segunda-feira, 27 de agosto de 2012

POLÍTICA E RELIGIÃO EM DEBATE


Aproximações críticas à filosofia política de Jürgen Habermas

Precisamos todos, religiosos e não-religiosos, mais do que nunca, pensar em religião.
O afirmo não apenas na condição de pastor e teólogo, mas como um cidadão qualquer que tem interesse nos rumos políticos do meu país. Parto da intuição de que vivemos um momento em que a religião nunca esteve tão presente nos rumos políticos de nossa sociedade. A eleição presidencial de 2010 alertou-nos para o fato de que não se pode mais negligenciar o poder de mobilização política do discurso religioso. A crescente “vontade de representação” religiosa nos âmbitos da política de estado, nas esferas municipal, estadual e federal, também aponta para essa tendência. Outro exemplo pode ser visto nos atuais embates que põem em confronto, de um lado, certas minorias sociais engajadas na luta pelo reconhecimento da diversidade sexual como um Direito Humano, e do outro lado os interesses de uma “bancada religiosa” no Congresso Nacional.
Esses exemplos apontam para aquilo que alguns estudiosos da pós-modernidade têm chamado de “o retorno do religioso”. Essa expressão – que parece equivocada, uma vez que a religião sempre esteve presente como fenômeno humano e social – deve ser entendida como o retorno da influência do discurso religioso na esfera pública e política não somente no Ocidente, mas também em outras regiões do mundo. Para Jürgen Habermas (2007, p. 129), “desde a virada de 1980/90, tradições religiosas e comunidades de fé adquiriram, inesperadamente, importância política. Temos em mente, acima de tudo, os tipos de fundamentalismo que surgem, não somente no Oriente Médio, mas também nos países da África, no Sudeste da Ásia e no subcontinente da Índia. Eles inserem-se, eventualmente, em conflitos nacionais e étnicos constituindo, hoje em dia, uma espécie de incubadora de unidades descentralizadas de um terrorismo que opera a um nível global, opondo-se aos melindres produzidos pela civilização ocidental tida como superior. Mas há outros fenômenos sintomáticos”.  
No que diz respeito à formação teórica de quem quer enfrentar o problema do papel político das instituições religiosas nos estados democráticos-liberais, eu creio que o pensamento do filósofo Jürgen Habermas seja muito proveitoso. Creio também que uma apropriação crítica de algumas de suas intuições pode oferecer material proveitoso para compreendermos isso que ele mesmo chamou de “outros fenômenos sintomáticos” da relação entre os discursos religiosos e a política de estado, entre os quais aqueles exemplos que citamos no primeiro parágrafo[1].
Nesse debate, Habermas busca sustentar uma posição que considero pouco comum à média da discussão universitária, quando relacionada aos papéis do discurso religioso no âmbito das políticas de estado. Sua argumentação, em primeiro lugar, consiste em considerar legítima a presença do discurso religioso na arena dos debates políticos que constituem as dinâmicas dos estados democrático-liberais. Conforme o pluralismo cultural que caracteriza as democracias ocidentais, o discurso religioso não poderia ser negado a priori, pelo simples fato de ser religioso, como uma voz válida na composição das políticas públicas geridas pelo estado. Mais do que isso, para Habermas “o estado liberal não pode transformar a exigida separação institucional entre religião e política numa sobrecarga mental e psicológica insuportável para os seus cidadãos religiosos” ([grifos no original] p. 147).
Nesse aspecto, a média da discussão universitária que tende a situar-se como polo antitético aos fundamentalismos religiosos, deixa escapar a percepção de um potencial interessante presente em certos discursos religiosos que historicamente ofereceram enormes contribuições para avanços políticos que beneficiaram o todo de certas sociedades modernas. O próprio Habermas oferece-nos o interessante exemplo das raízes religiosas presentes nos movimentos pacifistas, de luta pelos direitos humanos e anti-segregacionistas representados pela figura do pastor batista Martin Luther King Jr. nos Estados Unidos. A partir desse exemplo, Habermas conclui que “no quadro dos Estados constitucionais estabelecidos, as igrejas e comunidades religiosas em geral preenchem funções que não são destituídas de importância para a estabilização e o desenvolvimento de uma cultura política liberal” (p. 141).
Obviamente, a legitimidade e a participação de vozes religiosas na construção das políticas públicas que interessam aos estados democrático-liberais devem cumprir certos requesitos prévios, a fim de que essa presença religiosa não se torne uma espécie de ancoragem política para a implantação compulsória de cosmovisões particulares sobre o todo da sociedade[2]. Habermas chama esses pré-requesitos de “pressuposições cognitivas”, que devem estar atreladas a programas de aprendizagem subjacentes à auto-reflexão proporcionada pela própria religião. Entre estas pressuposições cognitivas estariam o reconhecimento do quadro pluralista que marca nossas sociedades desde a instauração da Modernidade, além do reconhecimento do lugar de neutralidade do Estado no que diz respeito às visões de mundo, no seu papel de gestor da sociedade. Embora esses critérios sejam primariamente referidos como condições de possibilidade para o diálogo produtivo dos cidadãos religiosos junto aos cidadãos seculares, Habermas reconhece que esse é um movimento que exige pressuposições cognitivas também por parte dos cidadãos não-religiosos.
Algumas questões podem aqui ser problematizadas e aprofundadas. Uma delas é a compreensão de “neutralidade de visões de mundo” que Habermas crê caracterizar os estados democrático-liberais. Não estamos muito convictos desta neutralidade. Compreendemos que o construto “visões de mundo” não pode ser referido apenas à religião. O mundo moderno, que segundo Max Weber é o mundo em processo de desencantamento das cosmovisões religiosas, é aquele que faz a passagem de uma visão de mundo monolítica e hegemônica para visões de mundo fragmentadas e plurais, oferecidas por outras instâncias criadas pela nossa cultura. O Estado Moderno, portanto, não é neutro. Se ele não esposa uma compreensão de mundo e de ser humano nos moldes dogmáticos da religião, ele o faz com base em outras instâncias normativas que lhe oferecem estas visões. Em grande parte, o conhecimento científico – mas não somente ele – tem oferecido esses elementos normativos que guiam a ação dos estados. As próprias agências fomentadoras de produção científica, amparadas pelo Estado, seriam um exemplo eloquente. Seria preciso compreender, portanto, que a ciência além de não ser neutra, constitui-se também como uma visão de mundo, ainda que de natureza bastante diferente das cosmovisões religiosas.
E é justamente esta crítica feita ao pensamento de Habermas que suscita, a meu ver, um elemento interessante para a discussão do problema do papel da religião na formação das políticas públicas dos estados democrático-liberais. Vistas ligeiramente, as reações político-ideológicas (acadêmicas, científicas etc.) frente à participação das comunidades religiosas na formação dessas políticas podem parecer apenas reações a fim de proteger a laicidade do estado democrático, e conter o retrocesso a regimes políticos pautados por noções religiosas que cerceiam a liberdade de expressão e a pluralidade cultural trazida pela Modernidade. Contudo, tais reações nunca são apenas isso. Elas são ao mesmo tempo lutas pelo monopólio normalizador, requerido pela ciência na Modernidade. O discurso da neutralidade do Estado, de certo modo, serve eficazmente à sustentação desse monopólio normalizador requerido pelos diferentes saberes científicos atrelados à estrutura do Estado. Assim, essas reações também são lutas para que o discurso religioso, qualquer que seja, permaneça circunscrito a um raio de abrangência que se confine à dimensão privada da vida.
Desse modo, compreendemos que a grande contribuição oferecida por Habermas, especificamente no tópico que recortamos em sua obra, aponta para o desafio de pensarmos na radicalidade do pluralismo cultural que marca nosso tempo, e que necessitaria estar presente tanto no âmbito privado da vida moderna, quanto no âmbito público-político relativo à condução do Estado. Exorcizar os fantasmas religiosos que monopolizaram a dimensão público-política de outrora não significa cercear as comunidades de religiosas de uma vez por todas da arena público-política em nossas sociedades. Isso requer uma capacidade autocrítica de ambas as partes do debate: dos religiosos e dos não-religiosos. Afinal, ninguém deseja substituir os fundamentalismos religiosos por outros, sob novas máscaras.

Referência
HABERMAS, Jürgen. Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007


[1] Estou fundamentando essa argumentação especialmente no ensaio do autor intitulado Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos.
[2] De nossa perspectiva, a atuação da bancada religiosa no Congresso Nacional brasileiro, que em nome dos valores da “família tradicional” tem funcionado como uma espécie de barreira de contenção para a implementação das políticas públicas que reconhecem a diversidade sexual como um Direito Humano, oferece-nos um exemplo dessa perigosa tendência da manutenção compulsória de certas visões de mundo particular sobre uma sociedade plural como a que vivemos.

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

PROTESTANTISMO, POLÍTICA E SEXUALIDADE


Breve diálogo com Religião e repressão de Rubem Alves

Protestantismo e repressão (Rubem Alves, 1978) – rebatizado pelo autor em 2005 de Religião e repressão – talvez tenha sido a primeira e grande análise acerca do protestantismo brasileiro (embora consista realmente num estudo de caso da ideologia da Igreja Presbiteriana do Brasil). Dentre os numerosos aspectos que marcam essa análise, compete-nos destacar a forma como Rubem Alves tratou das questões relacionadas à moral sexual do protestantismo brasileiro àquela época (p. 208-220). Entendemos que no curso dos mais de 30 anos que nos separam dessa análise, muitas coisas mudaram. Mas entendemos que ela nos ajuda como ponto de partida para problemas que em nosso tempo somente se avolumaram.
Destacamos três elementos na crítica de Alves que consideramos pertinentes à época, mas que foram profundamente modificados desde então.
1. Primeiro, Alves circunscreve sua análise da moral sexual do protestantismo brasileiro às questões relacionadas com os limites do ordenamento de uma certa conjugalidade tradicional, relacionada especialmente à vida privada. Ele nos diz: “A moralidade protestante é regida por um princípio extremamente simples e que não permite ambiguidades: O sexo é permitido se, e somente se, ocorrer dentro do casamento. Atos de natureza sexual e relações sexuais antes do casamento ou que, após o casamento, transgridem os seus limites, são terminantemente proibidos. São pecados que devem ser punidos” (Alves, 2005, p. 209 [grifos no original]).
Sua análise consiste em relativizar um tipo de espiritualidade marcada pela repressão às possibilidades de realização do corpo, que, segundo o autor, tanto o protestantismo quanto o catolicismo teriam herdado de uma tradição agostiniana. Tal tradição seria marcada, sobretudo, pela circunscrição da sexualidade aos papéis reprodutivos. Além disso, segundo Alves, a moral sexual do protestantismo, até então, conformava-se às imposições e às restrições civis impostas ao casamento, com destaque ao impedimento do divórcio.
Gostaríamos de destacar que Rubem Alves articula sua crítica em diálogo com um quadro ideológico muito peculiar à época. Percebe-se, por exemplo, que não há na sua análise uma reflexão acerca das implicações políticas da moral sexual protestante. Trata-se de uma crítica que se conforma à sexualidade enquanto uma dimensão privada da vida, sem efeitos sobre o ordenamento público ou político. Cremos que atualmente seja impossível fazer uma crítica da moral sexual protestante no Brasil sem pensar nos seus possíveis efeitos no ordenamento público ou político. Afirmamos isso porque em nossa época a moral sexual religiosa deixou de ser assunto circunscrito à vida privada, assumindo papel central em embates políticos na esfera governamental. Um dos grandes desafios desta reflexão atual consiste em pensar na relação entre a laicidade do Estado, a liberdade de expressão e os direitos sexuais e reprodutivos de certas minorias. Em outros termos, hoje precisaríamos nos perguntar sobre que efeitos a imposição da moral sexual protestante, feita a partir das plataformas da política de Estado, pode produzir sobre minorias que encaram a diversidade sexual como um Direito Humano.
2. Em segundo lugar, gostaríamos de destacar outro aspecto da crítica de Alves à moral sexual do protestantismo brasileiro naquele momento, que diz respeito ao silêncio deste em face da sexualidade. Segundo Alves, por conceber o sexo somente como “concessão” e como “permissão”, ligados à função reprodutiva dos seres humanos e a uma antropologia de “seres caídos”, o protestantismo brasileiro produziu como consequência um enorme silêncio acerca da sexualidade, contrariando até mesmo certas tradições bíblicas (Cantares de Salomão, em especial) que postulam o prazer sexual como graça de Deus. Para Alves (2005, p. 216), “o silêncio protestante sobre o sexo é a expressão da vergonha, no nível da linguagem. O sexo se diz no escuro e em segredo, com um pedido de perdão”.
Certamente, não se pode atualmente sustentar a tese do silêncio protestante acerca do sexo. Pelo contrário, testemunha-se aquilo que Foucault (2010) chamou de “incitação aos discursos sobre o sexo” no seio desta comunidade, com uma certa profusão. Os recentes embates que relacionam a moral sexual protestante, a política de Estado e os direitos sexuais e reprodutivos requeridos pela comunidade LGBT, vêm produzindo uma avalanche de discursos, pronunciamentos, publicações, fóruns, sermões, posicionamentos institucionais, articulações políticas, coalizões denominacionais, em torno da necessidade da afirmação da “verdade dos sujeitos”, que passa pela verdade acerca do sexo. Tem-se a impressão de que o protestantismo nunca falou tanto do sexo como neste momento.
Assim, consideramos necessário fazer a transição de uma crítica que se pautava pela denúncia das questões acerca do “silêncio protestante” sobre a sexualidade, para uma crítica das questões acerca desta novíssima avalanche de discursos que tentam normatizá-la. Nesta tarefa, temos optado pelas sugestões metodológicas de Foucault (1979) quanto ao estudo das relações de poder. Portanto, antes de pensar nestes discursos protestantes acerca da sexualidade unicamente como dispositivos de repressão, compete-nos pensar em seu potencial de produtividade. Não que os problemas da repressão, como focalizados por Alves em sua crítica, percam a importância. Contudo, reduzir o papel destes discursos aos aspectos meramente repressivos pode nos fazer perder de vista um campo de inteligibilidade de outros aspectos igualmente importantes da questão. Afinal, como sugere Bauman (2005), o fundamentalismo religioso, antes de ser o reavivamento de uma espiritualidade arcaica, deve ser encarado como uma racionalidade alternativa, num contexto de profunda fragmentação de certezas existenciais.
3. Enfim, gostaríamos de destacar um último elemento da crítica de Alves à moral sexual do protestantismo brasileiro, que diz respeito a uma impossibilidade sua à época, mas novamente imprescindível em nosso momento. A crítica de Alves à moral sexual daquele protestantismo está circunscrita aos limites da heteronormatividade. É bem verdade que Alves busca ampliar sua crítica às amplas possibilidades do corpo, denunciando os aspectos repressores da moralidade sexual protestante. Para ele, não somente o protestantismo, mas “toda religião que, em nome de uma ordem espiritual, impõe sobre o corpo um regime de sistemática repressão, tende a produzir personalidades neuróticas” (Alves, 2005, p. 220). No entanto, falta-lhe a nomeação desses sujeitos concretos que vivenciam a repressão, de tal modo que sua crítica deixa-nos com a impressão de que é o corpo heterossexual que, unicamente, sofre os efeitos neurotizantes daquela moral sexual.  
Hoje é impossível empreender qualquer crítica à mesma moral sexual protestante restrita aos limites heteronormativos. Isso porque aquela “avalanche discursiva” do protestantismo acerca da sexualidade, que apontamos anteriormente, é produzida tendo como base a afirmação da heteronormatividade e da correlata negação de quaisquer outras possibilidades heterodivergentes. Portanto, uma crítica que considere o corpo como horizonte de dominação discursiva, vai precisar dar nome a esses corpos. Assim, ela poderá contribuir nas lutas atuais e nas táticas políticas de resistência à dominação dos corpos alheios, quer seja na esfera política, quer seja esfera na religiosa.

Trabalhos citados
Alves, R. (2005). Religião e repressão. São Paulo: Teológica
Bauman, Z. (2005). O mal-estar na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Foucault, M. (1979). Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal
Foucault, M. (2010). História da sexualidade: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, vol. 1