quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

UMA RAPIDINHA SOBRE "EXCENTRICIDADE"


Era uma aula de mestrado, e a primeira coisa que me chamou à atenção naquela sala foi o fato de que entre os mais de vinte mestrandos, havia apenas um homem além de mim. Segundo, uma parte daquelas mulheres era declaradamente feminista. E a aula começou exatamente pelo tópico das relações históricas entre homens e mulheres, e pelo papel do feminismo da presente conjuntura. O clima era um pouco pesado. Mas o bom humor do professor deixou tudo muito descontraído.
Foram poucas as vezes na vida em que eu me senti excêntrico. Mas, espere um pouco. Você sabe o que é excentricidade? Simples. Um indivíduo excêntrico é um indivíduo que está “fora do centro”. Ex-cêntrico. Fora da norma, do eixo, do prumo, da baliza. Anormal. À margem. Marginal. Excentricidade, portanto, é o sentimento que nos invade sempre que nos sentimos fora de um padrão considerado normal, conforme as convenções sociais.
Foi um pouco assim que me senti no meio de tantas feministas juntas. E foi bem desconfortável, a princípio.
No entanto, ao fim da aula tudo voltou a ser como era. A excentricidade se foi. Isso porque aquele momento funcionou como uma espécie de suspensão do cotidiano. Fim do momento de suspensão, fim do sentimento de excentricidade. A questão é que há grupos sociais que carregam a excentricidade aonde quer que vão. Para os tais, não há momentos de suspensão. A excentricidade é o seu cotidiano. Na prática, isso quer dizer muita coisa. 
Há muitos excêntricos desejosos de sair desse lugar, para ocupar o centro. Mas há muita gente assumindo suas mais diferentes excentricidades, numa tentativa de multiplicar os centros. Esse não é um movimento fácil. É sempre difícil furar as barreiras da normalização. A excentricidade, à primeira vista, é bem desconfortável. Mas ela deve ser muito mais quando é a matéria que constitui o cotidiano dos indivíduos.

sábado, 8 de dezembro de 2012

O CORPO E O PODER RELIGIOSO


Três níveis de docilização religiosa dos corpos
A fixação docilizadora do cristianismo em relação ao corpo é muito anterior a qualquer técnica moderna de poder. Nietzsche talvez tenha sido um dos primeiros filósofos a denunciar programaticamente a problemática relação do cristianismo com o corpo. Desde muito cedo, na história cristã, a negação do corpo e de seus prazeres foi se constituindo como forma privilegiada de acesso à bem-aventurança, sempre remetida à alma e ao espírito.
Embora se reconheça a presença constante de correntes problematizadoras dessa fobia ao corpo no interior da própria história da religião cristã, parece-nos que tais contra-discursos nunca chegaram a provocar mudanças paradigmáticas na forma de relação entre o cristianismo e o corpo. Nenhum dos grandes cismas registrados na história do cristianismo ocidental tematizou o corpo enquanto superfície de aplicação do poder.
O próprio Foucault, que descreveu magistralmente a produção de um “poder disciplinar” surgido como forma de docilização dos corpos no contexto das reestruturações econômicas da Europa a partir dos séculos 16 e 17, admite que tais tecnologias disciplinares haviam existido de forma isolada em certas instituições, dentre as quais os mosteiros cristãos medievais.
Obviamente, há diferenças fundamentais entre as técnicas disciplinares de docilização dos corpos presentes nas instituições cristãs e aquelas que Foucault discutiu a partir do sistema carcerário e escolar modernos, especialmente em Vigiar e punir. Enquanto nestas, a docilização dos corpos visa esvaziá-los de sua potência política para aumentar sua potência produtiva em termos econômicos, aquela visa especificamente o esvaziamento das possibilidades éticas, entendidas como “cuidado de si” e como a utilização do corpo como forma de fazer da vida uma obra de arte. Enquanto as técnicas modernas de docilização dos corpos estariam ligadas à dominação econômica (e indiretamente ligadas ao domínio da subjetividade), aquelas ligadas ao cristianismo estariam relacionadas diretamente às lutas pelo domínio da subjetividade.
A nosso ver, há pelo menos três níveis pelos quais atualmente as diversas igrejas cristãs operam uma docilização dos corpos, esvaziando suas possibilidades éticas.
Um primeiro nível é o mais capilar de todos. Ele tem a ver especialmente com a doutrina e a ideologia relacionadas aos processos de formação empreendidos pelas comunidades religiosas. Estaria presente nos púlpitos, na pedagogia cristã, na hermenêutica dos textos bíblicos, e nas demais formas de ensino cristão, que servem para a manutenção ideológica de cada confissão, cujo efeito imediato é um estrito controle dos corpos, corroborando os mecanismos de normalização da sexualidade presente em outras instituições sociais. Seria um enorme equívoco dizer que as comunidades cristãs são as únicas instituições sociais a promoverem este tipo de docilização dos corpos. O que se pretende aqui é demonstrar apenas a peculiaridade desses discursos religiosos, no interior de uma teia discursiva que é muito maior, e que atravessa todo o tecido social.
Um segundo nível, especialmente relacionado ao anterior, diz respeito à formação especifica dos quadros pastorais das diferentes comunidades religiosas. Embora eles estejam muito próximos do nível capilar acima esboçado, sua peculiaridade consiste no fato de que se trata aqui da formação específica dos agentes pastorais. A nosso ver, esse nível caracteriza uma estratégia de dominação dos corpos mais presente no contexto católico. Docilizar os corpos e a sexualidade, esvaziando-os de sua potência ética, significa, entre outras coisas, formar pessoas competentes para operacionalizar essa estratégia específica de poder. Um exemplo pontual poderia ser dado com o documento do Vaticano Instrução sobre os critérios de discernimento vocacional acerca das pessoas com tendências homossexuais e de sua admissão ao seminário e às ordens sacras, analisada magistralmente por Durval Muniz de A. Júnior, e adjetivado por este autor como uma forma de “pastoral do silêncio”.
Um terceiro e último nível seria aquele que encontramos mais explicitamente representado por atores religiosos ligados ao campo evangélico, em que a plataforma política serve como base para o exercício do poder sobre os corpos. O Poder Legislativo brasileiro, como é amplamente sabido, tem tido nos últimos anos ampla presença de atores cuja representação política está explicitamente identificada com os interesses de certas instituições religiosas, mormente das igrejas evangélicas. A participação política de tais atores privilegia os temas ligados ao corpo e à sexualidade, não propositivamente, mas como forma de contenção às políticas sociais voltadas para a diversidade sexual. Esse nível, a nosso ver, necessitaria de uma problematização especial, pois se vincula com as questões do caráter laico do estado. Ele se diferencia dos dois níveis anteriores por sua abrangência social, pois implica a imposição de certas visões religiosas particulares acerca do corpo e da sexualidade para o todo social, marcado pelo pluralismo e pela heterogeneidade.
É importante apontar para a base heteronormativa presente em todos os níveis de controle sobre o corpo aqui esboçados. Cada um deles, a nosso ver, e ao seu modo, estão vinculados ao “dispositivo de sexualidade” que Foucault descreveu no primeiro volume de sua História da sexualidade. Descrever a relação entre esses níveis, e a relação de todos eles com os processos de normalização do corpo e da sexualidade levados a cabo por outros discursos e outras instituições sociais laicas, é o desafio que estamos propondo em nossa pesquisa de mestrado. 

Finalmente, como Foucault sugere, nosso estudo dessas relações de poder não se dá na perspectiva da repressão, da violência ou da imposição, mas se identifica com as teorizações que tomam o poder como força produtiva e positiva. Uma das perguntas fundamentais que tentaremos responder, portanto, seria a seguinte: que potência de vida é reclamada por esse tipo de poder religioso sobre os corpos? Consequentemente, precisaríamos perguntar: que relações esse poder religioso sobre os corpos teria com o biopoder, enquanto modalidade de poder cuja pretensão é maximizar a potência da vida?