terça-feira, 16 de abril de 2013

O QUE É A “FAMÍLIA BRASILEIRA”?

Não, não sou contrário à família, aos bons costumes, à moral, a Deus, à igreja, a nada disso! Não sou um relativista radical, um crítico inveterado da religião, muito menos um polemista. Nada disso. Mas não me furto ao pensamento. Não tenho medo da dúvida. E adoro perguntar! Então, se alguém puder, me responda, por favor:
O que é esse ente que todas as pessoas de igreja resolveram chamar de “a família brasileira”? O que é “a família brasileira”?
Me parece que “família” é algo que nunca é, mas sempre está sendo. Nesse sentido, são dispensáveis todos os estudos acadêmicos da antropologia e da história social dos povos, uma vez que a própria Bíblia, enquanto narrativa-recorte da história de um povo e sua fé, denuncia esse fato. O numeroso clã de Abrão e Sarah, errante pelo deserto e arrastado pela convicção de uma voz divina, era uma família. E a naturalidade com que a própria Sarah aceita a barriga de aluguel de Agar é indicativo de como as coisas funcionavam naquele arranjo familiar. Do mesmo modo como o era o clã de Josué, que decidiu deixar para trás a fé aprendida no Egito para abraçar a nova fé em Javé.
Mas também a bigamia de Elcana, certamente farta dos prazeres gozados com Ana e Penina, era uma família. E Deus nunca se zangou de nada! Muito menos com as poligamias de David e Salomão. Mas Ana nunca esteve satisfeita com a perversidade de Penina, porque perversidade não combina com relações familiares! A Lei do Levirato, uma peça rara da engenhosidade cultural daqueles dias, servia de modo eficaz ao modelo de família vigente. E consagrava também o papel superior dos machos por perpetuar sua memória, além de glorificar a Deus com a afirmação do papel reprodutor das mulheres. Valores sagrados, que certamente aquelas famílias consideravam atemporais, e por isso, intocáveis. Nossas famílias nucleares lhes seriam um insulto e uma blasfêmia, porque, para dizer como os gregos antigos, os valores divinos são imóveis... Mas eu juro que um dia me dedico a investigar acerca de quem inventou o Levirato.
O Novo Testamento é produzido também em um contexto em que as famílias estão sempre sendo... O próprio Levirato ainda era vigente entre os judeus. Os clãs não haviam morrido. E o papel das mulheres pouco havia mudado. Alguns escritos atribuídos a Paulo chegam a tomar a família Greco-romana como um modelo de gerência eclesiástica: o dominus é o cabeça da casa. Abaixo dele as relações são de submissão. Pregadores e exegetas tentam dar um jeito nisso. Mas não é possível! Esses hagiógrafos (os escritores sagrados) sabiam o que estavam fazendo. E certamente estão respondendo a mulheres insubmissas, que encontravam na comunidade de fé um espaço para sua voz e para a sua vez, dois milênios antes do feminismo! Mas elas não venceram. O modelo de família Greco-romana, assumido como modelo de administração eclesiástica, fez dos pastores, bispos, padres e demais eclesiásticos, os verdadeiros cabeças da Igreja. O Vento, contudo, sopra onde quer...
Esse é um resumo mal feito. Tosco, se preferir. Mas o que ele quer dizer é o seguinte: o mundo pré-moderno não conheceu a família nuclear-patriarcal que vigora em nossos dias!
A família nuclear-patriarcal -- painho, mainha e sua prole -- é uma invenção muito recente do ponto de vista do processo histórico. Seu processo de formação envolve elementos variados, que vão desde as mudanças nas estruturas de produção econômicas fundadas pelo Capitalismo ocidental, à invenção do “amor romântico”, até seu vaticínio pelo Estado moderno, como um dispositivo estratégico para o governo político da vida das populações. Bom, esse papo é um pouco chato, e eu resisto a ficar citando livros e autores que só o povo da academia tem estômago para ler. Por hoje, não!
Não duvido que a benção de Deus, que o amor mútuo, que isso e que aquilo mais estejam presentes nas famílias nucleares que se formam hoje. Deus me livre de julgar alguém! Mas é preciso tranquilidade e lucidez para admitir que a formação do modelo de família nuclear-patriarcal tem muito mais a ver com razões bem mundanas, bem profanas, bem históricas, se a gente preferir. E que Deus abençoe a todos nós, que vivemos sob a égide desse modelo que nos foi imposto por nossa cultura, e não por Ele. E que ele mesmo nos ajude a reconstruir esse modelo, especialmente enquanto um espaço de relações de poder e de papéis sociais consagrados. Sim! Não aposto no fim do modelo de família nuclear. Mas acho que ele precisa ser reconstruído. As mulheres, sobretudo, dizem isso, porque são elas que habitam o polo mais problemático desse modelo. Que Deus nos ajude nessa tarefa. Dizem que o Deus da Bíblia se revela na História...
Diante disso, penso que deveríamos parar com essa retórica de “defesa da família brasileira”. Porque dito de um modo direto: esse ente não existe! No mínimo, se formos honestos, vamos admitir que esse ente não passa de uma retórica, de um discurso, de um objeto construído pela linguagem, para não reconhecer o devir da história e a autonomia humana, que se põe a reinventar, como sempre o fez, a ideia de “família”.
Sim, a família nuclear-patriarcal foi o modelo vigente no Brasil a partir dos idos da Modernidade. O fim do sistema escravocrata e a introdução do Brasil no circuito do Capitalismo mundial ajudaram a consolidar esse modelo entre nós. E foi assim em todo Ocidente também! Contudo, o Censo do IBGE realizado em 2010 aponta para profundas transformações nesse modelo, que embora ainda se constitua como maioria, não goza mais de uma posição de hegemonia. E é bom que se diga que isso tem pouco a ver com gays, lésbicas, bissexuais, transexuais, travestis e heterossexuais. Essas mudanças todas têm a ver com os fluxos complexos da História, alimentados por fatores múltiplos, diversos, simultâneos e irrefreáveis. Acima de tudo, é a autonomia humana que está em jogo. E já chegou a hora do “povo de Deus” aprender a lidar com isso!
Portanto, precisamos saber que quando falamos em “família brasileira”, estamos cometendo o equívoco de empacotar todos os arranjos familiares, tradicionais e emergentes, numa categoria que só poderia ser aplicada ao povo das igrejas. A “família brasileira”, esse ente imaginário e puramente retórico, é muito mais heterogêneo e diverso do que nossa linguagem quer admitir, não cabendo nos limites do modelo nuclear-patriarcal, consagrado historicamente pelo discurso das igrejas cristãs.
É preciso saber também, que quando nos filiamos à retórica da “defesa da família brasileira”, estamos participando de um jogo de forças, em que assumimos como estratégia a invisibilização pelo não-reconhecimento do Outro, de sua autonomia, e de seu direito de ser. Se a “família brasileira” coincide com o modelo nuclear-patriarcal, o que são os demais modelos emergentes de organização familiar? Eles simplesmente “não são”? O que significa um apagamento desses? Não há violência nesse não-reconhecimento ou nesse confinamento do outro ao não-ser? Sim, há muita violência nisso tudo!
Por isso penso que é preciso amar as famílias, velhas e novas, como se não houvesse amanhã. Porque se você parar pra pensar...