segunda-feira, 13 de agosto de 2012

PROTESTANTISMO, POLÍTICA E SEXUALIDADE


Breve diálogo com Religião e repressão de Rubem Alves

Protestantismo e repressão (Rubem Alves, 1978) – rebatizado pelo autor em 2005 de Religião e repressão – talvez tenha sido a primeira e grande análise acerca do protestantismo brasileiro (embora consista realmente num estudo de caso da ideologia da Igreja Presbiteriana do Brasil). Dentre os numerosos aspectos que marcam essa análise, compete-nos destacar a forma como Rubem Alves tratou das questões relacionadas à moral sexual do protestantismo brasileiro àquela época (p. 208-220). Entendemos que no curso dos mais de 30 anos que nos separam dessa análise, muitas coisas mudaram. Mas entendemos que ela nos ajuda como ponto de partida para problemas que em nosso tempo somente se avolumaram.
Destacamos três elementos na crítica de Alves que consideramos pertinentes à época, mas que foram profundamente modificados desde então.
1. Primeiro, Alves circunscreve sua análise da moral sexual do protestantismo brasileiro às questões relacionadas com os limites do ordenamento de uma certa conjugalidade tradicional, relacionada especialmente à vida privada. Ele nos diz: “A moralidade protestante é regida por um princípio extremamente simples e que não permite ambiguidades: O sexo é permitido se, e somente se, ocorrer dentro do casamento. Atos de natureza sexual e relações sexuais antes do casamento ou que, após o casamento, transgridem os seus limites, são terminantemente proibidos. São pecados que devem ser punidos” (Alves, 2005, p. 209 [grifos no original]).
Sua análise consiste em relativizar um tipo de espiritualidade marcada pela repressão às possibilidades de realização do corpo, que, segundo o autor, tanto o protestantismo quanto o catolicismo teriam herdado de uma tradição agostiniana. Tal tradição seria marcada, sobretudo, pela circunscrição da sexualidade aos papéis reprodutivos. Além disso, segundo Alves, a moral sexual do protestantismo, até então, conformava-se às imposições e às restrições civis impostas ao casamento, com destaque ao impedimento do divórcio.
Gostaríamos de destacar que Rubem Alves articula sua crítica em diálogo com um quadro ideológico muito peculiar à época. Percebe-se, por exemplo, que não há na sua análise uma reflexão acerca das implicações políticas da moral sexual protestante. Trata-se de uma crítica que se conforma à sexualidade enquanto uma dimensão privada da vida, sem efeitos sobre o ordenamento público ou político. Cremos que atualmente seja impossível fazer uma crítica da moral sexual protestante no Brasil sem pensar nos seus possíveis efeitos no ordenamento público ou político. Afirmamos isso porque em nossa época a moral sexual religiosa deixou de ser assunto circunscrito à vida privada, assumindo papel central em embates políticos na esfera governamental. Um dos grandes desafios desta reflexão atual consiste em pensar na relação entre a laicidade do Estado, a liberdade de expressão e os direitos sexuais e reprodutivos de certas minorias. Em outros termos, hoje precisaríamos nos perguntar sobre que efeitos a imposição da moral sexual protestante, feita a partir das plataformas da política de Estado, pode produzir sobre minorias que encaram a diversidade sexual como um Direito Humano.
2. Em segundo lugar, gostaríamos de destacar outro aspecto da crítica de Alves à moral sexual do protestantismo brasileiro naquele momento, que diz respeito ao silêncio deste em face da sexualidade. Segundo Alves, por conceber o sexo somente como “concessão” e como “permissão”, ligados à função reprodutiva dos seres humanos e a uma antropologia de “seres caídos”, o protestantismo brasileiro produziu como consequência um enorme silêncio acerca da sexualidade, contrariando até mesmo certas tradições bíblicas (Cantares de Salomão, em especial) que postulam o prazer sexual como graça de Deus. Para Alves (2005, p. 216), “o silêncio protestante sobre o sexo é a expressão da vergonha, no nível da linguagem. O sexo se diz no escuro e em segredo, com um pedido de perdão”.
Certamente, não se pode atualmente sustentar a tese do silêncio protestante acerca do sexo. Pelo contrário, testemunha-se aquilo que Foucault (2010) chamou de “incitação aos discursos sobre o sexo” no seio desta comunidade, com uma certa profusão. Os recentes embates que relacionam a moral sexual protestante, a política de Estado e os direitos sexuais e reprodutivos requeridos pela comunidade LGBT, vêm produzindo uma avalanche de discursos, pronunciamentos, publicações, fóruns, sermões, posicionamentos institucionais, articulações políticas, coalizões denominacionais, em torno da necessidade da afirmação da “verdade dos sujeitos”, que passa pela verdade acerca do sexo. Tem-se a impressão de que o protestantismo nunca falou tanto do sexo como neste momento.
Assim, consideramos necessário fazer a transição de uma crítica que se pautava pela denúncia das questões acerca do “silêncio protestante” sobre a sexualidade, para uma crítica das questões acerca desta novíssima avalanche de discursos que tentam normatizá-la. Nesta tarefa, temos optado pelas sugestões metodológicas de Foucault (1979) quanto ao estudo das relações de poder. Portanto, antes de pensar nestes discursos protestantes acerca da sexualidade unicamente como dispositivos de repressão, compete-nos pensar em seu potencial de produtividade. Não que os problemas da repressão, como focalizados por Alves em sua crítica, percam a importância. Contudo, reduzir o papel destes discursos aos aspectos meramente repressivos pode nos fazer perder de vista um campo de inteligibilidade de outros aspectos igualmente importantes da questão. Afinal, como sugere Bauman (2005), o fundamentalismo religioso, antes de ser o reavivamento de uma espiritualidade arcaica, deve ser encarado como uma racionalidade alternativa, num contexto de profunda fragmentação de certezas existenciais.
3. Enfim, gostaríamos de destacar um último elemento da crítica de Alves à moral sexual do protestantismo brasileiro, que diz respeito a uma impossibilidade sua à época, mas novamente imprescindível em nosso momento. A crítica de Alves à moral sexual daquele protestantismo está circunscrita aos limites da heteronormatividade. É bem verdade que Alves busca ampliar sua crítica às amplas possibilidades do corpo, denunciando os aspectos repressores da moralidade sexual protestante. Para ele, não somente o protestantismo, mas “toda religião que, em nome de uma ordem espiritual, impõe sobre o corpo um regime de sistemática repressão, tende a produzir personalidades neuróticas” (Alves, 2005, p. 220). No entanto, falta-lhe a nomeação desses sujeitos concretos que vivenciam a repressão, de tal modo que sua crítica deixa-nos com a impressão de que é o corpo heterossexual que, unicamente, sofre os efeitos neurotizantes daquela moral sexual.  
Hoje é impossível empreender qualquer crítica à mesma moral sexual protestante restrita aos limites heteronormativos. Isso porque aquela “avalanche discursiva” do protestantismo acerca da sexualidade, que apontamos anteriormente, é produzida tendo como base a afirmação da heteronormatividade e da correlata negação de quaisquer outras possibilidades heterodivergentes. Portanto, uma crítica que considere o corpo como horizonte de dominação discursiva, vai precisar dar nome a esses corpos. Assim, ela poderá contribuir nas lutas atuais e nas táticas políticas de resistência à dominação dos corpos alheios, quer seja na esfera política, quer seja esfera na religiosa.

Trabalhos citados
Alves, R. (2005). Religião e repressão. São Paulo: Teológica
Bauman, Z. (2005). O mal-estar na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Foucault, M. (1979). Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal
Foucault, M. (2010). História da sexualidade: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, vol. 1

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