domingo, 25 de dezembro de 2011

SERMÃO DE NATAL


Na última sexta-feira (dia 23) eu estava em casa, à noite, vendo um musical realizado por Sting, na cidade de Durham, Inglaterra (Sting é o vocalista da famosa banda inglesa de rock The Police). Sting cantava músicas com temas natalinos. Dava pra ver que o local se tratava de uma antiga catedral. Já faz tempo que algumas catedrais inglesas não servem apenas à religião. Agora elas servem também aos shows musicais. O Pr. Wellington nos interrogou muito nesses dias sobre o que seria “o verdadeiro sentido do Natal”, e o show de Sting, com músicas natalinas dentro daquela catedral, me fez pensar nisso.
Me peguei recordando as palavras do prof. Cícero Albuquerque que nós ouvimos na última terça-feira, na praça Sinimbu. Ele dizia que nesse período do ano temos verdadeiros “espetáculos de solidariedade”. É verdade. Guy Debord dizia que vivemos em uma “sociedade do espetáculo”. No fim do ano, muito mais! O Natal tem essa capacidade de fazer girar em torno de si uma infinidade de espetáculos. Talvez por que o mercado precise de espetáculos para lucrar mais.
Não vou negar: não gosto de ficar alimentando aquela polêmica comum em muitas igrejas – o Natal é bíblico? Jesus nasceu em 25 de dezembro mesmo? Todo mundo já sabe que a festa de Natal é fruto da cultura européia, assimilada pelo Cristianismo. De acordo com Frei Betto, “até o século 3, o nascimento de Jesus era celebrado no dia 6 de janeiro. No século seguinte mudou, em muitos países, para 25 de dezembro, dia do solstício de inverno no hemisfério Norte, segundo o calendário Juliano”.
O que os polêmicos de plantão esquecem é o que pelo menos três dos Evangelhos dão enorme importância ao nascimento de Jesus. Mateus nos dá detalhes sobre seu nascimento, narrando como Herodes quis matar o Cristo, e sobre a fuga da família de Jesus para o Egito. Lucas oferece ainda maiores detalhes do nascimento do Messias. Fala-nos da visita de Gabriel a Maria a fim de anunciar-lhe o nascimento do Salvador, da visita dos pastores ao menino Jesus, e de seus primeiros anos de vida. João, embora não dê detalhes históricos do nascimento de Jesus, oferece uma belíssima meditação sobre a encarnação do Verbo de Deus, resumida na declaração: “o Verbo se fez carne, e armou sua tenda entre nós, cheio de graça e verdade, e vimos a sua glória como do unigênito do Pai” (1,14).
Meus irmãos e irmãs, nosso Salvador nasceu, e por isso hoje temos esperança. Nosso Salvador nasceu, e por isso nossa vida já não é mais a mesma de antes. Nosso Salvador nasceu, e por isso, nós, que antes nem éramos povo, hoje somos chamados “povo de Deus”. Nosso Salvador nasceu, e por isso é que hoje somos uma família, membros de um só corpo. Nosso Salvador nasceu, e é por isso que hoje temos essa comunidade tão especial chamada IBP, que nos ajuda em nossa caminhada. Por tudo isso, devemos repetir: “glória a Deus nas alturas, e paz na terra às pessoas de boa vontade” (Lucas 2,14).
O que estamos fazendo aqui hoje? Celebrando o Natal? Sim! Mas não como uma festa do calendário religioso do Ocidente. Nós estamos celebrando hoje uma experiência de todo dia, uma experiência que temos vivenciado o ano todo.
Porque Natal, em primeiro lugar, é todo dia em que Deus for encontrado na humildade dos pobres. Seja em 25 de dezembro, ou 25 de março, ou 25 de agosto. O Emanuel – Deus conosco, o Deus Forte, Conselheiro, Pai da Eternidade e Príncipe da Paz – nasceu pobre, viveu como pobre, entre os pobres e para os pobres. Não tendo lugar para nascer, nasceu em uma estrebaria, junto com os animais. Deixem-me contar-lhes uma historinha que li nesses dias, de Leonardo Boff (viu Vando!).
Leonardo Boff atribui essa história a Lutero. Ele a conta assim:
Era uma vez um homem muito piedoso. Ele queria já neste mundo chegar ao céu. Por isso se empenhava em fazer mais e mais obras de piedade, de caridade e de humildade. Assim chegou, enfim, ao alto da escada da perfeição. Num certo dia, depois de grande devoção, subiu tanto que sua cabeça penetrou no céu.
Olhou em volta e ficou muito decepcionado.
Pois o céu estava escuro, vazio e frio.
É que Deus estava na Terra, numa manjedoura, tiritando de frio e no meio de animais.
E Boff completa:
Lição da história: devemos buscar Deus lá onde Ele verdadeiramente está, no meio dos pequenos, dos pobres e dos invisíveis. É onde ele está, lá é o céu, mesmo que seja num estábulo, de noite e no frio junto com animais.
No mês de junho deste ano, eu e o Pr. Wellington tivemos uma experiência natalina em uma escola da cidade de Jacuípe. Encontramos Deus em uma senhora idosa, desabrigada pelas enchentes desse ano, vivendo em condições subumanas, junto com outras tantas famílias daquela cidade. Nosso Natal começou dentro das barracas de lona esquecidas pelo estado, que abrigam as famílias atingidas pelas enchentes. Nessa semana, na terça-feira, nosso Natal aconteceu na praça Sinimbu, junto com as 11 famílias “sem terra” despejadas do campo pelo governo do estado, e instaladas desde então naquela praça. Não teve chester nem peru. Mas teve galinha velha e feijão tropeiro, feitos por irmãos que querem um pedacinho de terra para viver e trabalhar, mas que há 11 meses vivem em barracas improvisadas, entregues à sorte. E antes de ontem, nosso Natal aconteceu na Vila Emater, junto com centenas de crianças daquela localidade. Natal é todo dia em que Deus é encontrado no meio dos pobres.
Em segundo lugar, Natal é todo dia em que Deus é achado onde ninguém vê. Meus irmãos, naquela noite em Belém, se se perguntasse pelo Salvador, as pessoas certamente diriam: procure na sinagoga, procure em um templo ou num palácio. Quem suspeitaria que o Salvador poderia ser achado no lugar onde nasceu? Natal é toda vez que a gente acha Deus nas pessoas e nos lugares mais suspeitos desse mundo. Quero lhes contar outra estorinha. Na verdade, um pedaço de estória contada esses dias por Frei Betto. Ele diz que Jesus voltou à terra em dezembro do ano passado. Escute com atenção:
Sem chamar a atenção, Jesus voltou à Terra em dezembro de 2010. Veio na pessoa de um catador de material reciclável, morador de rua. Comia prato feito preparado por vendedores ambulantes ou sobras que, pelas portas do fundo, os restaurantes lhe ofereciam.
Jesus chegou a uma praça semiescura. Havia ali uma mulher excessivamente maquiada. Buscou um banco e ali se instalou para poder comer. A mulher se aproximou:
- Ei, cara, tem o que aí?
- Pão, salame e refrigerante.
- Não comi nada hoje. E a noite tá fraca. Faz duas horas que estou aqui e nada de freguês. Acho que em noite de Natal os caras ficam com culpa de pegar mulher na rua.
Jesus preparou o sanduíche e ofereceu-o à mulher, e disse:
- Se não importa de beber no mesmo gargalo...
- Tenho lá nojo de alguma coisa? – murmurou a mulher. 
- Se tivesse, não estaria rodando a bolsinha na rua.- Você não tem família?(Jesus)
- Tenho, lá na roça. Larguei aquela miséria pra tentar uma vida melhor aqui na cidade. Como não fui pra escola, o jeito é alugar meu corpo.
- Esta noite de Natal não significa nada pra você?(Jesus)
- Cara, você não imagina o que já chorei hoje lá na pensão. A gente era pobre, mas toda noite de Natal minha mãe matava um frango e, antes de comer, a família rezava um terço e cantava Noite feliz. Aquilo me deixava muito feliz. Não posso relembrar que as lágrimas logo inundam os olhos – disse ela, puxando o lenço de dentro da bolsa.
A mulher fez uma pausa para enxugar as lágrimas e indagou:
- Acha que, se Jesus voltasse hoje, esse mundo iria melhorar?
- Não sei... O que você acha?
- Acho que ninguém ia dar importância a ele. Essa gente só quer saber de festa, e não de fé. Mas bem que ele podia voltar. Quem sabe esse mundo arrevesado tomava jeito.
- Eu não gostaria que ele voltasse. Não adiantaria nada. Há dois mil anos ele veio e deixou seus ensinamentos. Uns seguem, outros não. Se o mundo está desse jeito, a ponto de eu ter que catar lixo e você alugar o corpo, a culpa é nossa, que não damos importância ao que ele ensinou. Veja, hoje é noite de Natal. Jesus renasce para quem?
- No meu coração, ele renasce todos os dias. Gosto muito de orar, não faço mal a ninguém, ajudo a quem posso. Mas, sabe de uma coisa? Eu gostaria de poder falar com Jesus, assim como nós dois estamos conversando aqui.
- E o que diria a ele?
- Bem, eu perguntaria se ser prostituta é pecado. Já vi um padre dizer que sim, e ouvi outro falar que não. O que você acha?
- Acho que Deus é mais mãe do que pai. E lembro que Jesus disse um dia aos fariseus que as prostitutas iriam entrar no céu primeiro que eles.

Nem precisa comentar.
Em terceiro lugar, Natal é todo dia em que nossa religião perde a seriedade dos adultos, e ganha a leveza das crianças. Como alguém disse semana, Deus entrou na História como uma criança, uma simples criança judia. Natal é toda vez que a gente olha o mundo com os olhos de uma criança (e conforme o Pr. Wellington na semana de oração), quando a gente “julga os outros” com o mesmo rigor das crianças. Nossas igrejas são sérias demais em julgar os outros. Deveríamos cultivar a leveza mais do que a doutrina. A brincadeira mais do que o dogma. O perdão mais do que a disciplina. Lembrei de um poema de Fernando Pessoa chamado “O guardador de rebanhos”.
Vou ler apenas pequenos trechos da Parte VIII. Recomendo que vocês o procurem e o leiam inteiro:
Num meio-dia de fim de primavera
Tive um sonho como uma fotografia
Vi Jesus Cristo descer à terra,
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.

Tinha fugido do céu,
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras,
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem
Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três,
Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural,
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso é que eu sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.
E a criança tão humana que é divina
É esta minha quotidiana vida de poeta,
E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre,
E que o meu mínimo olhar
Me enche de sensação,
E o mais pequeno som, seja do que for,
Parece falar comigo.
Esta é a história do meu Menino Jesus,
Por que razão que se perceba
Não há de ser ela mais verdadeira
Que tudo quanto os filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam?
 
Quando eu era criança, meu pai fazia questão de dar belos presentes a mim e a meu irmão mais novo. Nossa casa, no recôncavo da Bahia, ficava toda enfeitada no Natal. A árvore de Natal era feita com um graveto seco, enrolado em algodão, com aquelas tradicionais bolas que quebram com um sopro (quem aqui teve uma igual?). Engraçado, nunca nos questionamos como era possível uma árvore nevada no nordeste brasileiro! Em uma manhã de Natal, e meu irmão acordamos cedo e lá ao pé da árvore estavam duas carretas de brinquedo enormes. Tinha motorista dentro, amortecedores, pneus de borracha, lugar pra pôr gasolina, etc. A minha era a vermelha, a do meu irmão era azul. Digo isso porque éramos uma família pobre, e agora eu sei que aquelas carretas haviam custado muito caro. Ficamos doidos de felicidade! Saímos correndo em nossa rua mostrando aos amigos aquele maravilhoso presente trazido por Papai Osmundo Noel.
Meus irmãos, nossa religião deveria ser assim: ao invés de ser feita de gente que vive julgando e perseguindo os outros, nossa religião deveria consistir em gente embriagada de alegria (como aqueles meninos do recôncavo), falando ao mundo sobre a beleza da salvação em Cristo Jesus, o maior presente que Deus nos deu.
Por último, Natal é toda vez que nosso coração torna-se tão simples como uma manjedoura, a ponto de acolher o Salvador. É por isso que hoje, para nossa comunidade, não é dia de celebrar um feriado do calendário. O Natal na IBP tem sido o ano todo, em nossa busca por “profundidade e simplicidade na vida comunitária”. 
Terminando, volto àquela coisa de saber o que é o verdadeiro Natal. E eu não ia terminar esse sermão sem citar as coisas do Face Book, não é? André Bigode: “se o Natal é verdadeiro, há de ser o ano inteiro”. Ascânio Júnior: “que o Natal nordestino aconteça o ano inteiro, com amor, bom senso e justiça”.
Amem !!! 

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

TRÊS MENSAGENS PARA O NATAL (2008)


O Evangelho nos constrange a celebrar o Natal diferenciadamente. Depois que a gente conhece, experimenta e vive o Evangelho de Jesus Cristo, nós ficamos desautorizados a celebrar o Natal da mesma maneira que todo mundo. Poderemos até fazê-lo, mas será sacrilégio. Portanto, os rituais todos que acompanham essa data podem perfeitamente ser observados por nós, conquanto que estejam encharcados do Evangelho!
Reúna sua família! Reveja aqueles e aquelas cuja existência lhe uniu consanguineamente. Brinde, cante, celebre em comunhão com os seus. Reafirme esses laços de afeto, pois família é aquela coisa que sempre estará presente quando todos estiverem ausentes. Mas não esqueça de uma coisa: que um dos grandes intentos do Emanuel é fazer desse mundo uma fraternidade, é fazer desta terra uma Grande Família. Jesus radicalizou tanto esse propósito que chegou a dizer: "minha mãe e meus irmãos são aqueles que fazem a vontade de meu Pai". Portanto, quando você estiver reunido em família lembre desse projeto análogo de Deus, e, se puder, se engaje nele!
Ceie com os seus! No que estiver em seu alcance, repita um dos hábitos mais recorrentes de Jesus registrado nos Evangelhos: comer com quem se gosta. Não exagere, afinal, mesmo pelo fato de nenhum pastor ou padre pregar contra glutonaria, ela ainda assim é o que é: pecado (principalmente para o corpo). Reúna-se à mesa, ore com os seus, diga alguma coisa inspirada que sempre nos vem nesses momentos, e coma. Mas não esqueça algumas coisas. Há, no Brasil, mais de 32 milhões de famílias que não têm o que comer todos os dias. Também ninguém prega esse sermão na Igreja, mas é pecado dos mais vis. Não esqueça também que "nem só de pão, peru e chester vive o homem, mas também do conteúdo sólido do Evangelho, isto é, da Palavra de Deus". Então, ao cear, abrace esses dois projetos, um social, o outro pessoal: lutar contra a miséria e nutrir-se também do Evangelho.
Adorne sua sala com enfeites natalinos e com a tradicional árvore. Cuide da casa, limpe a fachada, deixe tudo com cara nova, afinal, ferve a expectativa de um novo ano, quem sabe tempo de boas novidades. Não gosto dos pisca-piscas, mas se lhe convir, por que não? Só não esqueça de algumas coisas: nem sempre o adorno da fachada é o importante; na maioria das vezes serve de esconderijo para feiúras, traumas, pesares e injustiças. Portanto, nesse tempo não esqueça de adornar seu interior. Faça uma faxina também na psique. Tire daí esse lixo emocional que é praga das piores. Uma vez feito esse exercício, tudo do lado de fora fica limpo, tudo brilha, por tabela!
Dê presentes às pessoas que você estima: filhos, parentes e amigos! Eu mesmo sou de opinião de que a satisfação de quem dá o presente é maior e melhor do quem a de quem recebe. Não precisa ceder às tentações mercadológicas dessa época. Afinal, quem gosta de iniciar o ano novo já mergulhado em dívidas? Deus me livre! Mas, mesmo que singelos sejam os presentes – um cartão, um lembrete, um suvenir qualquer –, presenteie a quem você ama. Mas não esqueça de uma coisa: se você não ganhar presente de ninguém, o maior presente foi dado por Deus a todos – Emanuel, Deus conosco, Jesus Cristo. É o presente mais sublime, e é de graça e cheio de Graça! Lembre-se também que, conforme Jesus disse e São Francisco de Assis ratificou, é muito melhor dar que receber!
Enfim, não deixe esse tempo ser natal, mas Natal. Ou melhor, NATAL!!!
E não esqueça do fato de que é o Evangelho que nos constrange a todas essas coisas. Caso isso não ocorra, terá sido somente mais um feriado vazio. Terá sido somente mais uma celebração tradicional aprendida na cultura, como tantas outras. Terá sido submissão à voracidade capitalista de fim de ano. Terá sido exercício de formalidades coletivas sem qualquer significado em consonância com o que sentimos interiormente. Terão sido somente atos mecânicos, sem enraizamento na profundidade do ser. Terá sido natal, ou talvez Natal, mas nunca NATAL.
*** 
Todo nascimento de uma nova criança é um grito de esperança do mundo contra a maldade dos homens. Toda nova criança concebida é um grito de fé da natureza, um facho de luz em meio às trevas que os homens lançaram sobre a criação. Todo nascimento de um ser humano é uma espécie de Natal, uma vez que cada pessoa carrega em si um leque de enormes potencialidades, boas e ruins. À medida que os sujeitos vão crescendo a gente vai se dando conta de quais potencialidades latentes vão se evidenciando neles. Mas, enquanto criança, tudo é expectativa e apreensão. O pequeno Luís Inácio da Silva, mais um menino pobre entre os milhares do nordeste, carregava silenciosamente uma potencialidade que mais tarde ficou patente. O pequeno Paulo Freire, também menino pobre do nordeste, alfabetizado já adolescente, carregava silenciosamente sementes que mais tarde brotariam fantasticamente, e que hoje todos nós conhecemos bem. Também o pequeno Adolf Hitler, um dócil alemãozinho, carregava silenciosamente em sua infância uma potencialidade latente, mais tarde tornada patente, infelizmente.
Uma criança, portanto, é um vulcão adormecido.
Há coisa de dois milênios, na periferia de uma das províncias do Império Romano, nascia uma criança cujo primeiro feito fora inflamar a todos com profundas esperanças. Acerca desse menino já os profetas diziam: "o nome dele será Maravilhoso Conselheiro, Deus Forte, Pai da Eternidade e Príncipe da Paz" (Isaías 9,6). Conselho, força, paternidade e paz foram as primeiras virtudes esperadas da potencialidade daquele menino. Depois, deram-lhe o nome de Emanuel (Mateus 1,23), que quer dizer "Deus conosco", na esperança de que aquele menino fosse uma epifania ambulante do próprio Deus. Por fim, referiram-se ao menino como "Salvador e Senhor" (Lucas 2,11), como quem vê o invisível no visível, o infinito no finito, a força na fragilidade e o divino no humano. Somente a esperança é capaz dessas doces contradições.
É bem verdade que no início de tudo essas esperanças eram bem locais e nacionalistas. O menino era uma esperança para Israel, que vivia uma história milenar de cativeiro e subjugação nas mãos dos egípcios, assírios, babilônicos, medo-persas, gregos e romanos. Mas havia no menino alguma coisa grandiosa demais que não cabia em projetos locais e nacionalistas. A força da esperança que dele radiava rompeu todas as barreiras geográficas, e desde cedo a esperança que o menino evocava começou a se espalhar por toda terra.
Era um vulcão.
Foi soltando labaredas para o alto. E elas foram alcançando outros lugares, outras pessoas. Nunca cessou. Nos alcançou aqui, nesse tempo e nesse lugar.
Nele, nossos corações continuam inflamados de conselho, força, paternidade e paz. Conselho, porque na peregrinação da vida muitos caminhos nos são oferecidos, enquanto outros se insinuam, e no meio dessas bifurcações oMaravilhoso Conselheiro nos acalma e nos diz: "vem e me segue... ou, joga a rede desse lado...". Força, porque por vezes nos fatigamos e nossos joelhos ficam trôpegos de tanto caminhar. Então chega o Deus Forte e diz: "deixa, Eu te carrego...". Paternidade, porque por vezes ficamos órfãos, desamparados, desprotegidos, vulneráveis. Justamente aí oPai da Eternidade sussurra ao nosso ouvido: "meu filho, estou aqui...". E paz, porque mesmo crédulos, somos por vezes possessos de medo, pavor, desconfiança, instabilidade e insegurança. Então, vem o Príncipe da Paz e diz: "dou a vocês a minha paz...".
Isso é Natal. Quem souber de um que seja melhor e diferente desse, por favor, me avise!
***
Anselmo de Cantuária (1033-1109 d.C.), teólogo escolástico da Igreja Cristã, fez uma pergunta capital para a compreensão do mistério da Revelação: Cur Deus homo? Ou, traduzido do latim, Por que Deus se fez homem? Natal é justamente a época de desenterrar essa pergunta de nossa tradição. É tempo de mais uma vez queremos saber as razões da Encarnação. João, o Evangelista, se contenta em dizer que “A Palavra se fez carne e armou sua tenda entre nós” (1,14). Com Anselmo, mais uma vez perguntamos: por quê?
Os antigos gnósticos foram os primeiros a desconfiar da Encarnação. Em suas variadas formas, todos eles defendiam a idéia de que nunca houve essa coisa de “Deus se fazer homem”. Jesus havia sido um “espectro”, como diziam os docetas. A carne, como toda matéria, era impura demais para abrigar a Encarnação da divindade. A matéria era o abrigo do mal, portanto, indigna de acolher e abrigar corporalmente qualquer resíduo de bem, e muito menos O Bemem plenitude. Para os gnósticos, portanto, qualquer Natal é a celebração de um sacrilégio. [Há muitos gnósticos em nosso tempo.]
Para nós, não-gnósticos, parece mesmo que as razões da Encarnação se encontram ocultas somente em Deus. Mas desconfio de uma coisa: “Deus se fez gente porque ser gente, apesar dos pesares, é muito bom!” Ele poderia ter encarnado em um animal qualquer, e ser uma espécie de “Totem dos Totens”. Mas não quis!
Daí pra frente, o que se vê no mistério da Encarnação é um mundo de contradições... Doces contradições!
I.
Jesus poderia ter armado sua tenda numa linhagem nobre. Ter nascido num palácio, ou, à semelhança de Moisés, ter sido ao menos educado sob as tutelas da realeza. Poderia ter armado sua tenda entre os Césares de Roma, donos do mundo na época. Poderia ter nascido sob os cuidados mínimos devidos a qualquer pessoa desse mundo, independente de sua condição existencial. Nada disso lhe teria sido privilégio. Tudo isso lhe teria sido absolutamente natural. Afinal, não é Deus o Autor de todas as coisas? Nada mais justo que, ao encarnar-se, serem-lhe oferecidas as condições mais honrosas e pomposas da terra. Mas não quis!
II.
Pelas razões que só Ele mesmo conhece – e é sem nenhum anti-semitismo que eu digo isso –, armou sua tenda na escória da terra, entre o povo judeu [Escória não num sentido étnico, mas pelo fato dos judeus virem carregando o fardo milenar da opressão por outros povos]. Por que não ter armado sua tenda entre os poderosos romanos? Poderia ao menos ter pertencido à elite sacerdotal de Jerusalém. Pronto, estaria mais adequado! Mas, outra vez, não quis. Preferiu uma família pobre do interior, da cidade de Nazaré, cujo sustento dependia de um carpinteiro. Pelo menos à sua concepção eram devidas as honras mínimas. Mas contraditoriamente nasceu em local destinado à alimentação dos eqüinos, cujas nossas Bíblias aliviam semanticamente chamando de “manjedoura”. Fica romântico demais. O jeito mais ajustado é chamar de “cocho” mesmo. Pergunte ao homem da roça se não é assim?
As razões disso? Pertencem somente a Ele mesmo!
III.
Por último, tudo era favorável a que levasse uma vida de regalias e bajulação. Servi-lo seria mais que uma obrigação: seria uma dívida imputada aos homens. Contudo, surpreendentemente optou viver como pobre e como “servo de todos” (Marcos 10,45). Lavou os pés dos discípulos e disse parabolicamente que se tratava de um exemplo a ser seguido (João 13,1-17). É por tudo isso que os primeiros cristãos diziam num cântico que Ele havia “se esvaziado de si mesmo e assumido a forma de servo...” (Filipenses 2,7).
Não sei se essa resposta satisfaria ao Anselmo de Cantuária, mas parece que Deus se fez homem para, entre outras coisas, mostrar aos homens que há uma maneira ainda melhor de ser gente: no serviço ao outro em humildade de coração!
Outra vez, isso é Natal. E quem souber de um que seja melhor e diferente desse, por favor, outra vez me avise!
Dezembro de 2008