quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

UMA RAPIDINHA SOBRE "EXCENTRICIDADE"


Era uma aula de mestrado, e a primeira coisa que me chamou à atenção naquela sala foi o fato de que entre os mais de vinte mestrandos, havia apenas um homem além de mim. Segundo, uma parte daquelas mulheres era declaradamente feminista. E a aula começou exatamente pelo tópico das relações históricas entre homens e mulheres, e pelo papel do feminismo da presente conjuntura. O clima era um pouco pesado. Mas o bom humor do professor deixou tudo muito descontraído.
Foram poucas as vezes na vida em que eu me senti excêntrico. Mas, espere um pouco. Você sabe o que é excentricidade? Simples. Um indivíduo excêntrico é um indivíduo que está “fora do centro”. Ex-cêntrico. Fora da norma, do eixo, do prumo, da baliza. Anormal. À margem. Marginal. Excentricidade, portanto, é o sentimento que nos invade sempre que nos sentimos fora de um padrão considerado normal, conforme as convenções sociais.
Foi um pouco assim que me senti no meio de tantas feministas juntas. E foi bem desconfortável, a princípio.
No entanto, ao fim da aula tudo voltou a ser como era. A excentricidade se foi. Isso porque aquele momento funcionou como uma espécie de suspensão do cotidiano. Fim do momento de suspensão, fim do sentimento de excentricidade. A questão é que há grupos sociais que carregam a excentricidade aonde quer que vão. Para os tais, não há momentos de suspensão. A excentricidade é o seu cotidiano. Na prática, isso quer dizer muita coisa. 
Há muitos excêntricos desejosos de sair desse lugar, para ocupar o centro. Mas há muita gente assumindo suas mais diferentes excentricidades, numa tentativa de multiplicar os centros. Esse não é um movimento fácil. É sempre difícil furar as barreiras da normalização. A excentricidade, à primeira vista, é bem desconfortável. Mas ela deve ser muito mais quando é a matéria que constitui o cotidiano dos indivíduos.

sábado, 8 de dezembro de 2012

O CORPO E O PODER RELIGIOSO


Três níveis de docilização religiosa dos corpos
A fixação docilizadora do cristianismo em relação ao corpo é muito anterior a qualquer técnica moderna de poder. Nietzsche talvez tenha sido um dos primeiros filósofos a denunciar programaticamente a problemática relação do cristianismo com o corpo. Desde muito cedo, na história cristã, a negação do corpo e de seus prazeres foi se constituindo como forma privilegiada de acesso à bem-aventurança, sempre remetida à alma e ao espírito.
Embora se reconheça a presença constante de correntes problematizadoras dessa fobia ao corpo no interior da própria história da religião cristã, parece-nos que tais contra-discursos nunca chegaram a provocar mudanças paradigmáticas na forma de relação entre o cristianismo e o corpo. Nenhum dos grandes cismas registrados na história do cristianismo ocidental tematizou o corpo enquanto superfície de aplicação do poder.
O próprio Foucault, que descreveu magistralmente a produção de um “poder disciplinar” surgido como forma de docilização dos corpos no contexto das reestruturações econômicas da Europa a partir dos séculos 16 e 17, admite que tais tecnologias disciplinares haviam existido de forma isolada em certas instituições, dentre as quais os mosteiros cristãos medievais.
Obviamente, há diferenças fundamentais entre as técnicas disciplinares de docilização dos corpos presentes nas instituições cristãs e aquelas que Foucault discutiu a partir do sistema carcerário e escolar modernos, especialmente em Vigiar e punir. Enquanto nestas, a docilização dos corpos visa esvaziá-los de sua potência política para aumentar sua potência produtiva em termos econômicos, aquela visa especificamente o esvaziamento das possibilidades éticas, entendidas como “cuidado de si” e como a utilização do corpo como forma de fazer da vida uma obra de arte. Enquanto as técnicas modernas de docilização dos corpos estariam ligadas à dominação econômica (e indiretamente ligadas ao domínio da subjetividade), aquelas ligadas ao cristianismo estariam relacionadas diretamente às lutas pelo domínio da subjetividade.
A nosso ver, há pelo menos três níveis pelos quais atualmente as diversas igrejas cristãs operam uma docilização dos corpos, esvaziando suas possibilidades éticas.
Um primeiro nível é o mais capilar de todos. Ele tem a ver especialmente com a doutrina e a ideologia relacionadas aos processos de formação empreendidos pelas comunidades religiosas. Estaria presente nos púlpitos, na pedagogia cristã, na hermenêutica dos textos bíblicos, e nas demais formas de ensino cristão, que servem para a manutenção ideológica de cada confissão, cujo efeito imediato é um estrito controle dos corpos, corroborando os mecanismos de normalização da sexualidade presente em outras instituições sociais. Seria um enorme equívoco dizer que as comunidades cristãs são as únicas instituições sociais a promoverem este tipo de docilização dos corpos. O que se pretende aqui é demonstrar apenas a peculiaridade desses discursos religiosos, no interior de uma teia discursiva que é muito maior, e que atravessa todo o tecido social.
Um segundo nível, especialmente relacionado ao anterior, diz respeito à formação especifica dos quadros pastorais das diferentes comunidades religiosas. Embora eles estejam muito próximos do nível capilar acima esboçado, sua peculiaridade consiste no fato de que se trata aqui da formação específica dos agentes pastorais. A nosso ver, esse nível caracteriza uma estratégia de dominação dos corpos mais presente no contexto católico. Docilizar os corpos e a sexualidade, esvaziando-os de sua potência ética, significa, entre outras coisas, formar pessoas competentes para operacionalizar essa estratégia específica de poder. Um exemplo pontual poderia ser dado com o documento do Vaticano Instrução sobre os critérios de discernimento vocacional acerca das pessoas com tendências homossexuais e de sua admissão ao seminário e às ordens sacras, analisada magistralmente por Durval Muniz de A. Júnior, e adjetivado por este autor como uma forma de “pastoral do silêncio”.
Um terceiro e último nível seria aquele que encontramos mais explicitamente representado por atores religiosos ligados ao campo evangélico, em que a plataforma política serve como base para o exercício do poder sobre os corpos. O Poder Legislativo brasileiro, como é amplamente sabido, tem tido nos últimos anos ampla presença de atores cuja representação política está explicitamente identificada com os interesses de certas instituições religiosas, mormente das igrejas evangélicas. A participação política de tais atores privilegia os temas ligados ao corpo e à sexualidade, não propositivamente, mas como forma de contenção às políticas sociais voltadas para a diversidade sexual. Esse nível, a nosso ver, necessitaria de uma problematização especial, pois se vincula com as questões do caráter laico do estado. Ele se diferencia dos dois níveis anteriores por sua abrangência social, pois implica a imposição de certas visões religiosas particulares acerca do corpo e da sexualidade para o todo social, marcado pelo pluralismo e pela heterogeneidade.
É importante apontar para a base heteronormativa presente em todos os níveis de controle sobre o corpo aqui esboçados. Cada um deles, a nosso ver, e ao seu modo, estão vinculados ao “dispositivo de sexualidade” que Foucault descreveu no primeiro volume de sua História da sexualidade. Descrever a relação entre esses níveis, e a relação de todos eles com os processos de normalização do corpo e da sexualidade levados a cabo por outros discursos e outras instituições sociais laicas, é o desafio que estamos propondo em nossa pesquisa de mestrado. 

Finalmente, como Foucault sugere, nosso estudo dessas relações de poder não se dá na perspectiva da repressão, da violência ou da imposição, mas se identifica com as teorizações que tomam o poder como força produtiva e positiva. Uma das perguntas fundamentais que tentaremos responder, portanto, seria a seguinte: que potência de vida é reclamada por esse tipo de poder religioso sobre os corpos? Consequentemente, precisaríamos perguntar: que relações esse poder religioso sobre os corpos teria com o biopoder, enquanto modalidade de poder cuja pretensão é maximizar a potência da vida? 

terça-feira, 30 de outubro de 2012

GONZAGÃO, GONZAGUINHA E O EVANGELHO


Certamente, uma das maiores belezas do Nordeste está na história do seu povo. Além da música, do artesanato, da culinária, da poesia, a beleza do nordeste está espalhada nas incontáveis biografias anônimas, que nunca se tornarão filme ou livro. Mas a história de Luiz Gonzaga, o Rei do Baião, e de seu filho Gonzaguinha, retratada no filme Gonzaga: de pai para filho, é dessas que nos forçam a pensar na nossa própria vida.
No Sermão do Monte, Jesus afirma que “onde estiver o nosso tesouro, ali estará o nosso coração” (Mt 6,21). Em Marcos 8,36 Jesus indaga a seus discípulos perguntando-lhes: “que adianta ao homem ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma?” Mas, o que tudo isso tem a ver com Gonzagão e Gonzaguinha? Sem querer contar o filme, e estragar seu o prazer em assisti-lo, eu diria que saí daquela sala de cinema com as seguintes reflexões:
Quais são os bens mais preciosos na vida de uma pessoa? Onde está o nosso coração? Nós hoje vivemos num tipo de sociedade onde o consumo, o reconhecimento, o prestígio social tornaram-se deuses a quem as multidões se devotam. Valores básicos e fundamentais como a família, o companheirismo conjugal, o tempo com os filhos, estão ficando cada vez mais nos últimos degraus da escala de prioridades na vida de muita gente. Quais são os custos disso?
Gonzaga: de pai para filho é uma belíssima narrativa, que, semelhante a algumas narrativas bíblicas, fala de amor, de superação, mas também dos dilemas e angústias que marcam de um jeito ou de outro a vida de todo mundo. Mas acho que, sobretudo, se trata de uma narrativa que fala de escolhas. O adágio do povo diz sabiamente que “a vida é feita das escolhas que fazemos”. Mas saber disso ainda é pouco!
O que a história de Gonzagão e Gonzaguinha tem a ver com o Evangelho? Como o Evangelho, ela nos lembra de que nossas escolhas têm consequências, e que realmente não vale a pena ser “rei de nada”, se perdemos o que é mais fundamental nessa vida...
* Texto do boletim dominical da Igreja Batista do Pinheiro (Maceió-AL), para o dia 04/11/2012.

sábado, 13 de outubro de 2012

E POR FALAR EM “KIT GAY”...


Já que o chamado “kit gay” – cujo nome técnico definido pelo Ministério da Educação havia sido Kit Anti-homofobia – voltou a ser assunto nas mídias do país, por causa da estapafúrdia ameaça de Silas Malafaia de “arrebentar em cima de Fernando Haddad” no segundo turno da disputa pela prefeitura de São Paulo, eu gostaria de trazer outra vez uma questão que considero respondida insuficientemente: se vivemos em um estado laico e não-confessional, como é possível que diretrizes religiosas possam interferir nas políticas públicas educacionais do país?
Uma tentativa de resposta que deve ser corrigida apresenta o argumento de que “o estado é laico, mas a nação é cristã”. Na verdade, o estado é laico, mas a nação é plural. A maioria cristã é uma realidade óbvia e inquestionável. Mas o reconhecimento dessa maioria não deveria ser utilizado como o fim do debate pela imposição da mesma. Isso não seria uma democracia, mas uma teocracia. O reconhecimento da maioria cristã deveria abrir a discussão de como é possível em um regime democrático, conciliar os interesses da maioria com as demandas sociais de grupos minoritários, sem desprezar esses últimos; ou ainda, como atender à legitimidade das demandas sociais dos grupos minoritários sem atribuir-lhes privilégios sobre o todo. Em síntese, o reconhecimento da maioria cristã deveria abrir o debate acerca de como o estado laico poderia, em meio a interesses e demandas sociais tão diversas, garantir o direito de plena cidadania a todos.
A rigor, diretrizes religiosas não devem conduzir as dinâmicas estatais em arranjos laicos e não-confessionais. Todavia, isso não quer dizer os atores religiosos estão impedidos de participar da arena política nacional nesses contextos. Enquanto cidadãos do país, e enquanto pertencentes ao enquadre multicultural que marca a sociedade, é legítimo que atores religiosos participem ativamente da condução política do país. Essa afirmação, entretanto, nos coloca diante da seguinte questão: como conciliar a presença e os interesses de atores religiosos na esfera público-política em um estado laico?
Alguns intelectuais, como Jürgen Habermas, por exemplo, defendem a ideia de que deve haver por parte de tais atores religiosos uma espécie de “tradução da linguagem” e dos interesses religiosos para uma linguagem política e secular. Habermas defende ainda que tais atores religiosos partam de alguns pressupostos cognitivos, que são basicamente dois: a aceitação da pluralidade cultural da nação, e a aceitação da neutralidade do estado em termos ideológicos. Portanto, os atores religiosos não estão vedados de participarem da arena público-política do país. A questão a ser pensada é como se dá tal participação. Dar contribuições específicas, direcionadas para problemas políticos e em linguagem secular, é muito diferente de conduzir o país empunhando um cetro cristão, ou qualquer outro cetro religioso.
Em outra oportunidade, já manifestamos nossa discordância da noção de “estado neutro”. No lugar dessa noção, propomos a ideia de um estado não-confessional. A laicidade dos estados modernos quer dizer que os mesmos deixaram de ser normatizados por valores religiosos. Contudo, isso não significa neutralidade. Perguntamo-nos: a partir de então, quem informa ideologicamente as ações dos estados modernos? Em nossa opinião, essa resposta deve apontar para duas instâncias principais: os saberes científicos e o direito. E aqui estaria o link para voltarmos a pensar no chamado “kit gay”, proposto à época pelo então Ministro da Educação Fernando Haddad.
A ideia de introduzir materiais educativos com pretensões anti-homofóbicas nas escolas públicas brasileiras se radica em dois elementos. Primeiro, no reconhecimento de que a educação sexual que se transmite na educação pública atualmente estaria vinculada a uma matriz cultural que é religiosa e cristã. O simples reconhecimento desse fato seria problemático para a educação a ser oferecida por um estado laico e não-confessional. Segundo, a pressuposição de que a homofobia, que se expressa desde níveis mais cotidianos enquanto desqualificação, até níveis mais duros como os assassinatos motivados por questões de preconceito sexual, não são apenas problemas individuais, mas estruturais, que passam pela educação formal. A violência individual seria a ponta de um processo muito maior, que contemplaria também a educação formal.
Michel Foucault e Judith Butler são exemplos de autores que trabalham com a noção de matriz cultural. Em suas pesquisas, o Cristianismo tem lugar central enquanto matriz cultural presente na formação dos saberes científicos (médico, psicológico, psiquiátrico etc.), e também nas concepções de gênero que balizam grande parte das atuais relações sociais. A escola moderna tem sido um dos ambientes estratégicos mais eficazes para que tais saberes tornem-se forças normalizadoras, contribuindo com a naturalização das noções de normal e patológico, neste caso, no campo da sexualidade.
Uma vez que se reconhece o lugar da escola nas estratégias que normalizam e naturalizam concepções de gênero cuja matriz é religiosa e cristã, como não falar sobre isso na educação promovida por estados laicos e não-confessionais? Uma vez que se reconhecem os problemas ligados ao binarismo normal versus patológico relacionados à sexualidade, traduzidos na violência contra o “patológico” e a necessidade de sua eliminação, como não trazer essa discussão para a escola não-confessional? Uma vez que se reconhece que a homofobia, seja em nível simbólico ou concreto, não é apenas um problema de indivíduos, mas um problema sistêmico que envolve inclusive o tipo de educação sexual nas escolas e o silêncio delas acerca disso, como não levar para elas esta discussão?  
A meu ver, a introdução de materiais educativos nas escolas públicas voltados para o combate à discriminação e à violência sexual, não pode ser reduzido à discussão de convicções dogmáticas sustentadas por grupos religiosos. Ela deveria ser pensada na perspectiva da “governamentalidade”. Com esse termo, Foucault falava acerca de uma nova arte política inaugurada na Modernidade, que tem a população como seu objeto. Essa governamentalidade tem por função regular da melhor maneira possível a relação entre pessoas e coisas, a fim de maximizar os efeitos produtivos de tal relação. Porém, mais do que isso, trata-se aqui de maximizar da melhor forma possível a relação entre pessoas e pessoas. E em minha opinião, a violência sexual – assim como a violência contra mulheres, crianças e idosos, o racismo etc., – é um tema da ordem da segurança pública que precisa ser trabalhado desde os primeiros anos da educação formal.
Portanto, é função dos estados modernos (laicos e não-confessionais), garantir os diferentes modos de existência humana, e zelar por sua plena cidadania. Também é sua função pôr em ação todos os meios possíveis que garantam a segurança de seus cidadãos. Esses meios não devem se reduzir aos dispositivos da repressão e das sanções penais, mas devem se estender aos dispositivos de prevenção, que passam pela construção de uma cultura de paz. A escola, nesse sentido, continua sendo um lugar estratégico para tudo isso. As igrejas, quaisquer que sejam, deveriam aplaudir e se unir a tais iniciativas que corroboram o respeito às diferenças e a convivência pacífica entre as pessoas. Afinal, estas coisas lembram em muito os ideais daquele a quem uma parte das igrejas chamam de Senhor.

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

DECÁLOGO CONTRA O "VOTO DE CAJADO"



Dedicado especialmente aos amigos pastores
I.
Não usarás do vosso poder pastoral para guiar a consciência dos fiéis, como um rebanho de idiotados, em benefício de qualquer candidato. 
II.
Não usarás as Sagradas Escrituras de forma capciosa, a fim de legitimar a candidatura de uns, e demonizar a candidatura de outros. 
III.
Não venderás a tua consciência a candidato algum, em troco de recompensas materiais feitas à tua congregação. 
IV.
Não permitirás que teu púlpito deixe de ser plataforma de anúncio do Evangelho, para ser plataforma de propaganda partidária e eleitoreira, em tempo algum. 
V.
Não coagirás nem ameaçarás teus pastoreados que manifestarem inclinações políticas diversas das tuas. 
VI.
Reforçarás em todo tempo a total liberdade de consciência de teus pastoreados, em matéria de religião e política, ou em qualquer outra coisa. 
VII.
Instigarás tua congregação à ampliação sempre constante da consciência política crítica e livre, antes, durante e depois das eleições. 
VIII.
Auxiliarás aos teus pastoreados a perceberem que a ação política é muito maior que o voto, estendendo-se a ações individuais, associativas, comunitárias, de movimentos sociais, e que tais ações são tão potentes quanto o voto para as mudanças que todos desejam para a pólis. 
IX.
Conduzirás tua congregação de um modo que a mesma seja politicamente pertinente na comunidade onde está inserida. 
X.
Terás vergonha na cara em todo o tempo, também nos tempos de eleição.

Amém, irmão?

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

POLÍTICA E RELIGIÃO EM DEBATE


Aproximações críticas à filosofia política de Jürgen Habermas

Precisamos todos, religiosos e não-religiosos, mais do que nunca, pensar em religião.
O afirmo não apenas na condição de pastor e teólogo, mas como um cidadão qualquer que tem interesse nos rumos políticos do meu país. Parto da intuição de que vivemos um momento em que a religião nunca esteve tão presente nos rumos políticos de nossa sociedade. A eleição presidencial de 2010 alertou-nos para o fato de que não se pode mais negligenciar o poder de mobilização política do discurso religioso. A crescente “vontade de representação” religiosa nos âmbitos da política de estado, nas esferas municipal, estadual e federal, também aponta para essa tendência. Outro exemplo pode ser visto nos atuais embates que põem em confronto, de um lado, certas minorias sociais engajadas na luta pelo reconhecimento da diversidade sexual como um Direito Humano, e do outro lado os interesses de uma “bancada religiosa” no Congresso Nacional.
Esses exemplos apontam para aquilo que alguns estudiosos da pós-modernidade têm chamado de “o retorno do religioso”. Essa expressão – que parece equivocada, uma vez que a religião sempre esteve presente como fenômeno humano e social – deve ser entendida como o retorno da influência do discurso religioso na esfera pública e política não somente no Ocidente, mas também em outras regiões do mundo. Para Jürgen Habermas (2007, p. 129), “desde a virada de 1980/90, tradições religiosas e comunidades de fé adquiriram, inesperadamente, importância política. Temos em mente, acima de tudo, os tipos de fundamentalismo que surgem, não somente no Oriente Médio, mas também nos países da África, no Sudeste da Ásia e no subcontinente da Índia. Eles inserem-se, eventualmente, em conflitos nacionais e étnicos constituindo, hoje em dia, uma espécie de incubadora de unidades descentralizadas de um terrorismo que opera a um nível global, opondo-se aos melindres produzidos pela civilização ocidental tida como superior. Mas há outros fenômenos sintomáticos”.  
No que diz respeito à formação teórica de quem quer enfrentar o problema do papel político das instituições religiosas nos estados democráticos-liberais, eu creio que o pensamento do filósofo Jürgen Habermas seja muito proveitoso. Creio também que uma apropriação crítica de algumas de suas intuições pode oferecer material proveitoso para compreendermos isso que ele mesmo chamou de “outros fenômenos sintomáticos” da relação entre os discursos religiosos e a política de estado, entre os quais aqueles exemplos que citamos no primeiro parágrafo[1].
Nesse debate, Habermas busca sustentar uma posição que considero pouco comum à média da discussão universitária, quando relacionada aos papéis do discurso religioso no âmbito das políticas de estado. Sua argumentação, em primeiro lugar, consiste em considerar legítima a presença do discurso religioso na arena dos debates políticos que constituem as dinâmicas dos estados democrático-liberais. Conforme o pluralismo cultural que caracteriza as democracias ocidentais, o discurso religioso não poderia ser negado a priori, pelo simples fato de ser religioso, como uma voz válida na composição das políticas públicas geridas pelo estado. Mais do que isso, para Habermas “o estado liberal não pode transformar a exigida separação institucional entre religião e política numa sobrecarga mental e psicológica insuportável para os seus cidadãos religiosos” ([grifos no original] p. 147).
Nesse aspecto, a média da discussão universitária que tende a situar-se como polo antitético aos fundamentalismos religiosos, deixa escapar a percepção de um potencial interessante presente em certos discursos religiosos que historicamente ofereceram enormes contribuições para avanços políticos que beneficiaram o todo de certas sociedades modernas. O próprio Habermas oferece-nos o interessante exemplo das raízes religiosas presentes nos movimentos pacifistas, de luta pelos direitos humanos e anti-segregacionistas representados pela figura do pastor batista Martin Luther King Jr. nos Estados Unidos. A partir desse exemplo, Habermas conclui que “no quadro dos Estados constitucionais estabelecidos, as igrejas e comunidades religiosas em geral preenchem funções que não são destituídas de importância para a estabilização e o desenvolvimento de uma cultura política liberal” (p. 141).
Obviamente, a legitimidade e a participação de vozes religiosas na construção das políticas públicas que interessam aos estados democrático-liberais devem cumprir certos requesitos prévios, a fim de que essa presença religiosa não se torne uma espécie de ancoragem política para a implantação compulsória de cosmovisões particulares sobre o todo da sociedade[2]. Habermas chama esses pré-requesitos de “pressuposições cognitivas”, que devem estar atreladas a programas de aprendizagem subjacentes à auto-reflexão proporcionada pela própria religião. Entre estas pressuposições cognitivas estariam o reconhecimento do quadro pluralista que marca nossas sociedades desde a instauração da Modernidade, além do reconhecimento do lugar de neutralidade do Estado no que diz respeito às visões de mundo, no seu papel de gestor da sociedade. Embora esses critérios sejam primariamente referidos como condições de possibilidade para o diálogo produtivo dos cidadãos religiosos junto aos cidadãos seculares, Habermas reconhece que esse é um movimento que exige pressuposições cognitivas também por parte dos cidadãos não-religiosos.
Algumas questões podem aqui ser problematizadas e aprofundadas. Uma delas é a compreensão de “neutralidade de visões de mundo” que Habermas crê caracterizar os estados democrático-liberais. Não estamos muito convictos desta neutralidade. Compreendemos que o construto “visões de mundo” não pode ser referido apenas à religião. O mundo moderno, que segundo Max Weber é o mundo em processo de desencantamento das cosmovisões religiosas, é aquele que faz a passagem de uma visão de mundo monolítica e hegemônica para visões de mundo fragmentadas e plurais, oferecidas por outras instâncias criadas pela nossa cultura. O Estado Moderno, portanto, não é neutro. Se ele não esposa uma compreensão de mundo e de ser humano nos moldes dogmáticos da religião, ele o faz com base em outras instâncias normativas que lhe oferecem estas visões. Em grande parte, o conhecimento científico – mas não somente ele – tem oferecido esses elementos normativos que guiam a ação dos estados. As próprias agências fomentadoras de produção científica, amparadas pelo Estado, seriam um exemplo eloquente. Seria preciso compreender, portanto, que a ciência além de não ser neutra, constitui-se também como uma visão de mundo, ainda que de natureza bastante diferente das cosmovisões religiosas.
E é justamente esta crítica feita ao pensamento de Habermas que suscita, a meu ver, um elemento interessante para a discussão do problema do papel da religião na formação das políticas públicas dos estados democrático-liberais. Vistas ligeiramente, as reações político-ideológicas (acadêmicas, científicas etc.) frente à participação das comunidades religiosas na formação dessas políticas podem parecer apenas reações a fim de proteger a laicidade do estado democrático, e conter o retrocesso a regimes políticos pautados por noções religiosas que cerceiam a liberdade de expressão e a pluralidade cultural trazida pela Modernidade. Contudo, tais reações nunca são apenas isso. Elas são ao mesmo tempo lutas pelo monopólio normalizador, requerido pela ciência na Modernidade. O discurso da neutralidade do Estado, de certo modo, serve eficazmente à sustentação desse monopólio normalizador requerido pelos diferentes saberes científicos atrelados à estrutura do Estado. Assim, essas reações também são lutas para que o discurso religioso, qualquer que seja, permaneça circunscrito a um raio de abrangência que se confine à dimensão privada da vida.
Desse modo, compreendemos que a grande contribuição oferecida por Habermas, especificamente no tópico que recortamos em sua obra, aponta para o desafio de pensarmos na radicalidade do pluralismo cultural que marca nosso tempo, e que necessitaria estar presente tanto no âmbito privado da vida moderna, quanto no âmbito público-político relativo à condução do Estado. Exorcizar os fantasmas religiosos que monopolizaram a dimensão público-política de outrora não significa cercear as comunidades de religiosas de uma vez por todas da arena público-política em nossas sociedades. Isso requer uma capacidade autocrítica de ambas as partes do debate: dos religiosos e dos não-religiosos. Afinal, ninguém deseja substituir os fundamentalismos religiosos por outros, sob novas máscaras.

Referência
HABERMAS, Jürgen. Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007


[1] Estou fundamentando essa argumentação especialmente no ensaio do autor intitulado Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos.
[2] De nossa perspectiva, a atuação da bancada religiosa no Congresso Nacional brasileiro, que em nome dos valores da “família tradicional” tem funcionado como uma espécie de barreira de contenção para a implementação das políticas públicas que reconhecem a diversidade sexual como um Direito Humano, oferece-nos um exemplo dessa perigosa tendência da manutenção compulsória de certas visões de mundo particular sobre uma sociedade plural como a que vivemos.

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

PROTESTANTISMO, POLÍTICA E SEXUALIDADE


Breve diálogo com Religião e repressão de Rubem Alves

Protestantismo e repressão (Rubem Alves, 1978) – rebatizado pelo autor em 2005 de Religião e repressão – talvez tenha sido a primeira e grande análise acerca do protestantismo brasileiro (embora consista realmente num estudo de caso da ideologia da Igreja Presbiteriana do Brasil). Dentre os numerosos aspectos que marcam essa análise, compete-nos destacar a forma como Rubem Alves tratou das questões relacionadas à moral sexual do protestantismo brasileiro àquela época (p. 208-220). Entendemos que no curso dos mais de 30 anos que nos separam dessa análise, muitas coisas mudaram. Mas entendemos que ela nos ajuda como ponto de partida para problemas que em nosso tempo somente se avolumaram.
Destacamos três elementos na crítica de Alves que consideramos pertinentes à época, mas que foram profundamente modificados desde então.
1. Primeiro, Alves circunscreve sua análise da moral sexual do protestantismo brasileiro às questões relacionadas com os limites do ordenamento de uma certa conjugalidade tradicional, relacionada especialmente à vida privada. Ele nos diz: “A moralidade protestante é regida por um princípio extremamente simples e que não permite ambiguidades: O sexo é permitido se, e somente se, ocorrer dentro do casamento. Atos de natureza sexual e relações sexuais antes do casamento ou que, após o casamento, transgridem os seus limites, são terminantemente proibidos. São pecados que devem ser punidos” (Alves, 2005, p. 209 [grifos no original]).
Sua análise consiste em relativizar um tipo de espiritualidade marcada pela repressão às possibilidades de realização do corpo, que, segundo o autor, tanto o protestantismo quanto o catolicismo teriam herdado de uma tradição agostiniana. Tal tradição seria marcada, sobretudo, pela circunscrição da sexualidade aos papéis reprodutivos. Além disso, segundo Alves, a moral sexual do protestantismo, até então, conformava-se às imposições e às restrições civis impostas ao casamento, com destaque ao impedimento do divórcio.
Gostaríamos de destacar que Rubem Alves articula sua crítica em diálogo com um quadro ideológico muito peculiar à época. Percebe-se, por exemplo, que não há na sua análise uma reflexão acerca das implicações políticas da moral sexual protestante. Trata-se de uma crítica que se conforma à sexualidade enquanto uma dimensão privada da vida, sem efeitos sobre o ordenamento público ou político. Cremos que atualmente seja impossível fazer uma crítica da moral sexual protestante no Brasil sem pensar nos seus possíveis efeitos no ordenamento público ou político. Afirmamos isso porque em nossa época a moral sexual religiosa deixou de ser assunto circunscrito à vida privada, assumindo papel central em embates políticos na esfera governamental. Um dos grandes desafios desta reflexão atual consiste em pensar na relação entre a laicidade do Estado, a liberdade de expressão e os direitos sexuais e reprodutivos de certas minorias. Em outros termos, hoje precisaríamos nos perguntar sobre que efeitos a imposição da moral sexual protestante, feita a partir das plataformas da política de Estado, pode produzir sobre minorias que encaram a diversidade sexual como um Direito Humano.
2. Em segundo lugar, gostaríamos de destacar outro aspecto da crítica de Alves à moral sexual do protestantismo brasileiro naquele momento, que diz respeito ao silêncio deste em face da sexualidade. Segundo Alves, por conceber o sexo somente como “concessão” e como “permissão”, ligados à função reprodutiva dos seres humanos e a uma antropologia de “seres caídos”, o protestantismo brasileiro produziu como consequência um enorme silêncio acerca da sexualidade, contrariando até mesmo certas tradições bíblicas (Cantares de Salomão, em especial) que postulam o prazer sexual como graça de Deus. Para Alves (2005, p. 216), “o silêncio protestante sobre o sexo é a expressão da vergonha, no nível da linguagem. O sexo se diz no escuro e em segredo, com um pedido de perdão”.
Certamente, não se pode atualmente sustentar a tese do silêncio protestante acerca do sexo. Pelo contrário, testemunha-se aquilo que Foucault (2010) chamou de “incitação aos discursos sobre o sexo” no seio desta comunidade, com uma certa profusão. Os recentes embates que relacionam a moral sexual protestante, a política de Estado e os direitos sexuais e reprodutivos requeridos pela comunidade LGBT, vêm produzindo uma avalanche de discursos, pronunciamentos, publicações, fóruns, sermões, posicionamentos institucionais, articulações políticas, coalizões denominacionais, em torno da necessidade da afirmação da “verdade dos sujeitos”, que passa pela verdade acerca do sexo. Tem-se a impressão de que o protestantismo nunca falou tanto do sexo como neste momento.
Assim, consideramos necessário fazer a transição de uma crítica que se pautava pela denúncia das questões acerca do “silêncio protestante” sobre a sexualidade, para uma crítica das questões acerca desta novíssima avalanche de discursos que tentam normatizá-la. Nesta tarefa, temos optado pelas sugestões metodológicas de Foucault (1979) quanto ao estudo das relações de poder. Portanto, antes de pensar nestes discursos protestantes acerca da sexualidade unicamente como dispositivos de repressão, compete-nos pensar em seu potencial de produtividade. Não que os problemas da repressão, como focalizados por Alves em sua crítica, percam a importância. Contudo, reduzir o papel destes discursos aos aspectos meramente repressivos pode nos fazer perder de vista um campo de inteligibilidade de outros aspectos igualmente importantes da questão. Afinal, como sugere Bauman (2005), o fundamentalismo religioso, antes de ser o reavivamento de uma espiritualidade arcaica, deve ser encarado como uma racionalidade alternativa, num contexto de profunda fragmentação de certezas existenciais.
3. Enfim, gostaríamos de destacar um último elemento da crítica de Alves à moral sexual do protestantismo brasileiro, que diz respeito a uma impossibilidade sua à época, mas novamente imprescindível em nosso momento. A crítica de Alves à moral sexual daquele protestantismo está circunscrita aos limites da heteronormatividade. É bem verdade que Alves busca ampliar sua crítica às amplas possibilidades do corpo, denunciando os aspectos repressores da moralidade sexual protestante. Para ele, não somente o protestantismo, mas “toda religião que, em nome de uma ordem espiritual, impõe sobre o corpo um regime de sistemática repressão, tende a produzir personalidades neuróticas” (Alves, 2005, p. 220). No entanto, falta-lhe a nomeação desses sujeitos concretos que vivenciam a repressão, de tal modo que sua crítica deixa-nos com a impressão de que é o corpo heterossexual que, unicamente, sofre os efeitos neurotizantes daquela moral sexual.  
Hoje é impossível empreender qualquer crítica à mesma moral sexual protestante restrita aos limites heteronormativos. Isso porque aquela “avalanche discursiva” do protestantismo acerca da sexualidade, que apontamos anteriormente, é produzida tendo como base a afirmação da heteronormatividade e da correlata negação de quaisquer outras possibilidades heterodivergentes. Portanto, uma crítica que considere o corpo como horizonte de dominação discursiva, vai precisar dar nome a esses corpos. Assim, ela poderá contribuir nas lutas atuais e nas táticas políticas de resistência à dominação dos corpos alheios, quer seja na esfera política, quer seja esfera na religiosa.

Trabalhos citados
Alves, R. (2005). Religião e repressão. São Paulo: Teológica
Bauman, Z. (2005). O mal-estar na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Foucault, M. (1979). Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal
Foucault, M. (2010). História da sexualidade: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, vol. 1

terça-feira, 31 de julho de 2012

APONTAMENTOS SOBRE A DISCUSSÃO DO RELIGIOSO EM FOUCAULT


O tema da religião atravessa de diferentes formas quase todo o trabalho de Michel Foucault. Talvez seja possível dizer que em seus estudos da década de 1970 – que alguns identificam como a fase genealógica de sua obra – os aspectos ligados à religião se explicitem com mais força em suas análises. Isso porque nesta fase Foucault está interessado naquilo que chamava de genealogia do sujeito moderno. Este trabalho foi sendo realizado de modo fragmentário, em pesquisas muito independentes, que envolveram as temáticas da sexualidade, da loucura, da delinquência, da formação da biopolítica, entre outras.
Foucault sempre teve no Cristianismo uma das principais matrizes culturais desse sujeito moderno ocidental. Portanto, uma genealogia do sujeito moderno ocidental não poderia prescindir de uma análise atenta do lugar do religioso nesse processo. Por exemplo, Foucault faz as modernas tecnologias de exame criadas pela psiquiatria e pela psicologia derivarem das técnicas de confissão cristã, como forma de governo das almas e das condutas.
Na última fase de sua produção intelectual – que alguns chamam de fase da ética– o tema da religião também está bastante presente. O seu retorno à moral sexual dos gregos, como possibilidade da construção de uma estética da existência e do cuidado de si, é feito em constante diálogo sobretudo com autores cristãos da Patrística. Foucault vai tentando mostrar aí tanto as rupturas quanto as continuidades que o Cristianismo primitivo possuiu em relação à antiguidade grega. Seu intuito não é um retorno que reproduza o passado dos gregos, mas a demonstração do percurso histórico em que as questões relacionadas sobretudo à sexualidade e ao cuidado de si foram sendo forjadas no Ocidente.
Para nossos interesses, desejamos retomar um dos principais conceitos foucaultianos relacionados à temática religiosa, justamente o conceito de poder pastoral. Foucault desenvolveria esse conceito mais enfaticamente no cursoSegurança, território e população de 1977, no contexto das discussões acerca da nova arte de governar, que ele chamou de governamentalidade. Por governamentalidade, Foucault entendia os novos modelos de administração de Estado que foram aparecendo a partir do século XVI, principalmente em oposição àquele modelo representado pelo Príncipe, de Maquiavel. Este modelo de administração política se radica na obrigação que o soberano tem de preservar seu lugar de soberania, e de salvaguardar um território da ameaça alheia. Foucault identificará uma literatura de resistência à Maquiavel que pensará a política a partir de outros parâmetros, não mais como estratégia de fixação do poder soberano, mas sobretudo como arte de governar, conduzida a partir dos modelos do governo de si (moral) e da família (economia).
Esta arte de governar que se busca preconizar a partir de então se radica na administração de homens e coisas, e nas mútuas relações entre estes, muito mais do que na simples perpetuação do poder soberano ou da proteção de um território. É esta arte de governar homens e coisas, e de maximizar os efeitos produtivos dessa relação, que Foucault chamará de governamentalidade, e que caracterizará uma nova economia política na Modernidade. No entanto, para Foucault, é nas antigas formas de conduta religiosa presentes na pastora cristã que essa governamentalidade se inspirará. Para Foucault, o poder pastoral teria se constituído como uma primeira possibilidade para uma forma de governo individualizante e totalizante, ao mesmo tempo, como ainda não se conhecia antes deste.  
Foucault tratou de sumarizar aqueles aspectos que considerava serem os mais característicos desse poder pastoral, quais sejam:
1.    Seria uma forma de poder cujo objetivo final é assegurar a salvação individual no outro mundo;
2.    Ele não seria apenas uma forma de poder que comanda; ele deve também estar pronto ao sacrifício pela salvação do rebanho;
3.    Ele seria uma forma de poder que não cuida apenas da comunidade como um todo, mas de cada indivíduo em particular, durante toda sua vida;
4.    Essa forma de poder não poderia ser exercida sem o conhecimento da mente das pessoas, sem explorar suas almas, sem fazer-lhes revelar os seus segredos mais íntimos; seria um saber e uma forma de condução da consciência.
Fica óbvio que Foucault está caracterizando um poder de tipo religioso, tornado paradigmático na Idade Média, materializado na estrutura eclesial cristã. Este é um tipo de poder centrado na salvação, e que faz gravitar em torno disto todos os aspectos da vida, sejam eles de ordem econômica, jurídica e política como um todo. Trata-se de uma forma paradigmática de poder que ainda não conhece nenhum nível das modernas dicotomias entre sagrado e profano, e em que o sagrado é o liame de todas as relações sociais.
Foucault defenderá a interessante tese de que o Estado moderno representa uma espécie de poder pastoral secularizado, mundanizado. Assim como o poder pastoral havia sido a matriz da produção da verdade e da verdade dos próprios indivíduos, o Estado moderno, segundo Foucault, poderia ser considerado a matriz moderna dos processos de individualização, como uma nova forma de poder pastoral. Essa mutação deu-se a partir de três grandes modificações: (1) no lugar de uma salvação do mundo, transcendente, espiritual, o Estado moderno buscou produzir uma salvação no mundo, imanente, como saúde, bem-estar, segurança, proteção contra acidentes; (2) no lugar da antiga centralidade da estrutura eclesial como centro irradiador do poder pastoral, a produção de um grande número de instituições acopladas como aparelhos de estado, difundidas por todo corpo social; (3) a produção de dois polos sobre os quais se produziriam conhecimentos sobre o homem – um globalizador e quantitativo, concernente à população, e o outro analítico, concernente ao indivíduo.
Afirmar que o poder pastoral se laicizou não significa dizer que ele desapareceu, mas que foi reelaborado no interior dessa nova racionalidade política que ele chama de governamentalidade, enquanto arte de governar, que marca um processo iniciado na Modernidade e que culmina na formação das democracias nacionais da atualidade. A entrada da vida biológica das populações nos cálculos políticos, a adoção do modelo da peste caracterizado pela invenção de mecanismos de vigilância e de assepsia que recobririam todo o corpo social, em oposição ao modelo da lepra caracterizado pela exclusão dos doentes, e o aparecimento da população como um problema de governo, se constituirão como as condições de possibilidade para o surgimento de uma biopolítica. Como diria Agamben, o estado assume a responsabilidade de “dar forma à vida dos povos”.
Embora tenha apontado para essa ruptura paradigmática no exercício do poder na esfera macro, Foucault não perdeu de vista as formas minúsculas, capilares, menores, cotidianas com que o poder pastoral continuou a operar. Como exemplificamos acima, em seu estudo acerca da produção do dispositivo de sexualidade, ele confere enorme relevância ao papel que as técnicas de confissão cristã tiveram no subsequente aparecimento das tecnologias normalizadoras das ciências humanas, sobretudo da psiquiatria e da psicologia, enquanto formas de invenção de uma verdade do sujeito. É importante pontuar que Foucault restringiu essas técnicas pastorais de governo das almas e de direção de consciência à análise dos modelos vigentes nos países católicos. O Protestantismo, em sua oposição às mediações sacerdotais entre o fiel e seu Deus, fez surgir um modelo de confissão diferente, em que o fiel é colocado apenas diante de si mesmo como perscrutador da consciência. Ele é incitado a confessar unicamente a si mesmo, diante de Deus, cada elemento que traz na consciência.
O poder pastoral, em sua dimensão capilar, minúscula, cotidiana, permanece aí inalterado, como um saber de tipo normalizador. Não queremos pensá-lo dicotomicamente em relação àquilo que estamos chamando de “poder pastoral reeditado”. Seguindo as intuições acerca da positividade do poder, como postulada por Foucault, diríamos que o poder pastoral, ontem e hoje, é também um poder produtivo, que não se exaure nos papéis repressivos, castradores, paralisantes. Este também é um tipo de poder formativo, produtivo. Talvez se possa afirmar que a popularidade cada vez mais crescente do poder pastoral na pós-modernidade esteja ligada justamente aos seus papéis produtivos e formativos.
Enquanto a Modernidade proporcionou o aparecimento de uma nova configuração das estruturas de poder político, em que ganha relevo uma nova arte de governar centrada no estado (mas não subsumida a ele), ela também assistiu a uma concentração cada vez maior do poder pastoral para a esfera privada da vida. Atualmente, assistimos a uma ocupação cada vez maior do discurso religioso na dimensão pública da vida. A presença religiosa na plataforma política ocorre pautada em um novo discurso que toma a vida das populações como objeto de governo e de controle. Desta forma, os temas dominantes da política religiosa podem ser resumidos às questões bioéticas relacionadas ao aborto e aos demais direitos reprodutivos, e às discussões acerca da diversidade sexual enquanto um direito humano. Esse discurso religioso pretende ser uma forma de pastoral das almas, embora seus efeitos concretos incidam sobre os corpos desses públicos-alvo. 

terça-feira, 24 de julho de 2012

NUNCA QUIS TANTO SER LIBERAL


Palavras são armas. Em sua aula inaugural no Collège de France, em dezembro de 1970, Michel Foucault dizia que o discurso, longe de ser um espelho bem polido para fazer refletir a realidade, é uma forma de “violência que fazemos às coisas”. Outra tese interessante desse filósofo é aquela que diz que o discurso “constrói as realidades acerca das quais se pronuncia”. Tese inquietante. Tendemos a pensar que o discurso é aquilo que usamos para descrever a realidade, defini-la, categorizá-la, como se houvessem referentes estáticos no mundo, aguardando nosso pronunciamento. Não. A palavra, de diferentes formas, é uma forma de tecer o real. Nas relações de poder do cotidiano, ela é uma das formas usuais com as quais lutamos uns contra os outros.
No campo estrito das lutas morais de nosso cristianismo, “liberalismo” tem sido uma dessas palavras-arma. Não descreve realidades, mas as cria. Cria sujeitos perigosos, devassos, de costumes frouxos. Os últimos debates acerca da relação religião/sexualidade vêm constituindo um palco aberto para a produção de novos liberais. Neste caso, liberais são aqueles que fazem concessões a um tratamento diferente daquele que tradicionalmente as igrejas vêm oferecendo às pessoas que estão fora da norma heterossexual. A palavra “liberal”, usada nesses embates, torna-se um fetiche, uma vez que é utilizada sem um mínimo conhecimento de sua história, de sua genealogia. Como uma pistola, que o sujeito utiliza sem se dar conta dos processos de sua fabricação, a palavra “liberalismo” é usada como arma para produzir sujeitos desqualificados em matéria de moral religiosa, sem que se saiba de fato o que ela é, ou como foi inventada.
Em termos teológicos, convencionou-se chamar de Teologia Liberal àquela forma de prática teológica que teve lugar no século XIX, no contexto europeu, ancorada em dois movimentos intelectuais distintos.
Chamaram-se de teólogos liberais, em primeiro lugar, àqueles estudiosos do cristianismo que se utilizaram de ferramentas do historicismo crítico inventado no século XIX, para analisar os textos bíblicos e a história eclesiástica. Dois nomes de destaque dessa tendência foram Adolf von Harnack e Albert Schweitzer. Esses teólogos pressupunham que os textos bíblicos, em sua produção histórica, obedeciam aos mesmos processos de composição encontrados em outros tipos de narrativa. Isso não significava um esvaziamento do caráter sagrado desses textos. Mas significava dizer que uma narrativa, mesmo que construída com base na fé, não está livre dos condicionamentos históricos que estão na sua base.
Em segundo lugar, chamaram-se de teólogos liberais àqueles estudiosos do cristianismo que tomaram como horizonte intelectual o idealismo histórico, principalmente aquele ligado a uma tradição hegeliana. O nome de destaque aqui é do Daniel Schleirmacher. Alguns incluem aí também os nomes de Ludwig Feuerbach e Rudolf Otto (este último mais ligado à tradição de Kant). Também afinados com as novas concepções do estudo da história, mas de base filosófica, o idealismo se estrutura na ideia do espírito universal como fonte racional de todas as produções simbólicas, incluindo as religiosas. A religião aí não perde sua aura de conhecimento sagrado, sublime, numinoso, ou mesmo revelado. Apenas é identificada como uma das maneiras com que o espírito universal se dá a conhecer. Junto com a Filosofia e a Arte, o conhecimento religioso seria uma das formas da fenomenologia do espírito.  
Do ponto de vista de sua localização geográfica e político-social, esses estudos são produções alemães, concebidos num contexto pequeno-burguês e universitário. Embora se tenha tentado vender a qualquer custo o simplismo de que o liberalismo teológico do século XIX tenha sido a razão do enfraquecimento do cristianismo na Europa, a verdade é que tais tendências liberais nunca chegaram a se popularizar, devido à sofisticação intelectual que exigiam. Ocorre com o liberalismo teológico o mesmo que ocorre com o Iluminismo. O etnocentrismo de parte dos historiadores europeus do século XX elege o Iluminismo – um movimento circunscrito à burguesia intelectual e universitária franco-germânica – como um “ciclo da mentalidade universal”. O sujeito europeu burguês é elevado à categoria de “sujeito universal”, em total desprezo aos movimentos de pensamento que ocorriam em outras partes do mundo. Trata-se aqui do próprio modo positivista de narrar a história. O que quero dizer é que, semelhantemente, o liberalismo nunca chegou ao status de paradigma teológico, a ponto de ser vinculado com a derrocada do cristianismo europeu. Esta deve ser buscada em razões mais amplas, que certamente não são monocausais. Fazer a história delas é tarefa para uma tese de doutorado...
Na maior parte das vezes em que a palavra “liberalismo” é usada hoje em nossas lutas morais envolvendo o cristianismo, o que se tem é o uso de um simulacro. Ela não descreve sujeitos, mas os cria por conta própria. O que se tem com seu uso é uma forma discursiva de desqualificação daqueles contra quem se luta. Tal confusão, contudo, não é nada nova. Karl Barth e Rudolf Bultmann, por exemplo, sempre foram considerados no Brasil como “teólogos liberais”, enquanto os mesmos se identificavam como reativos ao liberalismo da teologia acadêmica de Tübingen. Barth chegou a ser chamado de “neo-ortodoxo” na Europa, enquanto era rotundamente taxado e evitado no Brasil como um “teólogo liberal”.
Em minha opinião, há uma série de razões que levam ao uso da palavra “liberalismo” como recurso discursivo de desqualificação do outro nas atuais lutas morais de nosso cristianismo. Elas teriam a ver com a tradição protestante a que somos devedores no Brasil. Não compete listar todas essas razões históricas. Basta dizer que a grande confusão diz respeito ao fato de se confundir uma teologia que deseja ser libertadora com relativismo teológico. Foi o século XX que produziu as teologias libertadoras, embora elas já estivessem presentes em muitas tradições cristãs do Ocidente. Essa “função libertadora”, no século XX, teve início tendo o pobre como sujeito de discurso privilegiado. Atualmente (sem que a questão da pobreza tenha sido resolvida!), essa mesma função libertadora se estende para outras demandas, pois se descobriu que esse pobre é atravessado por outras contingências. O pobre tem gênero, tem sexo, tem etnia, e a libertação de seu cativeiro econômico não significa necessariamente a libertação das relações de poder que se dão nessas outras esferas. Em sua analítica do poder, Foucault sempre colocou a seguinte questão: “uma sociedade que produzisse plena equidade econômica, seria uma sociedade sem relações de poder?”
Creio que essas teologias reconhecem, inclusive, que o conhecimento religioso tem sido um dos principais saberes mantenedores de relações de poder assimétricas, dando suporte a sujeições pecaminosas e anti-evangélicas. E aqui está o ponto nevrálgico desse papo todo: chama-se de “liberalismo teológico” justamente àqueles discursos teológicos de resistência a isso, e que buscam desconstruir um discurso religioso opressor e mantenedor de relações de poder anti-evangélicas.
Qual a diferença entre o antigo discurso da Teologia Liberal e o destas teologias com desejo de libertação? A diferença consiste em que aquele – o discurso liberal – estava interessado em debater os pilares da fé cristã, submetendo seus fundamentos à investigação científica, como forma de dar contas a uma mentalidade burguesa e acadêmica que flertava com a liberdade da razão. No fundo, ele consistia em dizer àquela burguesia que o Cristianismo ainda poderia ter lugar num contexto “ilustrado”, ainda que fosse necessário negociar certos pressupostos. Essa teologia libertadora que hoje se estende à discussão acerca da sexualidade quer outra coisa completamente diferente. Ela está ligada a minorias concretas cuja vida é desqualificada de diversas formas no contexto social. Essa teologia desconfia que o discurso religioso pode ser fonte de sustentação para injustiças, e os coloca em cheque. Não relativiza os fundamentos da fé cristã, mas relativiza um certo tipo de apropriação desses fundamentos, que não percebe seus próprios efeitos opressores.
Portanto, se ser liberal consistir no exercício de relativizar certas interpretações da Bíblia, ou do que sejam os fundamentos da fé, eu nunca quis tanto ser liberal (parafraseando o Rev. Jardson Gregório)! Aviso-os somente que o dogma e o fundamento de tal teologia permanecem os mesmos dos apóstolos: quem ama conhece a Deus, porque Deus é amor. Ou ainda este: aonde está o Espírito do Senhor, aí há liberdade.