sábado, 20 de dezembro de 2008

RESTA-NOS UMA ÚLTIMA INQUISIÇÃO


Sobre os mosaicos e os vitrais, a verdade e a heresia

Outra metáfora para a verdade

Desconfio de todo herege auto-intitulado. Penso logo que se trata da necessidade problemática de chamar a atenção para si. Os hereges auto-intitulados são um prato cheio a psicanálise. Pois aí essa necessidade de chamar a atenção, essa paixão artificial pela diferença, comparecem como produtos de uma personalidade em conflito patológico. É bem verdade que o ideal de singularidade seja uma das pulsões naturais de nosso ego. Toda uniformização do comportamento – principalmente a religiosa –, portanto, traz o potencial de atentar contra essa “estrutura ontológica” que carregamos intrinsecamente. Então, que essa singularidade brote de forma natural.

Não conheço um único herege no seio da vasta historiografia religiosa que quis ser chamado assim. Pelo contrário, para todos eles, os desviantes do pensamento coerente eram aqueles a quem dirigiam sua denúncia. Herege é sempre o outro, mesmo para o próprio herege. Entre os “hereges clássicos”, não conheço um que tenha se conformado a essa alcunha. Por isso, desconfio de todos os que, propositalmente, querem assumir esse encargo como um sacerdócio.

Na realidade, tal palavra – heresia – só faz sentido se sustentamos o esquema epistemológico de um único pensamento certo que pode ser contradito por pensamentos desviantes. Ao sustentar tal esquema, não sabe o pseudo-herege que continua sendo profundamente ortodoxo. Pessoalmente, como entendo que a verdade não é nem da ordem do absoluto nem da ordem do relativo, mas da ordem da liberdade, sou da pluralidade. Minhas metáforas preferidas para a verdade são o mosaico e o vitral. Sendo assim, eu desejaria que chegasse o tempo em que a própria palavra heresia viesse a ser vítima de processos inquisitórios. Nesse caso, eu mesmo me candidataria a inquisidor!

À moda de Freud, sinto o faro de um interlocutor astuto que me indaga: mas caberia a metáfora do mosaico e do vitral no caso de uma declaração do tipo “Eu sou o caminho, a verdade e a vida”? Conforme Jesus, esse mosaico e esse vitral não seriam compostos de uma peça só – ele mesmo? E eu diria que Jesus, dentre todas grandes figuras religiosas da história, é aquele em quem a metáfora do mosaico e do vitral mais se ajusta. Porque o mesmo Jesus que diz ego eimi hê alethéia – eu sou a verdade –, diz também eu sou o faminto, o sedento, o errante, o nu, o doente e o encarcerado (vide Mateus 25,31-40). A epifania da verdade de Jesus tem rostos variados, sobretudo nos rostos múltiplos que têm os espoliados e pequeninos do mundo. Exatamente como num mosaico ou num vitral!

Convicções sob vigilância crítica

Todavia, não posso fechar os olhos para a realidade de que na maioria das produções simbólicas do homem, mormente na Religião Organizada, certas idéias se tornaram prevalecentes, normativas, dirigentes da práxis, da compreensão do mundo, de tal maneira que acabam definindo a identidade dos respectivos grupos que as adotam, e, assim, se tornam critérios pelos quais se delimita o próprio sentido de pertencimento a tais grupos. Historicamente essas idéias normativas se condensam sob forma textual nos Dogmas, nos Credos, nas Confissões de Fé, nas Declarações Doutrinárias, ou na literatura produzida pelos “intelectuais orgânicos” (A. Gramsci) desses grupos. No âmbito da vivência prática, essas idéias normativas se concretizam na práxis dos grupos e no nível pessoal onde cada um de nós, um a um, procura vivenciar aquilo a que damos assentimento.

Não obstante, as verdades normativas são cheias de ambigüidade. Definem os grupos. Conferem a identidade das associações humanas, sem a qual nenhuma delas seria possível. Criam um mundo simbólico sem o qual não seria possível existirmos no mundo concreto. Mas ao mesmo tempo podem segregar e fomentar a violência, simbólica e concreta. E embora nos seja possível operar essa distinção, ambas, a violência simbólica e a concreta, são no fundo um único fenômeno. Pois a violência concreta – a segregação, o racismo, a opressão política, o homicídio, o genocídio, por exemplo – é somente o ápice da violência simbólica. Ou seja, a violência concreta é a violência simbólica em plenitude. Toda convicção, desde a mais bem intencionada, traz o germe dessa ambigüidade. Terá sido por isso que Nietzsche aconselhava a que não se confiasse num homem de convicções?

Uma sugestão de sinalização para o mundo

No âmbito religioso, muito bem fazem aqueles que procuram eliminar a palavra heresia de seu vocabulário e de suas ações. Mas também muito bem fazem aqueles que procuram eliminar a palavra tolerância. Também essa, assim como heresia, pressupõe aquele esquema epistemológico descrito acima de um único pensamento certo que pode ser contradito por pensamentos desviantes. Daí que essa palavra – tolerância – só pode subsistir enquanto concessão. Continua pressupondo uma situação de autoritarismo e de posse exclusiva da verdade. Isto é, tolerância só pode existir onde haja relações assimétricas de poder. E as Religiões Organizadas bem que poderiam dar justamente aí um enorme sinal para o mundo, declinando do exercício dessas relações de poder, tão em voga no mundo. “Entre vós não seja assim...”, dizia Jesus aos seus discípulos!

Nisso, penso que tanto Católicos quanto Protestantes estejam quase emparelhados: nenhum deles ainda conseguiu dar/ser esse “sinal” para o mundo.

Por gozar de uma coesão ideológica mais unânime, é mais fácil falar dessas relações na Igreja Católica. Com todo totalitarismo de sua máquina gerencial (que o diga Bento XVI), é muito fácil notar que a tolerância ali é mais elástica. Por exemplo, autores e teólogos protestantes publicam suas obras em editoras católicas e estudam Teologia nos centros de formação gerenciados por esta Igreja. Isso é um exemplo mínimo de tal elasticidade da tolerância. Um processo de excomunhão por desvio de pensamento na Igreja Católica – algo esdrúxulo e terrivelmente escandaloso para o mundo de hoje – necessita de vários anos para que se possa empreender uma investigação que possibilite fundamentação máxima aos procedimentos inquisitórios (os quais, reafirmo, são bestiais!).

Por outro lado, eu, pastor protestante, me assustei quando topei com a matéria de Ultimato intitulada Quarenta livros que fizeram a cabeça dos evangélicos brasileiros nos últimos quarenta anos, escrita por Ricardo Quadros Gouvêa. Conforme o mesmo, os critérios adotados para a formação da lista foram os seguintes: “[foram escolhidos] livros que foram campões de vendagem, citados e debatidos, que influenciaram e continuam influenciando os evangélicos brasileiros, livros muito lidos e com alto índice de aceitação, e também os que hoje estão operando uma mudança paradigmática na cultura evangélica contemporânea”. Dos quarenta, eu só tinha ouvido falar em quinze! E desses quinze, eu só li um!

Essa minha “alienação” é um bom sinal! Não por que eu queira aparecer. Disse antes e ratifico: lugar de hereges auto-intitulados é o divã. Mas o sinal é bom porque aponta minusculamente para um retorno às próprias tradições protestantes, originalmente perpassadas pela liberdade e pela pluralidade. Sou batista e fiz toda minha formação teológica num seminário batista, mas, no entanto a lista acima me é estranha. Apesar disso, continuo me sentindo profundamente protestante e batista.

Auto-criticidade e a última inquisição

Karl Popper sinalizava que a força do desenvolvimento científico não está nem na qualidade de seu método nem nas convicções produzidas por ele, mas está na criticidade. Se a criticidade tiver mesmo todo esse poder de aperfeiçoar cada vez mais as nossas produções simbólicas, deveríamos lutar sempre mais em favor de uma pluralidade cada vez maior, mormente entre nós mesmos. Porque, de fato, não há desenvolvimento do espírito onde impera a uniformidade e onde se padece da falta de criticidade. Temos já, como protestantes, a diversidade. Falta-nos ainda a criticidade, que em sua forma genuína é sempre auto-criticidade também.

O caminho para a unidade não passaria pelo caminho da criticidade, sobretudo da auto-criticidade? O caminho da auto-criticidade não nos levaria a conciliar sem traumas liberdade e diversidade? O primeiro passo deveria consistir em iniciarmos rápido nossa última inquisição: contra a palavra heresia.


quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

A VERDADE NO TUTANO DAS COISAS



Nada pode ser mais subversivo do que dizer a alguém: se você conhecer a verdade, a verdade vai libertar você (João 8,32). Digo assim sem medos que Jesus de Nazaré foi o Mestre da Subversão.

A transgressão, o atrevimento incontido, a coragem rebelde, têm na dialética dos processos sócio-culturais um lugar de honra. Um simples olhar à nossa volta, uma caminhada até a padaria, um dia comum no trabalho ou na escola, nos colocam em contato visual com uma infinidade de objetos, todos filhos da transgressão. São aqueles objetos surgidos do útero da ciência. E ela, a ciência, é uma das mais legítimas filhas do atrevimento humano. Num mundo cansado da cosmovisão religiosa, a razão humana viu-se fecundada por esse fermento que, tendo levedado a massa, me proporciona escrever hoje esse texto, nesse computador, e a você, lê-lo em seu computador.

Enfim, as grandes produções humanas devem sua maternidade à inteligência, à inventividade e à arguta capacidade do homem de romper com os condicionamentos impostos pela natureza. Mas nada disso é gerado sem o útero da rebeldia e da transgressão.

A história humana vai dando a impressão de ser uma constante repetição de estreitamentos seguidos de aberturas nas mais variadas áreas. A um estreitamento, segui-se uma ruptura, que se solidifica em novo estreitamento, que força a produção de uma nova abertura. E cada síntese histórica vai sendo produzida nesse jogo dialético que parece interminável. Hegel dizia que esse movimento todo está “marchando para frente”. É o Espírito em sua caminhada. O telos – fim, finalidade, culminância – dessa marcha seria a objetivação sempre maior do Espírito. Sei não...

Os exemplos concretos desse jogo dialético seriam extenuantes. Vejamos somente alguma coisa sobre o Cristianismo em particular.

Enquanto fenômeno sócio-histórico-cultural, ele sozinho serviria para clarificar o que se elucidou acima. Porque se quisermos dizer que o Cristianismo vive do Espírito, teremos que assumir que esse Espírito tem sobrenome, e esse sobrenome é de Subversão. O Cristianismo vive da subversão, tem a subversão no DNA, e deve completamente sua sobrevivência à subversão. Porque é da programação mais íntima da Religião Organizada o controle e a esterilização de todo carisma. Basta comparar, por exemplo, a fé e a práxis das primeiras comunidades cristãs com a fé e a práxis do alto clero na Idade Media. Basta comparar a teologia e a práxis dos Reformadores no século 16 com a teologia e a práxis de boa parte dos Reformados de hoje.

O Protestantismo, produto mais legítimo da subversão em toda Cristandade, vive também à custa dela. Tendo sido vento que esmiúça a pedra, cedinho ele mesmo fez-se pedra por um processo de auto-engessamento ideológico. Esse caleidoscópio religioso atual sob a alcunha de “evangélicos” nada mais é que o produto vivo e pulsante da subversão que, encontrando maior liberdade no Protestantismo, vive de romper odres velhos aqui e acolá. E não há nenhum lamento em minhas observações. Não se pode mesmo pôr vinho novo em odres velhos sem que esses se rompam. Odres novos são sempre bem vindos desde que os vinhos também sejam novos.

Se você conhecer a verdade, a verdade vai libertar você. Credo mínimo de todo espírito subversivo. A verdade não é nem da ordem do absoluto nem da ordem do relativo: ela é da ordem da liberdade.

Uma pena que a maioria dos intérpretes cristãos, em sua ânsia por estreitamentos, tenha confinado a compreensão daquela frase no universo tipicamente religioso. Ou não reconhecemos que conhecer a verdade hoje consista em conhecer as apropriações que cada Igreja faz da Bíblia? Ou não reconhecemos que conhecer a verdade hoje consista somente em se dar conta da trama religiosa que subjaz o sentido do mundo? Grande serviço hermenêutico nós prestaríamos ao mundo se começássemos a alargar essa compreensão do conhecer a verdade.

Aqui também os exemplos concretos seriam extenuantes. Fiquemos somente com a verdade acerca da pobreza sócio-econômica, para concluir.

É sempre rompendo com as significações naturalizantes desse fenômeno, e conhecendo suas causas reais, que os homens resolvem se tornar revolucionários. E nem se precisa de curso superior para isso. A maioria dos militantes do MST, por exemplo, nunca leu uma linha de Marx. É conhecendo a verdade da opressão, e o fato de que a miséria sócio-econômica é produto da espoliação do homem pelo homem, que gente simples se liberta do casulo da impotência e da invisibilidade, se junta com outros, ganha força e milita. É conhecendo a verdade da arbitrariedade e da mesquinhez da natureza humana que os oprimidos levantam seu grito por libertação.

Quando a verdade dos mecanismos da opressão se dá à mente, o homem está livre. Sua luta pela terra, por exemplo, já é produto de libertação. Não estará liberto somente no dia em que conquistar seu pedaço de chão. Nesse dia sua liberdade terá concebido à luz um lindo filho. Mas liberto, de fato, já será. Porque a libertação acontece sempre que um homem ou uma mulher se tornam sujeitos para si mesmos, e resolvem ser artífices de seus próprios destinos.

Albert Camus dizia que “com a rebeldia nasce a consciência”. Poderíamos completar tranquilamente dizendo que “com a consciência fecunda-se a liberdade”. Viver à base da memória de Jesus requer que assumamos a tarefa de ajudar a encher esse mundo de gente subversiva. Gente que consegue conhecer a verdade no tutano das coisas. E, à base disso, compra briga contra as forças que escravizam e que vivem à custa da desumanização.

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

A SAUDADE COMO JOGO E MAGIA


Com a licença de tod@s, eu hoje não desejo falar nem de teologias nem de teólogos. Eu desejo falar é de saudade! Essa coisa estranha que, conforme dizem, só possui um equivalente verbal em nossa língua portuguesa.

Segundo a estória infantil A menina e o pássaro encantado do Rubem Alves, o amor se alimenta da saudade. A menina, apaixonada pelo pássaro encantado, diz: “vou prendê-lo numa gaiola e ele será só meu, por todo tempo”. Preso, o encanto do pássaro fenece. Triste, este diz à menina: “meu encanto reside justamente na graça de voar livremente”. Porque cada vez que o pássaro regressava de seus vôos, trazia em suas penas o colorido dos lugares onde estivera. Engaiolado, restou-lhe somente um cinza enfadonho. Então, liberto outra vez, regressou-lhe o colorido mágico que a distância e a saudade produziam em suas penas.

Estória bonita. Serve para ajudar os relacionamentos amorosos a se alimentarem da saudade. Serve para ajudar pais e filhos da mesma forma. Serve pra conscientizar a própria religião (não vou falar disso hoje!) de que deuses engaiolados por Dogmas são deuses sem cor, sem graça e sem Graça. Mas essa estória remete a saudades temporárias. Saudades leves, com data marcada para acabar.

Há outras saudades que são incuráveis mesmo. A saudade de quem se foi para sempre, de quem morreu, por exemplo. Como o próprio Rubem gosta de dizer, “saudade é a presença de uma ausência”. “É arrumar o quarto do filho que já morreu”, continua citando o Chico Buarque de Holanda. Não há encanto que a cure. Bonhoeffer dizia numa de suas cartas da prisão que não é correto dizer que Deus preenche a lacuna. Ao contrário, Bonhoeffer escreve, Deus justamente a mantém aberta e, dessa maneira, ajuda-nos a preservar nossa ligação com tal pessoa.

Minha esposa sempre me criticou porque rompi os laços com minha terra natal de forma muito abrupta. Sempre manifestei pouca saudade em relação ao lugar e às pessoas dali. Como um psicanalista à cata do seu insight, ela sempre desconfiou desse meu comportamento. Vez por outra arrisca um psico-diagnóstico leigo. E ela tem razão! Na média, embora muitas pessoas do interior cultivem a máxima de que a cidade grande representa uma expansão nos seus horizontes existenciais, quase todas deixam para trás relações que instigam a saudade, ainda que em doses mínimas. E eu de fato, nesse âmbito, sempre demonstrei uma frieza de causar desconfiança mesmo.

Deixei na Bahia uma família com meu pai e meu irmão mais novo. Tenho também duas irmãs, frutos de um segundo casamento de meu pai, e que vivem com sua mãe, a mulher que me deu criação. Meu pai e meu irmão não os vejo há um ano. Pouca coisa. Mas minhas irmãs e minha mãedrasta não as vejo há muito tempo. Tanto tempo que já não tenho mais idéia de quanto seja.

Muito subitamente me invadiu uma saudade enorme desse povo todo. Saudade produzida por geração espontânea, ex nihilo, como diziam os antigos teólogos (eles insistem em se insinuar a mim!). Fui ao Orkut. Encontrei lá muitas fotos de meus irmãos. Foi pior! Outra coisa inusitada irrompeu de minha penumbra interior: esbocei uma lágrima. Tivesse ela chegado a rolar no meu rosto e estaria aí um desses acontecimentos da história que merecem documentação. Coisa esquisita o que me ocorreu. E essas esquisitices todas denunciam a necessidade perene de nos tornarmos todos, caso ainda não sejamos, parceiros epistêmicos de Sócrates, obedecendo-lhe a convocação: conhece-te a ti mesmo.

Meus irmãos já não são aquelas crianças que deixei anos atrás. Cada um está fazendo o seu caminho. Estão todos bem, saudáveis, bonitos (coisa hereditária!), e submersos em diferentes atividades entre trabalho, cultura e estudos. Como o salmista dizia acertadamente, se transformaram em flechas nas mãos do arqueiro (Salmo 127,4). A imagem deles ali no monitor desabrochou a química mental que me remeteu a outras tantas imagens da infância boa no recôncavo baiano. E de repente redescobri que os amo. Redescobri que família é muito mais que genes, carne e sangue compartilhados. Tudo graças a essa coisa mágica chamada saudade.

Eu e meus irmãos, filhotes no ninho ontem, hoje somos pássaros em pleno vôo. Estamos desengaiolados. Talvez quando a vida nos proporcionar um reencontro, ainda que momentâneo, vejamos o colorido nas penas uns dos outros. Espero que possamos ver as marcas de alegria que a vida está impingindo na trajetória de cada um. E que possamos ver aí o produto colorido do encanto que a saudade fez nascer em nós. Afinal, esse colorido só pode ser visto de perto, bem de perto. Depois, resta retomar o vôo e deixar que a saudade continue seu jogo.

sábado, 6 de dezembro de 2008

PARA QUE(M) SERVEM OS TEÓLOGOS?



Os formandos em Teologia desse ano no Seminário Teológico Batista de Alagoas (SETBAL) me pediram que escrevesse um texto para o boletim de seu culto de formatura. Fiz alegremente. Mas, de repente, me invadiu uma vontade de dizer a todos os formandos em Teologia desse ano, em qualquer lugar, o que disse textualmente aos formandos daqui.

Por isso, se você conhece algum formando em Teologia aí no seu lugar, transmita-lhe esse recado.

Fica minha gratidão.

***

Os formandos talvez quisessem me perguntar: “mas somente agora essa questão?” Sim, somente agora! Porque não se precisam de quatro anos de uma graduação para respondê-la. E mesmo agora, no apagar das luzes, é possível extrair a pertinência de sua provocação. Afinal, para que servem os teólogos hoje em dia?

Sei que minha questão é uma provocação, e quase uma afronta. Mas falando honesta e seriamente, no tempo da privatização absoluta da experiência religiosa e da impertinência pública da Teologia Acadêmica, para que servem os teólogos? No tempo marcado pela onipotência do mercado mundial globalizado enquanto regulador das necessidades essenciais dos seres humanos, para que servem os teólogos? No tempo da sacralização e da objetivação dos dogmas neoliberais – competitividade, inclusão excludente, celebração do individualismo, do poder –, para que servem os teólogos?

Digo sem rodeios: se optam pelo equívoco de virar as costas para o turbilhão de novidades desse
estranho mundo novo, os teólogos de fato têm quase nenhuma utilidade. Com seus discursos anacrônicos, suas questões irrelevantes e suas polêmicas desgastadas que não interessam a ninguém, servem somente ao status quo!

Mas minha palavra conclusiva é de esperança!

Posto que ao teólogo está dada a oportunidade singularíssima de fazer magia com a palavra e com a Palavra. A ele/ela é dada a oportunidade ímpar de reler este mundo novo, espiritual e criticamente, à luz do Evangelho de Jesus Cristo. A ele/ela cabe a responsabilidade de invadir esse mundo sem medo, penetrar suas entranhas, falar sua linguagem, deslindar seus segredos, e ajuizá-los conforme a vontade de Deus.

Pois se ainda resta alguma pertinência nesse ofício insistente, é esta: assumir a “santa ambigüidade” de amar/negar o mundo concomitantemente.
Amo o mundo na medida em que penetro em suas entranhas para compreender-lhe a partir de si mesmo. Nego-o na medida em que ao invadir suas entranhas, me deparo com criações e artificialidades anti-evangélicas, desumanizantes e pecadoras. O reconstruo em amor, a partir do Evangelho, que é paz, alegria e justiça no Espírito Santo! Eis a tarefa de vocês, novos teólogos alagoanos!

Parabéns à turma!!!

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

O AB-USO IDEOLÓGICO DO DISCURSO RELIGIOSO


Num país de desarranjos macro-sociais tão escandalosos, dizer a uma pessoa que seus dilemas econômicos pessoais são de origem demoníaca, a meu ver, é mais satânico do que a maior artimanha que qualquer demônio possa intuir.

De um ponto de vista do marxismo, diríamos que tal discurso – o atrelamento de dilemas pessoais de ordem econômica a elementos do imaginário religioso cristão – é substancialmente ideológico, posto que falseia a realidade e se presta a legitimar certas relações de poder. Esconde a realidade concreta de um fenômeno sob uma capa ilusória que mais entorpece do que convoca à ação transformadora. O discurso religioso, nesse viés, portanto, corre o risco da ideologização em cada palavra que profere. Weber já dizia, por exemplo, que a concepção de vocação em Lutero – profissões seculares enquanto vocações com a mesma legitimidade do sacerdócio religioso – tendia a petrificar determinadas relações trabalhistas, isto é, tendia a legitimar religiosamente o que a partir de Durkheim chamaríamos de divisão social do trabalho.

Entretanto, o risco da ideologização nunca foi um privilégio exclusivo da religião. Toda produção da cultura humana traz semelhantemente o risco onipresente do falseamento da realidade e da legitimação de relações assimétricas de poder: a ciência, a filosofia, a arte e o senso comum.

Nunca nos perguntamos como pode uma massa poderosa de trabalhadores se render – nas fábricas, nas usinas, nos escritórios, e etc., – como um rebanho manso às vontades interesseiras de seus patrões? Nunca nos perguntamos como pode uma legião inumerável de pessoas se transformarem coletiva e silenciosamente em instrumentos para a produção de riquezas que pertencerão a pouquíssimas e estranhas mãos? Nunca nos perguntamos como as pessoas vão sendo constrangidas a assimilar e a construir sua experiência pessoal ao redor de cada nova falsa necessidade tecnológica produzida pelo mercado – celulares, ipods, iphones, notebooks? Nunca nos perguntamos como as pessoas podem celebrar a idéia insuportável de competitividade (darwinismo social) propalada exaustivamente por todos os lados, sem se dar conta (e sem se comoverem) do fato de que minha inclusão no mercado de trabalho só pode existir à custa da exclusão de outrem? Enfim, nunca nos perguntamos como multidões inteiras deixam-se convencer por discursos religiosos escancaradamente maliciosos e minimamente cristãos?

Uma vez que as respostas a essas questões acima nem sempre estão atreladas ao discurso religioso, é preciso ir a outras instâncias para encontrá-las. É a produção de sentido, aquilo que Marx deu o nome de aspectos superestruturais de dada sociedade, que responde a essas questões. Toda produção de sentido que alimenta as relações assimétricas numa dada sociedade pode ser adjetivada de ideológica. E seus instrumentos e meios hoje, para além da própria Instituição Religiosa, são muitíssimo variados. Adorno e Horkheimer, por exemplo, já combatiam os efeitos alienantes da indústria cultural desde a primeira metade do século passado. E as mídias talvez ainda compareçam hoje como os maiores veículos de produção de sentidos e de difusão de discursos ideológicos.

A partir a Psicologia Social, Pedrinho Guareschi falava em processos psicossociais da exclusão. Tais processos, por sinal, nos ajudam inclusive a responder algumas daquelas questões acima, pois eles indicam o como da difusão do discurso ideológico. Falava ele, por exemplo, da tática da culpabilização, que consiste basicamente em polarizar toda a responsabilidade pelo destino de uma pessoa sobre ela mesma, desconsiderando todos os fatores sócio-político-econômicos que a envolvem. Em outras palavras, com esse recurso o fracasso pessoal é encarado sempre como responsabilidade exclusiva do indivíduo, de sua falta de ação, de sua preguiça, e etc. Táticas como essa, por se basearem em juízos parciais e falsos sobre esses fenômenos e por servirem a determinados interesses, são profundamente ideológicas.

Mas nenhuma delas ainda se compara à demonização dos dilemas econômicos de uma pessoa. A perversidade da demonização, para além de ser um atentado grotesco à inteligência média, consiste em deixar a pessoa sem quaisquer recursos próprios de ação. É um cruzado a la Mike Tyson. A demonização é uma rasteira que ultrapassa em eficácia o molejo e a força de qualquer capoeirista de minha terra natal! O sujeito está entregue aos cuidados de quem detém a eficácia do capital simbólico da religião. Ao dar assentimento a tal discurso, o sujeito abdica de si mesmo. Numa atitude idólatra, é constrangido a operar segundo a crença de que somente por tais meios (correntes, campanhas, sacrifícios...) e somente pela mediação de tais pessoas de determinado grupo religioso (a casta sacerdotal) seu dilema pode ser superado.

Portanto, não há demonização sem o seu correlato: a idolatria. Esse termo deve ser entendido aqui numa acepção tillichiana, ou seja, como elevação de um ente relativo e condicionado ao status de absoluto e incondicionado. E não esqueçamos a dica de Nietzsche, quando nos lembrava que a idolatria apaga certas idiossincrasias inerentes ao ídolo dos olhos do idólatra. Ao dar adesão ao discurso da demonização, a pessoa tropeça inevitavelmente na advertência do profeta Jeremias: “maldito o homem que faz de seu semelhante o seu braço...” (17,5). Transliterando Jeremias: “o homem que elege seu semelhante como única e exclusiva via para a solução de seus dilemas pessoais, vai se deparar logo-logo com o engano e a desilusão”. Um pouco pessimista, concordo.

Portanto, pior do que responsabilizar unicamente a pessoa por seu fracasso pessoal, é fazer dela esse joguete esdrúxulo, essa marionete incauta, a quem eu posso ludibriar com a mesma astúcia do gênio maligno de Descartes. Parafraseando Jesus para terminar (Mt 8,11-12): “digo-vos que muitos capitalistas e neoliberais virão do Oriente e do Ocidente e tomarão lugares à mesa com Abraão, Isaque e Jacó no reino dos céus; ao passo que os funcionários Universais do Reino serão lançados para fora, nas trevas, e ali haverá choro e ranger de dentes... e muita blasfêmia”.