sábado, 10 de abril de 2010

CULTURA, IDENTIDADE E SUBJETIVIDADE


Ensaio sobre o processo civilizatório de Alagoas

Não é verdade que a “identidade de um povo” – essa coisa surpreendentemente rígida e fluida ao mesmo tempo – sempre se serve de certas produções culturais, tomando emprestado delas seu prestígio, e identificando nelas peculiaridades capazes de colocar toda uma gente sob o brilho dessas mesmas produções culturais? Não é verdade que os gênios da literatura, da música, das artes cênicas, das manifestações populares da cultura etc., conseguem a proeza de agregar sob a luz de suas criações o orgulho distintivo de todo um povo? Não é verdade que certos gêneros literários e musicais, certas manifestações religiosas e também profanas da cultura etc., profundamente idiossincráticas, nos remetem quase espontaneamente à vida de certos povos?

O professor de história Douglas Apratto Tenório (2005, p. 11), da Universidade Federal de Alagoas, prefaciando o clássico alagoano A Utopia Armada (Dirceu Lindoso), nos oferece eloqüentes exemplos para as sugestões acima, do ponto de vista estritamente literário. Ele nos diz:

A Ilíada, obra prima da literatura mundial, o poema épico de Homero em torno do episódio da Guerra de Tróia marca indelevelmente, como a Odisséia, a civilização grega. Os hebreus elegeram os livros do Antigo Testamento como farol da vida judaica. Os hindus têm o Rig Veda ou Mahabaratha. Quem não associa Portugal ao seu livro nacional, os Lusíadas, de Luis de Camões? Ou a Espanha ao extraordinário El Ingenioso Hidalgo Don Quixote de la Mancha, de Miguel de Cervantes? Ou a Nicarágua ao Azul, de Ruben Dário? Quem poderá esquecer a Colômbia ao folhear o fantástico Cem Anos de Solidão, de Gabriel Garcia Marquez? O nosso Brasil de tantas obras jamais poderá se dissociar de Casa Grande e Senzala, do Mestre de Apipucos, Gilberto Freyre. Ou Minas Gerais, de Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, ou o povo gaúcho e o Rio Grande, de O tempo e o vento, de Érico Veríssimo?[1]

Esses exemplos poderiam ser multiplicados à exaustão. E muito mais se nos puséssemos a relacionar a identidade dos povos às demais manifestações de suas respectivas culturas, como a música, a dança, a religiosidade, as festas populares, e as demais possibilidades de manifestações culturais. Tais exemplos nos mostram que identidade e cultura, embora sejam coisas muitíssimo distintas, parecem indissociáveis.

Os processos de construção identitária dizem respeito à formação de certas de peculiaridades na experiência histórico-social dos povos. Portanto, identidade, como bem apontou Silva (2000), pressupõe a alteridade. Só poderíamos falar na identidade de um povo, por exemplo, a partir do referente da alteridade. Mas a identidade não está relacionada somente ao referente da alteridade. Além disso, ela também se constitui como elemento de resistência em face da possibilidade de desintegração, seja a partir de agentes externos que atentem contra a vida de um povo, seja em face de crises e dilemas enfrentados internamente pelos próprios agrupamentos humanos. A história é pródiga em apontar para casos excepcionais de resistência de civilizações inteiras, ancoradas em elementos de sua cultura. Certamente o caso das sociedades africanas vitimadas pela ação colonizadora européia na Modernidade, transplantadas para outras culturas “a fórceps”, seja um dos exemplos mais eficazes disto que queremos dizer. Embora nenhuma cultura consiga preservar-se intocável de hibridismos desde que exposta a esse tipo de intercâmbio, é possível dizer que, neste caso, a cultura dos povos africanos aí implicados tornou-se um elemento imprescindível como forma de resistência à desintegração imposta pela violência colonizadora, assim como forma de preservação de uma relativa identidade, visível ainda hoje.

Diante dessas questões introdutórias já poderíamos nos perguntar: existem elementos que nos permitam pensar numa “alagoanidade”? Ou, com o professor Élcio Verçosa (2002), perguntar: existe uma cultura tipicamente alagoana? Em Alagoas, quais seriam as produções culturais que permitiriam a esse povo ancorar a sua identidade? Quais ícones culturais emprestariam a sua aura para a construção de uma civilização idiossincraticamente alagoana? Que elementos da cultura poderiam ser identificados como reforçadores da identidade do povo alagoano, e que pudessem ser pensados tanto do ponto de vista da alteridade em relação a outras culturas, quanto do ponto de vista da resistência e da preservação das formas tradicionais da vida desse povo? É bom que se diga logo: não é fácil, ao sujeito chegado de outros cantos, identificar em Alagoas esses elementos[2]. Fazê-lo pressupõe um exercício de grande amplitude, envolvendo antes de tudo a inserção na vivência cotidiana desse povo. Provavelmente a inserção nas dinâmicas do cotidiano seja o primeiro recurso para quem deseja discernir “o espírito de um povo”. Tais dinâmicas são sempre fluidas e plurais. Elas se prestam, além do mais, para desfazer preconceitos e representações que por vezes não condizem com a realidade cultural de certas gentes, além de serem o depósito vivo da identidade de todo e qualquer agrupamento humano.

Historicamente, o caso de Alagoas parece ser o de um estado que tem tido seus processos identitários profundamente marcados pela tensão e pela diversidade. Mas é verdade: seria diferente em algum outro lugar do mundo? Não obstante, eu proporia pensarmos em algumas dessas imagens identitárias múltiplas tributadas ao povo alagoano. Pois há uma Alagoas dos folguedos e da riquíssima diversidade artística e cultural, e há a Alagoas dos coronéis e da oligarquia político-econômica. Há a Alagoas da violência e da corrupção política, e há outra Alagoas do “paraíso das águas”. Há a Alagoas conscientemente negada como imagem civilizacional para o próprio povo desse estado (a negra, índia, mestiça e paupérrima), e há a Alagoas insistentemente promovida como imagem para o povo de outros lugares (a das amplas possibilidades turísticas). E a tal identidade alagoana, como situá-la nesse caleidoscópio de representações? Nesse sentido, como falar numa alagoanidade? Deveríamos falar então em “alagoanidades”?

Manuel Diegues Jr. (2002), em O Bangüê nas Alagoas, nos oferece pista interessante para tentarmos elucidar essas questões. Para falar da cultura alagoana e da possibilidade de uma alagoanidade, esse autor nos remeterá a uma das matrizes da cultura desse estado. O subtítulo de sua obra, já estabelecida como referencial clássico da historiografia local, deixa clara uma dessas essas matrizes: Traços da influência do sistema econômico do engenho de açúcar na vida e na cultura regional. Gilberto Freyre (2002), prefaciando a referida obra, escreve que por vezes a história da formação do povo alagoano se confunde com a história da expansão e consolidação da atividade açucareira. Semelhantemente, Fernando Lira (2007), economista e professor da Universidade Federal de Alagoas, é de opinião de que a expansão da cana feita à base do trabalho escravo (tanto do índio quanto do negro) e da grande propriedade definiu as linhas básicas de um sistema de produção que caracterizou o Estado, marcando-lhe definitivamente os aspectos políticos, sociais e econômicos.

Não obstante, eu perguntaria o seguinte: seria possível afirmar, dessa forma, que uma das chaves para a compreensão tanto dos processos de formação identitária em Alagoas, assim como da diversidade das representações a ela associadas, possa ser identificada, como nos sugerem os autores supracitados, pelo viés político-econômico ligado à expansão e consolidação da cultura canavieira? Por hora, que essa suspeita fique em aberto, como forma de provocação.

No entanto, quer a expansão da cultura canavieira tenha um papel oni-abrangente na formação da alma alagoana (“marcando-lhe definitivamente os aspectos políticos, sociais e econômicos”, como pensa Fernando Lira), quer não, parece seguro afirmar que o cotidiano atual desse povo dá testemunho da ocultação consciente da influência de outras matrizes culturais, invisibilizadas por meio dos “aparelhos ideológicos” que conduzem a vida cultural de todo povo. É comum a outros estados da federação, como é o exemplo da Bahia e outros, que se utilizem os elementos das matrizes culturais na própria promoção propagandística dos bens e serviços oferecidos pelos mesmos, assim como em políticas públicas de outras naturezas. Ainda que seja resultado de profundas tensões internas, o caso baiano, por exemplo, dá testemunho da forte utilização dos elementos da matriz africana na promoção do potencial turístico daquele estado. Em Alagoas, ao contrário, é flagrante a negação dessas matrizes, sejam negras ou indígenas, que, quer queiram os atuais gestores desse estado, quer não, pertencem à “genética civilizatória” local.

Eu ainda gostaria de dizer alguma coisa sobre as implicações disso tudo nos processos de subjetivação, já que estamos pensando todas essas questões a partir de uma perspectiva psicossocial. Porém, antes eu gostaria de propor uma hipótese arriscada, que pretendo relacionar à questão das implicações sobre os processos de subjetivação em Alagoas.

Primeiro, nossa hipótese depende da adesão à suspeita acima cogitada de que o processo civilizatório em Alagoas está todo atravessado pela influência da expansão canavieira. A presença da variedade cultural proveniente das matrizes negra, indígena, e européia, assim como dos hibridismos surgidos desses “choques de civilização”, com toda peculiaridade de cada uma deles, deve ser vista nas dinâmicas de reação às imposições da visão de mundo subjacente às elites político-econômicas de Alagoas[3]. Desse modo, até aquelas manifestações marginais da cultura alagoana estariam relacionadas (ainda que reativamente) à cultura canavieira cujos protagonistas são cristãos, católicos e brancos. A dificuldade na admissão de uma “alagoanidade” proviria justamente daí. O cotidiano do povo alagoano parece apontar para o paradoxo de uma cultura que ao mesmo tempo em que não se reconhece naquelas matrizes marginalizadas historicamente, pouco se reconhece na visão de mundo dos protagonistas da construção político-econômica do estado. Como povo fraturado na constituição de sua auto-imagem e de sua identidade, as imagens que provém “de fora”, ligadas majoritariamente à violência e à corrupção política, parecem encontrar ampla adesão na própria sociedade alagoana. É nossa arriscada hipótese.

Como essas questões ecoariam no campo da subjetividade humana? Que implicações a problemática da cultura e da identidade em Alagoas teria sobre os processos de subjetivação? Tomemos um único exemplo à guisa de conclusão: o do fenômeno da violência. Usando uma das categorias de Pierre Bourdieu, a socióloga alagoana Ruth Vasconcelos (2009) vai falar de um certo habitus violento na cultura e na política de Alagoas. Esse habitus violento da cultura e da política alagoana se radicaria nas tradições coronelistas e de concentração do poder político, fortemente atreladas à cultura canavieira. Conforme a mesma socióloga, tal habitus violento na política alagoana teria profundas repercussões no tecido social, pois o Estado constitui-se como forma de referência ética para a população. Nesse sentido, poderíamos dizer que a violência, como fato presente no cotidiano do alagoano e relacionada à violência de estado, seria um dos sintomas do desarranjo identitário sobre a subjetividade?

Bibliografia

DIEGUES JR., Manuel. O Bangüê nas Alagoas – Traços da influência do sistema econômico do engenho de açúcar na vida e na cultura regional. 2ª edição, Maceió: EDUFAL: 2002

FREYRE, Gilberto. Prefácio. In: DIEGUES JR., Manuel. O Bangüê nas Alagoas – Traços da influência do sistema econômico do engenho de açúcar na vida e na cultura regional. 2ª edição, Maceió: EDUFAL: 2002

LINDOSO, Dirceu. A utopia armada: Rebeliões de pobres nas matas do Tombo Real. 2ª edição, Maceió: EDUFAL, 2005

LIRA, Fernando. Formação da riqueza e da pobreza de Alagoas. Maceió: EDUFAL, 2007

SILVA, Tomaz Tadeu da. A produção social da identidade. In: SILVA, T. T. (org.), HALL, S., WOODWARD, K. Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2000

VASCONCELOS, Ruth. O habitus violento expresso no poder e na cultura de Alagoas. In: VASCONCELOS, Ruth & PIMENTEL, Elaine. Violência e criminalidade em mosaico. Maceió: EDUFAL, 2009

VERÇOSA, Élcio Gusmão. Existe uma cultura alagoana? Maceió: Catavento, 2002


[1] Para Douglas Apratto Tenório (idem), do ponto de vista literário, A Utopia Armada seria a produção cultural mais próxima de identificar-se com a alma do povo de Alagoas. Para ele, essa obra seria uma espécie de “Ilíada alagoana”.

[2] O autor do ensaio é proveniente do estado da Bahia.

[3] Um dos exemplos históricos dessa afirmação é o episódio ocorrido em Maceió, em 1912, que ganhou a alcunha de Quebra de Xangô, marcado pela repressão às manifestações religiosas de matriz africana, feita em nome de ideais políticos. A tradição conhecida como Xangô rezado baixo, derivada desse episódio, reproduz até os dias atuais os efeitos do conflito com a visão de mundo das oligarquias político-econômicas de Alagoas.

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