sábado, 20 de março de 2010

A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA PEDOFILIA


Uma leitura psicossocial

Eu conheci o trabalho dos sociólogos Peter Beger e Thomas Luckmann há alguns anos, por meio das notas de roda-pé do livro Filosofia da Ciência, do Rubem Alves. Berger e Luckmann representam a corrente teórica que se convencionou chamar de Sociologia do Conhecimento, cujas raízes se encontram já em Karl Mannheim. No entanto, a notoriedade mundial da Sociologia do Conhecimento se deve muito ao livro A construção social da realidade [The social constrution of reality], publicado em 1966 por Berger e Luckmann.

Fundamentalmente, a Sociologia do Conhecimento propõe uma desconstrução de nossa maneira habitual de relação com o real. O real aí é encarado como produto de construções sociais operadas no interior de certas circunstâncias histórico-culturais. Não se nega o status ontológico da realidade. Antes, se afirma que nenhum de nós tem acesso imediato à ela, senão pela mediação de uma rede de significados construídos culturalmente. Dito de forma sumária, estamos falando do exercício de desnaturalização de nossa relação com o real.

Ian Hacking, filósofo construcionista norte-americano, nos oferece uma gama de exemplos de construções sociais, naturaizadas por uma mentalidade de senso comum. Na verdade, Hacking está citando trabalhos de autores construcionistas. Alguns de seus exemplos são os seguintes:

Ø A construção social da autoria literária (Woodmansee e Jaszi, 1994);

Ø A construção social da fraternidade (Clawson, 1989);

Ø A construção social do perigo (McCormick, 1995);

Ø A construção social do gênero (Dewar, 1986; Lorber e Farrel, 1991);

Ø A construção social da cultura homossexual (Kinsman, 1983);

Ø A construção social da pós-modernidade (McHale, 1992);

Ø A construção social da realidade (Berger e Luckmann, 1966).

Eu também arriscaria um exemplo, que não consta na lista de Haking. Mencionaria o famoso trabalho de Philippe Ariés História social da criança e da família. Neste trabalho, Ariés tenta nos mostrar em quais situações o nosso atual conceito de infância foi socialmente construído. Segundo Ariés, a criança, enquanto sujeito de direitos inalienáveis tais como os conhecemos hoje, teria sido um conceito construído muito tardiamente na história do Ocidente, nos inícios da Modernidade. Lançando mão de farta documentação escrita, sobretudo dos séculos XVI, XVII e XVIII, assim como da iconografia da época (com ênfase nos trajes), Philippe Ariés argumenta que a concepção que se tinha das crianças era a de que estas eram somente “pequenos adultos”, não vivenciando um “mundo infantil” tal como nos parece tão “natural” hoje em dia.

Esses exemplos poderiam ser multiplicados à exaustão. A tese de doutorado de Michel Foucault intitulada História da loucura, bem que poderia chamar-se A construção social da loucura, pois não trata de outra coisa que não seja nos conduzir pelos caminhos histórico-culturais que proporcionaram o aparecimento da noção de loucura tal como a temos hoje em dia, tão naturalizada na psiquiatria e no senso comum.

Portanto, quando dizemos que o real é uma construção social, estamos falando que a forma como significamos o mundo – as relações interpessoais, a natureza, por exemplo – não nos são dadas a priori, sem a intervenção humana. Quando dizemos que o real é uma construção social, estamos dizendo que todos os significados no mundo humano são artificiais, e nenhum deles é natural. Fiquemos com mais um último exemplo extraído das relações de gênero e da divisão sexista de certas tarefas sociais.

Que elementos “naturais” justificam a divisão sexista do trabalho? A “sensibilidade feminina” contra a “força muscular masculina”? Que dizer das tantas mulheres sertanejas que, submetidas a terríveis condições de sobrevivência, desenvolvem uma resistência muscular e uma performance corporal compatível a muitas formas de trabalho tidas como tipicamente masculinas? Não estariam esses conceitos – “sensibilidade feminina” e “força masculina” – atrelados aos condicionamentos culturais? Caso nossa cultura ocidental não tivesse sido ditada à luz da ideologia da “fragilidade feminina”, reconheceríamos essa suposta fragilidade como “natural”?

Pois bem! Depois dessa introdução, minha intenção é trabalhar o conceito de pedofilia como uma construção social que vai ganhando matizes naturalizantes, principalmente ao toque da mídia televisiva. Não posso negar que o que me motiva a essa reflexão sejam os últimos escândalos de pedofilia envolvendo sacerdotes cristãos, com especial destaque para os casos ocorridos em Alagoas. No entanto, não pretendo entrar nessa matéria em específico, pelo menos por agora.

Antes, portanto, duas coisas.

Primeiro, o próprio termo pedofilia é etimologicamente um contra-senso quando aplicado nas atuais circunstâncias. Paidós em grego quer dizer criança, e filéo, da mesma língua, quer dizer amar fraternalmente. Portanto, é um contra-senso chamar de “amor fraterno por crianças” a algo que a sociedade reputa como um crime hediondo.

Em segundo lugar, é preciso deixar claro que tratar a pedofilia como construção social não implica nem em minimizar os efeitos danosos nas vítimas, nem as sanções legais cabíveis aos seus autores. É muito importante que isto esteja claro, a fim de evitarmos mal-entendidos graves.

Em que sentido então a pedofilia seria uma construção social?

Alguém poderia ser levado a pensar que tratar a pedofilia como uma construção social é pensar as relações sexuais entre adultos e crianças como um fenômeno típico de nosso tempo. Isto não procede. Não resta dúvida de que relações sexuais entre adultos e infantes seja uma prática arraigada nas sociedades também do ponto de vista do tempo. O engodo de pensar que se trata de um fenômeno tipicamente hodierno vem da superexposição midiática que o mesmo vem recebendo. Pois, de fato, o que parece ocorrer é uma maior exposição desses fatos pelos meios televisivos e virtuais já tão presentes no cotidiano de grande parte da sociedade brasileira. Portanto, falar numa construção social da pedofilia não significa falar na irrupção de um fenômeno novo. Mas significa falar de como a mídia, de forma majoritária, contribui na construção de uma gama de significações novas para um fato recorrente. É dizer que somente em nosso contexto atual foi pessível adjetivar essas relações sexuais como “abusos”.

Como sustentar o discurso de que a relação sexual entre adultos e crianças é algo hediondo, num contexto em que os pequenos ainda não apareciam como sujeitos de certos direitos inalienáveis? Como sustentar o discurso de que estas relações são criminosas quando ainda não havia a compreensão naturalizada da infância como fase inicial da vida, circunscrita pelos interditos da sexualidade genital? Não seria possível uma criminalização das relações sexuais entre adultos e crianças numa cultura onde aqueles valores infantis não existissem, isto é, onde eles não fossem construídos socialmente. Além disso, é de conhecimento geral o fato de que há menos de sessenta ou setenta anos nossas avós viveram numa sociedade onde essas significações do mundo infantil ainda não estavam muito definidas. Em conseqüência disso, muitas delas casaram-se aos 14 ou 15 anos, quando começaram a sua atividade sexual com homens com o dobro de suas idades. Tudo isso com o consentimento social.

A pedofilia, portanto, só pode ser significada como violência profunda e como crime hediondo cometido contra uma criança, em nosso contexto histórico-cultural que construiu e naturalizou o conceito de infância como fase imaculada da vida, onde a sexualidade genital é compreendida como desvio precoce num processo de maturação do corpo infantil. Reitero a afirmação de que todas essas significações em torno do “universo infantil”, por mais naturais que nos pareçam, no fundo são construções muito novas. Lembro-lhes que no Brasil todas essas significações só chegaram a ganhar corpo legal e a se materializarem em forma de letra de Lei com o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) promulgado em 13 de julho de 1990. Em nível mundial, a Convenção dos Direitos da Criança seria aprovada pela Assembléia Geral das Nações Unidas somente em 20 de novembro de 1989.

E os pedófilos? Como pensá-los nessa perspectiva?

Obviamente, o pedófilo só pode aqui ser pensado como nova categoria criminal socialmente construída. Mas o fato é que dificilmente isso se daria sem a alavanca de uma mídia televisiva especializada na exploração e na manipulação da criminalidade. Quando acrescento o termo “manipulação” ao termo informação, estou tentando pensar em sintonia com as intuições de Pedrinho Guareschi no que tange ao papel exercido pela mídia, de forma geral, como “produtora da informação”. Isso consiste em pensar que a informação midiática, porque situada econômica e ideologicamente, não pode ser tradução e espelho fiel da dinâmica social. A informação midiática, porque condicionada pelos seus interesses, é produzida, selecionada, e entregue ao consumidor como forma de simulacro do real.

O pedófilo, tal como aprendemos a pensá-lo, dificilmente existiria sem esse fundo todo.

Não se nega, sob nenhuma hipótese, a objetividade de sua transgressão nem o caráter hediondo do seu feito, ainda que se reconheça que essas mesmas significações dependam de uma rede de construções simbólicas sobre o “universo infantil”, como dissemos acima. Mas não podemos desvincular o papel da mídia televisiva tanto na construção desta nova categoria criminal, quanto na naturazalização da mesma no tecido social. Esse discurso midiático empobrece a compreensão do fenômeno justamente – talvez por sua ânsia informativa e sensacionalista – por enquadrá-lo em categorias ligadas à mera transgressão criminal. Sem o pano-de-fundo maior da rede de significações contextuais sobre o “universo infantil”, o pedófilo da mídia televisiva é tornado um “anormal” (Foucault) pela via da simples transgressão criminal. Ao seu modo, esse discurso replica a simplificação psicopatologizante da psiquiatria, para quem a pedofilia é uma parafilia.

Enfim, o que estamos propondo aqui não é uma suavização científica para um problema que nos assusta de forma crescente. Nosso chão teórico-metodólogico é psicossocial. Nesse viés, cabe-nos analisar como certos discursos vão sedimentando nossas condutas, assim como os efeitos concretos que esses discursos produzem no tecido social. Não se trata de mero capricho teórico. Trata-se, antes, de despir o real de suas teias discursivas (se é que isso é possível!) a fim de saber se é possível construir relações melhores entre as pessoas. Nesse caso, saber quais caminhos de humanização são possíveis para nossas crianças, mas também para os pedófilos.

Trabalhos citados

ALVES, Rubem. Filosofia da Ciência - Introdução ao jogo e a suas regras. 7ª edição, São Paulo: Loyola, 2003

ARIÉS, Philippe. História social da criança e da família. 2ª edição, Rio de Janeiro: Guanabara, 1981

BERGER, Peter, LUCKMANN, Thomas. A construção social da realidade – tratado de Sociologia da Conhecimento. 16ª edição, Petrópolis: Vozes, 1998

FOUCAULT, Michel. História da loucura – Na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 2008

GUARESCHI, Pedrinho. Os construtores da informação – Meios de comunicação, ideologia e ética. Petrópolis: Vozes, 2003

HACKING, Ian. ¿La Construcción social de qué? Barcelona: Paidós Ibérica, 2001