sábado, 25 de junho de 2011

O ARRAIÁ DA IBP E O REINO DE DEUS




Paul Ricoeur, comentando as parábolas de Mateus 13,31-33 e 45-46, diz o seguinte:
A primeira coisa que pode impressionar-nos é que as parábolas são narrativas radicalmente profanas. Não há deuses, nem demônios, nem anjos nem milagres, nem tempo antes do tempo, como nas narrativas da criação, nem mesmo acontecimentos fundadores como na narrativa do êxodo. Nada, mas precisamente gente como nós: proprietários palestinos partindo em viagem e alugando campos, intendentes e obreiros, semeadores e pescadores, pais e filhos; em uma palavra, pessoas comuns fazendo coisas comuns: vendendo e comprando, lançando a rede ao mar e assim por diante. Encontra-se aqui o paradoxo inicial: por um lado as histórias são – como disse um crítico – narrativas da normalidade, mas, por outro, é o Reino de Deus que se diz ser assim. O extraordinário é como o ordinário (A hermenêutica bíblica, p. 226).
E há coisa mais radicalmente profana do que uma festa de São João? Poderia uma festa de São João, portanto, se constituir também como parábola do Reino de Deus? Nós achamos que sim. E foi pensando no arraiá da IBP que tivemos certeza disso.
Fizemos questão de voltar aos Evangelhos e conferirmos se há alguma comparação entre o Reino de Deus e as coisas da religião: cultos, ritos, vigílias, liturgias. Absolutamente nada disso é mencionado. Somente cenas do cotidiano, quase todas do ambiente rural da Palestina daqueles dias: pescadores, mercadores, pais e filhos, mulheres em seus afazeres domésticos, e as festas do povo. São a essas coisas, radicalmente profanas, a que se assemelha o Reino de Deus, conforme Jesus de Nazaré. Então, não deve ser nenhum sacrilégio dizer que o arraiá da IBP também se assemelha ao Reino de Deus. E nós pensamos isso por causa das razões abaixo.
O Reino de Deus deve se assemelhar ao arraiá da IBP, onde o trabalho, em vez de ser o lugar onde uns poucos enriquecem explorando a muitos, é uma atividade que visa a um alvo comum, e onde todo mundo ganha da mesma forma; onde o trabalho não visa o lucro de uns poucos, mas o benefício de toda comunidade.
O Reino de Deus deve ser semelhante ao arraiá da IBP, onde aqueles que tem poder e são reputados como “líderes dos demais”, trocam o peso da reta doutrina pela leveza da brincadeira, trocam a angústia por dominar pela beleza de voltar a ser criança, e trocam as responsabilidades sérias e dogmáticas dos adultos pela irresponsabilidade vadia e improdutiva da brincadeira.
O Reino de Deus deve ser semelhante ao arraiá da IBP, onde não existem dicotomias entre o sagrado e o profano, e onde a alegria sobe aos céus como gratidão e oração ao Deus da vida; onde a alegria e a dança, em vez de serem demonizadas e condenadas com veemência, são vistas como manifestações do divino Deus derramando graça e vida no meio do seu povo.
O Reino de Deus deve ser como o arraiá da IBP, onde as diferenciações humanas de classe social, de raça e até de crenças perdem o sentido, e onde preto dança com branco, pobre dança com rico, católico dança com crente, como se fossem uma grande família fazendo festa na casa do pai.
Pr. Paulo Nascimento e Pr. Wellington Santos

terça-feira, 14 de junho de 2011

OUTRA VIA CRUCIS


Nesta semana dois HIV-soropositivos cruzaram o meu caminho. O primeiro, logo após o culto matinal do domingo, na Igreja Batista do Pinheiro. Solicitava-me uma ajuda em alimentos e um complemento em dinheiro para uma passagem de ônibus. O segundo, dentro de um ônibus coletivo a caminho da Universidade Federal de Alagoas. Dirigia-se a todos os passageiros pedindo uma ajuda financeira para tocar a vida e continuar cuidando de sua saúde. Nenhum dos dois provocou pânico ou rostos constrangidos, nem no templo nem no ônibus.
Dificilmente teria sido assim na década de 1980, quando a AIDS emergia como a possibilidade de uma pandemia. Sem as informações e os avanços no tratamento de que dispomos hoje, uma crosta de preconceitos recobria os corpos dos HIV-soropositivos. Sua simples presença num recinto qualquer era motivo de apreensões e constrangimentos. Apertos de mão, beijos no rosto e outros tipos de contato físico, hoje amplamente desmistificados pelo conhecimento acerca da doença, não tinham vez naquele momento. Também os lugares públicos estavam vedados à presença dos HIV-soropositivos. Em programa exibido recentemente nos Estados Unidos, Oprah Winfrey mostrava como numa cidade do interior daquele país, uma piscina pública fora interditada na década de 1980 quando se descobriu que um soropositivo a havia utilizado.  
Outra peculiaridade daqueles dias relacionada às representações sociais acerca da AIDS era a sua tipificação como uma “peste gay”. Não foram poucos os grupos religiosos que ajudaram a disseminar na sociedade a idéia de que a AIDS consistia numa sanção divina impetrada como conseqüência do estilo de vida dos homens e mulheres homossexuais.
Passados já trinta anos, os avanços no tratamento do HIV proporcionam uma qualidade de vida que permite a estas pessoas tocar suas vidas e participarem de todo tipo de dinâmica social. A expectativa de vida dessa população cresceu consideravelmente, muito embora o acesso ao coquetel de medicamentos continue bem difícil para os mais pobres. A informação se disseminou no tecido social, de tal maneira que se o preconceito contra estas pessoas ainda existe, hoje ele existe numa escala diferente daquela da década de 1980. Obviamente, o conhecimento científico e algumas políticas públicas têm grande mérito nessas transformações. Mas a diminuição do preconceito contra os HIV-soropositivos também tem a ver com a convivência, com o acolhimento e com a aceitação incondicional, que sempre ajudam a derreter visões falsas acerca das coisas e das pessoas. Juntos, a razão (ciência e política) e o coração (convivência, acolhimento e aceitação) removem montanhas.
Aí, eu fiquei pensando no seguinte: estariam os homossexuais atualmente percorrendo esse mesmo itinerário que vai da homofobia até a aceitação e a convivência pacífica com todos os setores da sociedade? Até 1985 a homossexualidade constava no Catálogo Internacional de Doenças (CID-10) como uma patologia de tipo psiquiátrico – uma psicopatologia. E ainda que alguns manuais de psicopatologia continuem classificando-a como um “transtorno da identidade de gênero”, a Organização Mundial da Saúde deixou de concebê-la como tal. Será que o itinerário dos homossexuais rumo a uma convivência plenamente cidadã em todas as dinâmicas sociais também vai precisar passar pelo progresso dos recursos científicos, pela implementação de certas políticas públicas, pela disseminação da informação, e pelas atitudes de aceitação e acolhimento?
Me parece que a experiência histórica dessas três décadas de enfrentamento da AIDS em todo o mundo já serviu para tornar arcaico o discurso religioso que a relacionava ao estilo de vida homossexual. Pelo menos, se ainda se crê nisso, ninguém mais nas igrejas tem coragem de confessar. A experiência histórica do continente africano e seus índices pandêmicos de contaminação por HIV, por exemplo, serviu para liquidar essas visões tacanhas acerca desse problema. Que experiências históricas serão necessárias para tornar arcaico o atual de discurso de que a homossexualidade é uma “doença da alma”?
Fico me perguntado: se o itinerário histórico dos HIV-soropositivos e dos homossexuais fosse comparado a uma via crucis, o papel das igrejas cristãs estaria mais para Simão Cirineu, ou para os soldados romanos que cumpriam as ordens de seu “senhor”?

domingo, 12 de junho de 2011

CADA BARRACA DE LONA, UMA CRUZ!


Nesta semana faz exatamente um ano desde que as cidades alagoanas situadas à bacia do Rio Mundaú foram varridas por uma terrível enchente. Na oportunidade, eu e o Pr. Wellington visitamos alguns destes lugares, e vimos de perto o estado calamitoso das cidades de Branquinha, Murici, União dos Palmares, Santana do Mundaú, São José da Laje e Rio Largo. Lembro-me de ter contraído dengue nestas visitas, e de ter que cancelar uma série de conferências na cidade de Jequié-BA, na véspera do evento.
Um ano depois, tivemos pouquíssimos avanços. Enquanto em Pernambuco boa parte das famílias já recebeu suas novas casas, em Alagoas os atingidos continuam em abrigos improvisados. O Governo do Estado culpa a burocracia e a voracidade dos donos de terra, que supervalorizam as mesmas. A população culpa o Governo pelo descaso e pela morosidade nas negociações. E enquanto isso, as famílias atingidas continuam dormindo em escolas e em barracas de lona, sujeitas ao calor, aos insetos, à comida de péssima qualidade, à condições totalmente insalubres, e à proliferação de todo tipo de doenças que vitimizam as crianças mais que a qualquer outro grupo. 
A mídia esqueceu o assunto completamente. O psicólogo Pedrinho Guareschi dizia que “o que a televisão não exibe, é como se não existisse para a maioria das pessoas”. Até as igrejas, importantes na rede de solidariedade que ajudou a minimizar o sofrimento imediato dessa gente, parece que também esqueceram totalmente a tragédia. Mas o fato é que o estado atual dessas famílias talvez seja pior que há um ano atrás. Tenho a impressão de que a formação cultural do nosso povo, onde o Estado é visto como um tutor onipotente das necessidades básicas, faz com que o povo se entregue à apatia. E eu desconfio que o Estado, à moda de Pilatos, vai lavar as mãos diante dessas cruzes.
Não obstante, as festas juninas se aproximam. Tempo de alegria e celebração; de pular fogueira e dançar forró agarradinho; de comer milho assado e aquecer o coração. Só não podemos deixar que a euforia nos faça esquecer esses nossos irmãos flagelados. Sabe por quê? Porque é Jesus quem está naquelas barracas de lona (cf. Mateus 25,31-40)! É Jesus quem está pegando dengue, tomando água suja, comendo quentinha do Governo e passando calor e frio! Também vamos lavar as mãos diante dessas cruzes? 

quinta-feira, 9 de junho de 2011

ALWAYS WITH US - Alagoas no "The Economist"


Murder in Brazil

Always with us

Violence continues, but in different places

THE road from Maceió, the capital of Alagoas state, to its airport passes luxury-car showrooms and shops selling outsize Jacuzzis. In the central reservation, indigent families live under plastic sheeting. Even by the standards of Brazil’s north-east, Alagoas is scarred by poverty and extreme inequality. With 107 murders per 100,000 people, Maceió is also the most violent state capital in Brazil, just as, with 60 murders per 100,000, Alagoas is the country’s most violent state (see chart). It is a place of sugar and cattle, where the sugarcane cutters settle scores with fists and knives and the well-connected escape punishment by using contract killers instead.
Year-round sunshine, beautiful beaches and coral reefs mean tourism offers Alagoas’s best chance of development. But its status as Brazil’s crime capital puts that at risk. State officials are desperate to point out that Alagoans kill each other, not outsiders, and in slums, not beauty spots. Victims and murderers are often indistinguishable: unemployed, illiterate, drug-addicted young men, says Jardel Aderico, the state secretary for peace, whose job title represents an aspiration.
Brazil’s murder rate barely budged during the past decade, at around 26 per 100,000. But the geography of murder changed, notes Julio Jacobo Waiselfisz of the Instituto Sangari, a think-tank in São Paulo. In 1998 São Paulo and Rio de Janeiro were more violent than average; Alagoas was not. Better policing and economic growth have seen the murder rate fall by nearly two-thirds in São Paulo and two-fifths in Rio over the decade. Criminals squeezed out of long-held strongholds followed the money to areas of new industrial development and tourist destinations. Illegal logging and land grabs, together with new cross-border routes for guns and drugs, stoked crime in the Amazon. And Alagoas, its state government debt-ridden and police force weak, corrupt and often on strike, was at times close to lawless.
Things are starting to improve in Alagoas. The World Bank, which in 2009 lent the state $195m to stabilise its finances and improve its management, says the loan targets have been met. It is now working with the state on a plan to eradicate extreme poverty. Alagoas’s governor, Teotônio Vilela Filho, recently re-elected for a second term, has bought the police new cars and guns, and ended the practice of appointing police chiefs according to their political connections. Mr Aderico hopes that “peace lessons” in schools will create a less violent generation of Alagoans.
But in the short term the state’s best hope of moving down the murder rankings is for others to move up. Local politicians want to split Pará, a large Amazonian state, into three. If they succeed, Brazil’s map of violence will change once more. Marabá, which would become capital of south Pará, would inherit the title of murder capital and spare Maceió its shame.