quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

A VERDADE NO TUTANO DAS COISAS



Nada pode ser mais subversivo do que dizer a alguém: se você conhecer a verdade, a verdade vai libertar você (João 8,32). Digo assim sem medos que Jesus de Nazaré foi o Mestre da Subversão.

A transgressão, o atrevimento incontido, a coragem rebelde, têm na dialética dos processos sócio-culturais um lugar de honra. Um simples olhar à nossa volta, uma caminhada até a padaria, um dia comum no trabalho ou na escola, nos colocam em contato visual com uma infinidade de objetos, todos filhos da transgressão. São aqueles objetos surgidos do útero da ciência. E ela, a ciência, é uma das mais legítimas filhas do atrevimento humano. Num mundo cansado da cosmovisão religiosa, a razão humana viu-se fecundada por esse fermento que, tendo levedado a massa, me proporciona escrever hoje esse texto, nesse computador, e a você, lê-lo em seu computador.

Enfim, as grandes produções humanas devem sua maternidade à inteligência, à inventividade e à arguta capacidade do homem de romper com os condicionamentos impostos pela natureza. Mas nada disso é gerado sem o útero da rebeldia e da transgressão.

A história humana vai dando a impressão de ser uma constante repetição de estreitamentos seguidos de aberturas nas mais variadas áreas. A um estreitamento, segui-se uma ruptura, que se solidifica em novo estreitamento, que força a produção de uma nova abertura. E cada síntese histórica vai sendo produzida nesse jogo dialético que parece interminável. Hegel dizia que esse movimento todo está “marchando para frente”. É o Espírito em sua caminhada. O telos – fim, finalidade, culminância – dessa marcha seria a objetivação sempre maior do Espírito. Sei não...

Os exemplos concretos desse jogo dialético seriam extenuantes. Vejamos somente alguma coisa sobre o Cristianismo em particular.

Enquanto fenômeno sócio-histórico-cultural, ele sozinho serviria para clarificar o que se elucidou acima. Porque se quisermos dizer que o Cristianismo vive do Espírito, teremos que assumir que esse Espírito tem sobrenome, e esse sobrenome é de Subversão. O Cristianismo vive da subversão, tem a subversão no DNA, e deve completamente sua sobrevivência à subversão. Porque é da programação mais íntima da Religião Organizada o controle e a esterilização de todo carisma. Basta comparar, por exemplo, a fé e a práxis das primeiras comunidades cristãs com a fé e a práxis do alto clero na Idade Media. Basta comparar a teologia e a práxis dos Reformadores no século 16 com a teologia e a práxis de boa parte dos Reformados de hoje.

O Protestantismo, produto mais legítimo da subversão em toda Cristandade, vive também à custa dela. Tendo sido vento que esmiúça a pedra, cedinho ele mesmo fez-se pedra por um processo de auto-engessamento ideológico. Esse caleidoscópio religioso atual sob a alcunha de “evangélicos” nada mais é que o produto vivo e pulsante da subversão que, encontrando maior liberdade no Protestantismo, vive de romper odres velhos aqui e acolá. E não há nenhum lamento em minhas observações. Não se pode mesmo pôr vinho novo em odres velhos sem que esses se rompam. Odres novos são sempre bem vindos desde que os vinhos também sejam novos.

Se você conhecer a verdade, a verdade vai libertar você. Credo mínimo de todo espírito subversivo. A verdade não é nem da ordem do absoluto nem da ordem do relativo: ela é da ordem da liberdade.

Uma pena que a maioria dos intérpretes cristãos, em sua ânsia por estreitamentos, tenha confinado a compreensão daquela frase no universo tipicamente religioso. Ou não reconhecemos que conhecer a verdade hoje consista em conhecer as apropriações que cada Igreja faz da Bíblia? Ou não reconhecemos que conhecer a verdade hoje consista somente em se dar conta da trama religiosa que subjaz o sentido do mundo? Grande serviço hermenêutico nós prestaríamos ao mundo se começássemos a alargar essa compreensão do conhecer a verdade.

Aqui também os exemplos concretos seriam extenuantes. Fiquemos somente com a verdade acerca da pobreza sócio-econômica, para concluir.

É sempre rompendo com as significações naturalizantes desse fenômeno, e conhecendo suas causas reais, que os homens resolvem se tornar revolucionários. E nem se precisa de curso superior para isso. A maioria dos militantes do MST, por exemplo, nunca leu uma linha de Marx. É conhecendo a verdade da opressão, e o fato de que a miséria sócio-econômica é produto da espoliação do homem pelo homem, que gente simples se liberta do casulo da impotência e da invisibilidade, se junta com outros, ganha força e milita. É conhecendo a verdade da arbitrariedade e da mesquinhez da natureza humana que os oprimidos levantam seu grito por libertação.

Quando a verdade dos mecanismos da opressão se dá à mente, o homem está livre. Sua luta pela terra, por exemplo, já é produto de libertação. Não estará liberto somente no dia em que conquistar seu pedaço de chão. Nesse dia sua liberdade terá concebido à luz um lindo filho. Mas liberto, de fato, já será. Porque a libertação acontece sempre que um homem ou uma mulher se tornam sujeitos para si mesmos, e resolvem ser artífices de seus próprios destinos.

Albert Camus dizia que “com a rebeldia nasce a consciência”. Poderíamos completar tranquilamente dizendo que “com a consciência fecunda-se a liberdade”. Viver à base da memória de Jesus requer que assumamos a tarefa de ajudar a encher esse mundo de gente subversiva. Gente que consegue conhecer a verdade no tutano das coisas. E, à base disso, compra briga contra as forças que escravizam e que vivem à custa da desumanização.

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