quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

DUAS PALAVRAS SOBRE O HAITI


Dificilmente alguém não se comoverá com os fatos recentes ocorridos no Haiti. Li e (ou)vi muita coisa a respeito nas diversas mídias à disposição. Tudo é chocante. Tudo é absurdamente estarrecedor.

Sim, é verdade, como disse o Jabor ontem (13/01) no fim da noite, que o desastre social do Haiti – que já dura mais de um século – talvez tenha as mesmas proporções catastróficas do último terremoto, com a diferença de se dar num gota à gota. E é também triste e contraditório o fato de que nossa civilização dita cristã chore somente agora junto às vítimas do Haiti, ao passo em que sempre fez de contas que a sempiterna catástrofe social por lá nunca existira. França, Alemanha, Brasil, por exemplo, até têm aberto os cofres de seus tesouros nacionais em função das demandas de agora naquele país. Oxalá torne-se uma praxe doravante.

Tristemente, a palavra do teólogo é sempre invocada em situações como esta.

Ao contrário do que muita gente pensa, esse nosso ofício com cheiro de mofo medieval ainda ocupa lugar de destaque em nossa sociedade pós-moderna. Sem dúvida, trata-se de um lugar esquisito. É o lugar de remediar o irremediável, e de encher de palavras aqueles espaços onde só cabem os silêncios, e nada mais. E talvez não haja fardo maior para nós, teólogos e teólogas, do que este: advogar em defesa de Deus, dar-lhe sempre a primazia sobre todos os fatos ocorridos entre os humanos, alinhavar todas as coisas à Sua vontade (sempre boa, perfeita e agradável). Por isso detesto tanto os cultos fúnebres.

Triste de mim, dei o azar de escolher a leitura do Salmo 104 em nosso último culto de oração aqui na Forene. Sim, digo azar porque lá pelas alturas do versículo 32, o texto traz a seguinte afirmação:

Com só olhar para a terra ele [Deus] a faz tremer; toca nas montanhas e elas fumegam.

A pergunta do meu irmão me veio como um bate-pronto daqueles no estilo Bebeto contra a Argentina em 1986: “Pastor Paulo, teria esse versículo relação com o que ocorreu no Haiti esses dias? Está dito aí que os terremotos são causados pelo olhar do Senhor, e que as erupções vulcânicas também...O que você me diz?” Pobre de mim! Na próxima vez tratarei de escolher os textos da liturgia com mais cuidado!

Dei um show de malabarismo verbal!

Fui desde o Tsunami de 26 de dezembro de 2004 até uma dissertação piegas sobre o mecanismo das placas tectônicas, dissertação que, penso eu, deixaria qualquer sismólogo pasmado com tanta criatividade leiga! No fim, o vaticínio que de fato reflete meu posicionamento mais honesto sobre questões como essa: a melhor resposta é o silêncio. Encher esses fatos com uma salada azeda de palavras teológicas chega a ser um insulto às vítimas. Certamente o silêncio deva servir como um sacrifício agradável a Deus, como quem se rende não à fatalidade da tragédia, mas como quem se rende à sua condição ambígua de ser ora sujeito das circunstâncias da vida, ora objeto das mesmas circunstâncias, sejam elas sociais ou “naturais”...

***

Sobre a Zilda Arns quase nada tenho o que dizer. Confesso minha completa ignorância acerca de seu legado antes de seu triste desaparecimento. Sabia apenas de sua atuação frente à Pastoral da Criança e de sua consangüinidade fraterna junto a Dom Paulo Evaristo Arns. O restante, ignorava por completo.

Me parece que sua morte no Haiti relativiza totalmente aquilo a que o Caio Fábio apelidou muito perspicaz e pejorativamente de Teologia Moral de Causa e Efeito. Você, tal como eu também, deve compartilhar a opinião de que “Zilda Arns não merecia partir daquele jeito”. Caso isso seja verdade para você, será fácil entender o que é uma Teologia Moral de Causa e Efeito: toda bondade deve ser recompensada com bondade, sendo assim também com a maldade. Mas a vida desconhece esses nossos esquemas cognitivos, de tal maneira que gente boa como a Zilda, prodigalíssima em bondades, teve uma despedida tão inglória.

A Zilda também me remeteu ao Zygmunt Bauman.

No finalzinho de Tempos Líquidos Bauman nos brinda com uma belíssima meditação pensando em três metáforas sociológicas para falar dos cidadãos e cidadãs de nossos tempos: o guarda-caças, o caçador e o jardineiro.

O guarda-caças – que considero uma metáfora mais afeita ao contexto especificamente europeu, e por isso de assimilação mais difícil para nós – é aquela pessoa para quem a ordem das coisas não precisa ser mudada. O mundo e toda sua dinâmica já estão determinados por Deus, cabendo somente a administração tranqüila de nossas próprias vidas, e pronto. O caçador é o consumidor ávido e intranqüilo para quem o mundo não representa muita coisa senão o espaço de satisfação de seus próprios e mesquinhos desejos. Conquanto que “a caça” lhe chegue no momento certo, “a floresta” que se dane. O jardineiro é a pessoa que, movida pela utopia, é levada a uma atitude de cuidado do mundo: das coisas, da natureza, dos outros. [Quem é você aí?]

Utopia é uma palavra tão desgastada, você não acha? Mas me responda uma coisa: quem melhor representa os anseios utópicos em uma sociedade senão aqueles e aquelas que amam as crianças? Se a utopia é uma aposta louca e apaixonada num futuro melhor para mundo, quem melhor para carregar seu estandarte do que aqueles e aquelas que dão suas vidas pelas crianças?

Zilda Arns, uma jardineira? Sim! Minha memória da Zilda Arns será a de uma legítima jardineira!

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

UBI CARITAS ET AMOR, DEUS IBI EST


Bases bíblico-exegéticas para a mundanidade do Espírito de Deus na História


Já faz algum tempo que eu venho repetindo – seja em sermões, palestras, artigos, aulas, ou em conversas entre amigos e amigas – a convicção heterodoxa de que o Espírito de Deus tem tido estreita relação com certos movimentos e indivíduos da esfera secular/profana da sociedade engajados na promoção da vida e de seus valores fundamentais.

Em uma palestra na Igreja Batista do Pinheiro em 2009 eu cheguei a levantar as seguintes questões:

Em que medida os nossos movimentos sociais são “traduções secularizadas” de certos anseios bíblicos? Até que ponto a luta pela paridade nas relações de gênero, pela democratização fundiária, pela erradicação da pobreza, pela humanização das condições de trabalho, pela paridade étnica, por exemplo, atualizadas nos movimentos sociais, são a manifestação secular possibilitada pela declinação do Cristianismo a esses quefazeres? Em que medida tais movimentos são “animados pelo Espírito da Vida”?

Em que medida a prática desses movimentos pode informar e aperfeiçoar a prática eclesial cristã? Submetidos ao olhar crítico e ao discernimento evangélico, os movimentos sociais teriam algo a oferecer quando se trata de otimizar a eficácia missiológica das igrejas?

É bem verdade que a minha opinião e as minhas perguntas acima já estão atravessadas pela dicotomia ocidental entre secular e sagrado. O secular, para nós ocidentais, é o espaço do estritamente humano (profano/carnal/temporal), enquanto o sagrado é o terreno de performance do divino (religioso/espiritual/atemporal). E também é verdade que essa dicotomia é uma produção da Modernidade, que pouco tem a ver com a tradição bíblica. Essa, por sua vez, desconhece as demarcações entre as performances sagradas e as seculares. Foi Mircea Eliade talvez quem melhor nos esclareceu nos últimos anos acerca dessas demarcações, que na dinâmica cultural ganham forma topográfica e temporal. Há lugares sagrados/religiosos, e há lugares profanos/seculares. Há tempos sagrados/espirituais, e há tempos profanos/carnais.

Produzimos também outras cisões. Há entre nós música que seja sagrada/espiritual, e música que seja profana/secular. Há instituições sociais tipicamente religiosas/espirituais, e há instituições sociais tipicamente profanas/seculares. Há ainda os símbolos/ícones do sagrado e os símbolos/ícones do secular.

E aqui interrompo para uma ligeira digressão:

É incrível como todas essas dicotomias conseguem produzir interessantes contradições.

O tempo sagrado (o tempo do culto, do ritual, da vida litúrgica, da reunião congregacional), por exemplo, consegue ser em alguns lugares o tempo mais segregador de certas sociedades. Pensemos nas igrejas protestantes norte-americanas ainda marcadas pela segregação racial. O pastor e ativista norte-americano Ken Sehested nos dizia que o momento do culto ainda é o tempo mais segregador da semana na América do Norte. Mas pensando um pouco também em nossa própria realidade local, o tempo do sagrado é o tempo de reforço a certos estereótipos sociais, como por exemplo, aqueles relacionados aos papéis de gênero.

Da mesma forma, a topografia do sagrado produz a esquisita contradição de fazer dos nossos templos os espaços mais ociosos de nossas cidades. O pastor Carlos Queiroz chegou a apelidar nossos templos de “elefantes sagrados”: estáticos, inoperantes, vazios na maior parte do tempo, assistindo de portas fechadas à dinâmica alucinada de nossas cidades. Irredutíveis às contradições sociais e redutíveis somente à dinâmica pré-estabelecida nos calendários eclesiásticos.

Fim da digressão.

Me faltava, entretanto, uma base bíblico-exegética mais convincente a fim de embasar aquela opinião do primeiro parágrafo, sobre a mundanidade do Espírito de Deus na História. Minha fé na presença do Espírito de Deus animando certos movimentos sociais era mais intuitiva do que qualquer outra coisa. Eu simplesmente queria que fosse assim. Se o Espírito de Deus fosse de fato o “Espírito da Vida” (Rm 8,2), deveria haver alguma relação entre ele e os movimentos engendrados nas culturas humanas genuinamente interessados na afirmação da vida e na luta contra os poderes da morte. Dito inversamente, toda vez que a “reverência pela vida” (Albert Schweitzer) fosse o espírito a empurrar as ações humanas coletivas e/ou individuais, deveria haver a presença do Espírito de Deus ali: Ubi caritas et amor, Deus ibi est [onde estão a caridade e o amor, Deus ali está]. No entanto, me faltava o que nós protestantes chamamos de “base bíblica neotestamentária” além dessa intuição.

É verdade, não se precisa da ajuda dos exegetas para se perceber isso na Bíblia. Surpreendentemente, mais ainda no Primeiro Testamento. Basta ler os textos com atenção.

A tradição do Êxodo e o Movimento Profético do Primeiro Testamento são apenas dois exemplos do que quero dizer aqui. Essas são duas tradições com pouquíssimos ares “religiosos”. Os temas presentes nesses dois movimentos envolvem aspectos que hoje não reputamos como tarefas “espirituais/eclesiais”, mas como “seculares/mundanas”. No Êxodo, por exemplo, o clamor do povo se faz ouvir em meio a uma situação étnico-político-econômica degradante de exploração. Os profetas também estão pouco interessados nas dinâmicas religiosas do povo, até que a justiça, a ética, o fim da exploração econômica, a democracia fundiária – sobretudo para os camponeses – fossem amplamente reconhecidos. Em ambos os casos, as dinâmicas religiosas interessam somente como alvo de denúncia enquanto lugares de ideologização da vida e dos interesses das elites.

Vendo com as lentes de hoje, tais tradições (Êxodo e Profetismo) nos aparecem muito mais como formas seculares de protesto social, muito distantes das dinâmicas de nossas igrejas cristãs. Honestamente, tais tradições nos parecem mais aparentadas com esses movimentos do campo e da cidade que adjetivamos de subversivos, mas que buscam a restituição de direitos fundamentais da vida: um pedaço de terra para morar e trabalhar, um salário justo, etc.

Todavia, perceber as mesmas dinâmicas do Êxodo e do Profetismo no Segundo Testamento é muito mais difícil.

E como o Protestantismo – sobretudo os Batistas, onde me situo – alega uma ligação visceral com o Segundo Testamento, argumentar a favor da presença do Espírito de Deus nos âmbitos ditos seculares e mundanos é sempre mais difícil. Isso porque se pressupõe que o Segundo Testamento, sobretudo a atividade de Jesus Cristo, foi uma atividade estritamente religiosa, circunscrita ao espiritual, voltada para a cura e salvação dos indivíduos, sem relação direta com temas sociais, políticos, econômicos, ou outros dessa natureza. Até hoje a ética do protestantismo, embora não confessada, é acentuadamente individualista: converta-se o indivíduo e sociedade se transformará, como se a sociedade consistisse numa somatória de átomos humanos e nada mais. É verdade, há lugar para o social na atividade de boa parte de nossas igrejas. Mas ele é sempre um derivativo secundário da missão fundamental, que é religiosa e espiritual. Nesse sentido, o nosso adágio se transforma: Ubi Ecclesia est, Deus ibi est [Onde está a Igreja, é ali que Deus está].

Tenho a impressão de que nesses últimos anos Richard A. Horsley tem sido uma das pessoas que melhor têm nos ajudado a revisar esses pressupostos. Com efeito, sua pesquisa pode ajudar aqueles e aquelas que procuram a tal “base bíblica neotestamentária” para fundamentar a crença de que o Espírito de Deus sopra muito mais profana e secularmente do que pensamos. Conforme Horsley, a atividade de Jesus de Nazaré quase nada teve de religiosa, tendo sido eminentemente de ordem sócio-político-econômica. De outra forma, não lhe caberia a cruz como sentença perpetrada pelo aparelho jurídico do Império Romano. Citando Frei Betto, o meu amigo Ascânio Júnior já nos dizia que “de fato, Jesus não morreu atropelado por um jumento numa esquina de Jerusalém”. Sua condenação foi típica dos insurgentes políticos, muito comuns entre o farto leque do banditismo social daqueles tempos de dominação romana da Judéia e na Galiléia.

Resumindo muito grosseiramente as hipóteses de Horsley em Jesus e o Império – O reino de Deus a nova desordem mundial, Jesus de Nazaré, animado por uma ampla tradição de resistência na história de Israel frente a impérios estrangeiros, teria desempenhado o papel de revitalizador das formas tradições de vida entre os camponeses da Galiléia. Tais formas tradicionais de vida estavam sendo paulatinamente drenadas pela presença imperial romana, mormente nos aspectos econômicos relacionados às pesadas taxações tributárias. Portanto, conforme Horsley, a atividade de Jesus de Nazaré deveria estar situada entre aqueles demais movimentos sociais de resistência que consistiam em ir minimizando os efeitos da espoliação militar, econômica e cultural do Império Romano entre os camponeses nas províncias da Galiléia e Judéia. Em suma, partindo de uma leitura específica do Evangelho de Marcos e da Fonte Q, Horsley arrisca a hipótese de que Jesus de Nazaré teria sido líder de um dos muitos movimentos anti-imperiais daqueles dias. Os nossos Evangelhos canônicos seriam o registro da memória das comunidades que deram seguimento ao movimento de Jesus.

Mas por que uma leitura desse tipo nos parece tão estranha e distante de nossas percepções do que tenha sido a atividade de Jesus de Nazaré? Para Horsley, o problema está nas “projeções” que fazemos no instante de interpretação da Bíblia. São fundamentalmente duas essas projeções: projetamos nos textos evangélicos a nossa dicotomia moderna entre religião e política, de tal maneira que Jesus de Nazaré se torna um simples “mestre religioso”; também projetamos nos textos evangélicos o nosso individualismo moderno, de tal maneira que Jesus de Nazaré passa a ser visto ocupando-se tão somente com problemas individuais, e não de comunidades e seus macro-problemas. Assim, Jesus de Nazaré se torna um ser domesticado ao esquema tipicamente religioso e eclesial, restrito aos dilemas individuais das pessoas, tendo quase nenhuma implicação quanto aos grandes temas e decisões sócio-político-econômicas que moldam a vida de nossas comunidades.

Nesse nosso tempo de novos imperialismos – cuja face mais explícita é o Mercado Mundial Globalizado Neoliberal, mas cuja face implícita se encontra na única superpotência de nossos dias – as suspeitas do Richard A. Horsley são muito bem vindas. Se dermos adesão a elas, teremos achado uma ótima base bíblico-exegética neotestamentária para fundamentar nossa crença de que o Espírito de Deus, em sua dinâmica de humanização das sociedades, se utiliza de instrumentos das mais diferentes cores. Teremos também uma ótima base de argumentação no Segundo Testamento para esfumaçar as con-sagradas dicotomias entre atividade secular e religiosa, mundana e espiritual, político-social e eclesial, que caracterizam nossas igrejas.

Se eu já andava de olhos e orelhas voltados para os movimentos sociais, agora mais do que nunca!

OBRAS CITADAS

ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. São Paulo: Martins Fontes, 1992

HORSLEY, Richard A. Jesus e o império – O reino de Deus e a nova desordem mundial. São Paulo: Paulus, 2004

QUEIROZ, Carlos. Eles herdarão a terra. Curitiba: Encontro, 1998

SCHWEITZER, Albert. The Ethics of Reverence for life. Texto da Internet.

SEHESTED, Ken. A morte dos profetas e a domesticação do sonho. In: ALIANÇA DE BATISTAS DO BRASIL (Org.). Religião, utopia e sociedade: Diálogos com Martin Luther King Jr. E Richard Shaull. Salvador: Livro.com, 2009

domingo, 3 de janeiro de 2010

UMA VISÃO DO FUNDO DO MAR




UMA VISÃO DO FUNDO DO MAR

Essa noite eu caí no fundo mar

Lá eu só vi surpresas, vi o que não se quer ver

Vi as coisas pelo avesso, espalhadas caoticamente

Daquele jeito que nos irrita, porque fingimos sempre o equilíbrio

Lá as coisas estão nuas, e de olhos fechados tudo se torna visível

No fundo do mar tudo é autêntico, até a hipocrisia

No fundo do mar tudo é verdadeiro, até a mentira

No fundo do mar tudo é manso, até a cólera

No fundo do mar tudo é decente, até a devassidão

No fundo do mar tudo é escuro, até o sol do meio-dia

No fundo do mar tudo é sério, até a filosofia


Lá eu me descobri diferente, eu era outra pessoa

Eu era uma amálgama inédita, sem temor e sem pudor

Lá eu era vento e pedra, padre e pastor

Porque no fundo do mar tudo é novo, até o mundo

E embora eu não quisesse ver, no fundo do mar eu me sentia bem

Lá eu era assim, inteligente, paciente, cafajeste, triste

Pois no fundo do mar tudo é solidão, até a turba

No fundo do mar tudo é santo, até a igreja

No fundo do mar tudo é força, até o homem

No fundo do mar tudo é saúde, até a doença

No fundo do mar tudo é casto, até o sexo

No fundo do mar tudo é alegria, até a vida

No fundo do mar tudo é doce, até o terror


Lá todas as coisas valem a pena, porque não há almas grandes

No fundo do mar a razão é uma louca alucinada

A gritar freneticamente pelas ruas sem que ninguém a ouça

No fundo do mar o sentido é um ermitão a que ninguém quer dar ouvidos

E o bom senso é um serial killer a quem todos cospem na cara


Lá eu era uma dezena de pessoas, uno como ninguém

Porque no fundo do mar tudo é inteligível, até a Santíssima Trindade

No fundo mar tudo é alegre, até um tango argentino

No fundo do mar tudo é soberbo, até o sorriso de uma criança

No fundo do mar tudo é perfeito, até o matrimônio

No fundo do mar tudo é honesto, até a política

No fundo do mar tudo é puro, até o beijo de uma prostituta

No fundo do mar tudo é leve, até a miséria nossa de cada dia


No fundo do mar todas as coisas têm asas, por isso tudo flui

Lá tudo é confortável, até as garras de um gavião

Lá os loucos dão as ordens e as encarceradas fazem as leis

Ninguém se espanta da desordem, pois que ela entra pelas narinas

Os leões vigiam os jardins e as cobras dão os primeiros acordes das manhãs

Nas catedrais os bancos ficam presos ao teto e os fiéis dormem nas celebrações

Nos funerais os bem-te-vis cuidam das velas e as carpideiras arrumam as telhas das casas

No fundo do mar tudo é ideal, até as escolas

No fundo do mar tudo é popular, até os livros de Nietzsche

No fundo do mar tudo é saboroso, até o veneno das serpentes

No fundo do mar tudo é improvisado, até a liturgia da missa

No fundo do mar tudo é festa, até a morte de um micróbio

No fundo do mar todos vão à escola, até as vacas


Foi lá que eu me encontrei, e, engraçado, acabei por me perder

Porque no fundo do mar a alegria não tem fim

E lá a tristeza é um prato servido em todos os lugares nobres

No fundo do mar a burguesia dança no meio da rua mostrando as nádegas

Mas as pessoas-de-bem pouco se importam, já que suas casas não possuem janelas

No fundo do mar tudo é sono, mas vive bem que vive em vigília

Foi quando me lançaram uma bóia, na qual estava escrito: “Vida real”

E tudo se fez velho, como num parto bem sucedido

E tudo se fez novo, como num canto não ouvido...


Paulo Nascimento