciárias. Todos os pormenores do ritual de suplício no corpo dos condenados deveriam ser minimamente regulamentados pelos códigos penais vigentes. No caso das crucificações romanas, a quantidade de chibatadas, o quebrar dos braços e pernas, a posição e a quantidade dos pregos, a caracterização pública do tipo de crime cometido (no caso de Jesus, a ridicularização da sua “realeza” por meio da coroa de espinhos), deveriam estar detalhadamente explicitados nos códigos penais. Conforme Foucault, o horror dos suplícios se prestava a duas coisas: (1) à afirmação do poder soberano sobre os corpos dos supliciados; (2) e o caráter exemplar para as testemunhas. Não é possível afirmar se Mel Gibson, em Paixão de Cristo, reproduziu com fidelidade o horror da crucificação de Jesus de Nazaré. Mas é possível arriscar a opinião de que sua dramaturgia deva estar mais próxima da crueldade das crucificações que a maioria das representações iconográficas que temos delas.

A “teologia da cruz”, tal como a temos em Paulo, transcende esse aspecto de horror ao ver na cruz a reconciliação do mundo com Deus (Cl 2,14-15).

Mas que significa estar reconciliado com Deus? Num mundo cheio de crucificados e crucificadas, como ter a paz que advém da reconciliação com Deus? Nesse mundo de crucificados e crucificadas, paz e sossego não seriam sinônimos de cinismo? Gosto da resposta que Rubem Alves deu a essas perguntas em sua tese de doutorado. Ele dizia em 1969: “Estamos reconciliados com Deus na medida em que compartilhamos da sua irreconciliação com o mundo, irreconciliação que faz com que Deus e os homens sofram. Por isso a paz com Deus significa uma ‘espada’ para o mundo: o julgamento permanente e a rejeição da inverdade daquilo que é, em favor de um novo amanhã de reconciliação e libertação”.

Sim, uma vez que Deus não está em paz com o mundo, estar reconciliado com Ele significa estar “inquieto” junto a Ele, até que “a justiça corra com um rio perene” (Am 5,24). A “teologia da cruz”, portanto, consiste nessa inquietação que nos impele a uma prática transformadora no mundo, e que tem por fundamento o movimento poético de ver a reconciliação do mundo com Deus, num lugar onde aparentemente reina um espetáculo de horrores.

Trabalhos citados

ALVES, Rubem. Da Esperança. Campinas: Papirus, 1987

BULTMANN, Rudolf. O significado do Jesus histórico para a teologia de Paulo. In: Crer e compreender: Ensaios selecionados. São Leopoldo: Sinodal, 2001

CROSSAN, John Dominic. O Jesus Histórico: A vida de um camponês judeu no mediterrâneo. Rio de Janeiro: Imago, 1997

ELLIOTT, Neil. A mensagem antiimperial da cruz. In: HORSLEY, Richard A. (Org). Paulo e o império: Religião e poder na sociedade imperial romana. São Paulo: Paulus, 2004

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: História da violência nas prisões. 36ª edição, Petrópolis: Vozes, 2009

HORSLEY, Richard A. Jesus e o império: O reino de Deus e a nova desordem mundial. São Paulo: Paulus, 2004

________ (Org.). Paulo e o império: Religião e poder na sociedade imperial romana. São Paulo: Paulus, 2004

MARTIN-BARÓ, Ignácio. Para uma Psicologia da Libertação. In: GUZZO, Raquel & LACERDA JR., Fernando. Psicologia Social: O resgate da Psicologia da Libertação. São Paulo: Alínea, 2009

RICHARD, Pablo. El Jesús histórico y los cuatro evangelios: Memoria, credo y canon para una reforma de la Iglesia. http://www.servicioskoinonia.org/relat/343.htm