quarta-feira, 22 de abril de 2009

ECUMENISMO E TEOLOGIA DA ENXADA


Sobre uma experiência entre os Monges do Campo na Serra da Catita

Eu tenho duas convicções fundamentais acerca da tarefa ecumênica: (1) se entendêssemos em profundidade as razões dessa proposta, e se submetêssemos nossos pré-conceitos não refletidos a uma avaliação dos reais porquês do ecumenismo, nós o abraçaríamos com uma paixão ardente diferente dessa postura de gueto que nos caracteriza como igrejas protestantes no Brasil; (2) como forma de sinalização para a sociedade, a prática ecumênica é o que de mais persuasivo as igrejas podem oferecer ao mundo, mesmo em relação às ações político-sociais e evangelizadoras.

Embora eu mantenha essas convicções, já faz algum tempo que não me ocupo teoricamente desse tema. Já faz dois anos que iniciei o esboço de uma espécie de justificação dessas convicções acima – projeto que deixei de lado. Esse tema me volta agora provocado por uma experiência prática na Serra da Catita, em Alagoas, junto ao mosteiro onde vivem os Monges do Campo. A convite dos meus amigos pastor Wellington Santos e da pastora Odja Barros, fiz a prazerosa experiência de conhecer essa comunidade fomentada pela Teologia da Enxada, fortemente atrelada à influência de José Comblin.

Instigado por essa experiência, eu gostaria de resgatar parte do esboço da discussão que iniciei há dois anos. Depois de discutir o caráter ecumênico, sincrético e inter-religioso presente nos processos formativos da própria Bíblia e da tradição da Igreja, eu me dedicava a discutir justamente as concepções equivocadas acerca da palavra “ecumenismo”. Portanto, as posições isolacionistas e a mentalidade de gueto da maioria das igrejas cristãs atuais são profundamente contrárias ao processo formativo da própria Bíblia e da tradição da Igreja, que é eminentemente ecumênico, sincrético e inter-religioso.

Cheguei a sinalizar no meu esboço para dois equívocos na compreensão do que seja ecumenismo: (1) Ecumenismo confundido com “unicionismo” e “subordinacionismo”; e (2) Ecumenismo como produto das “escatologias fatalistas. As confusões, no entanto, são bem maiores que essas duas. Seguem abaixo sem qualquer modificação.

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3.1 Ecumenismo confundido com “unicionismo” e “subordinacionismo”

É bem verdade que a expressão “ecumenismo” por si só causa calafrios em muita gente das igrejas. Mesmo para quem transita nas instituições de educação teológica é comum ouvir-se os maiores absurdos acerca desse termo. Bem, explicar as razões dessa dissonância não é nossa intenção aqui. Cabe dizer somente que grande parte dela deve-se ao ensino reproduzido pelas autoridades eclesiais. Há, todavia, um núcleo que une todas essas compreensões apressadas acerca do que venha a ser “ecumenismo”. Esse núcleo é “a idéia de que o ecumenismo é algo que contradiz os desígnios de Deus para a Igreja”, por vezes atribuído às forças do mal. Bem verdade é que algumas das noções sobre ecumenismo nutridas pelos protestantes evangélicos no Brasil são justificadas. Dedicaremos algumas linhas para debatermos algumas dessas noções mais arraigadas nessas igrejas.

Para dizermos em primeiro lugar o que não é ecumenismo, começaremos por uma das noções mais arraigadas sobre esse tema nas igrejas que compõem o protestantismo evangélico brasileiro. Para parte significativa dessas igrejas e seus membros, ecumenismo é sinônimo de “fusão religiosa”. É comum entre esses cristãos rejeitar-se qualquer aproximação ou mesmo o uso de terminologia ecumênica fundados na idéia artificial da Grande e Única Igreja Cristã. Todas as suspeitas, nesse sentido, se dão em relação à Igreja Católica, acusada de tal pretensão. A idéia de unicionismo temida aqui corresponderia a um provável retorno das igrejas protestantes à institucionalidade gerenciada pelo catolicismo. Se essa idéia não for justificada em si mesma (e eu creio que não é), há pelo menos alguns elementos oriundos do catolicismo que justificam o temor e a distância dos protestantes em relação à esta proposta ecumênica. São eles:

1. Um primeiro motivo diz respeito à terminologia adotada depois do Concílio Vaticano II em relação às igrejas protestantes como irmãos separados. Tal terminologia procede dos pressupostos da Encíclica Papal Unitatis Redintegratio (que vide alguma citação...) [Reintegração da Unidade] de João XXIII. Ali, textualmente se afirma que a plenitude do mistério revelado em Cristo reside sobre a instituição Igreja Católica Apostólica Romana, cabendo às demais igrejas distantes dessa tradição – incluindo aí Protestantes e também Ortodoxos – uma participação parcial nesse mistério[i]. Em lugar de promover maior aproximação e comunhão entre essas igrejas, tudo isso acabou por sedimentar a suspeita protestante de um projeto unicionista com alcunha ecumênica. Os resultados foram desastrosos a partir daí.

2. O outro forte motivo (esse menos popular) da suspeita unicionista por parte dos protestantes, que a nosso ver também se justifica, é a ausência da Igreja Católica no World Council of Churches [Conselho Mundial de Igrejas – CMI]. O CMI, criado em 1948, é um órgão que congrega igrejas cristãs de todo o mundo sob um critério simples e único: a confissão de que “Jesus Cristo é o Senhor”. Tendo em seu quadro igrejas das mais diversificadas expressões confessionais – evangélicos históricos, reformados e pentecostais, assim como ortodoxos –, até então a Igreja Católica não despertou interesse nessa proposta. Tal atitude, para muitos protestantes, reflete o interesse ecumênico-unicionista-subordinacionista como única proposta de aproximação da Igreja Católica em relação às demais igrejas. É preciso dizer, todavia, que isso é expressão das forças gerenciais daquela igreja, e não representa um consenso interno. É a “voz da Igreja” somente enquanto é a voz da hierarquia. Por certo, não é a “voz do povo católico”.

Nenhum projeto desse tipo (unicionista ou subordinacionista) deve ser pensado em relação à proposta ecumênica. Primeiro, porque sempre pressupõe que o outro reconheça seu estado de equívoco. Dessa forma, na base de tal proposta estará sempre a altivez e a arrogância que não combinam com as reais relações ecumênicas. Segundo, porque contradiz aquilo que afirmamos acima como sendo parte da essência da fé cristã: a diversidade e a pluralidade. O desafio de bem compreender as distinções entre “união” e “unidade” está sempre diante de nós. Enquanto é comum perceber união como a fusão orgânica dos grupos e a supressão de suas diferenças, deve-se perceber que a unidade pressupõe essas mesmas diferenças. Mais ainda, no dizer de Moltmann “só há unidade [ou a reintegração dela] entre diferentes”. Portanto, ecumenismo não é fusão religiosa, nem unicionismo cúltico e nem subordinacionismo institucional de quem quer que seja a quem quer que seja.

3.2 Ecumenismo como produto das “escatologias fatalistas”

Aqui entramos no campo do imaginário mais popular e divulgado entre as igrejas que compõem o protestantismo evangélico brasileiro de agora. Para a maioria dessas igrejas, e para a maioria de seus líderes, o ecumenismo está vinculado às interpretações fatalistas do Apocalipse, sejam elas milenistas, pré-milenistas ou a-milenistas.

Creio não restar dúvidas de que o Apocalipse seja, entre os livros da Bíblia, o de mais difícil interpretação. Suas abundantes figuras de linguagens, sua linguagem perceptivelmente velada e codificada, fazem com que sua interpretação permaneça sempre relativizada e colocada no campo da probabilidade. Pelo menos, assim deveria ser! Todavia, a primeira ingenuidade na interpretação do Apocalipse entre a maioria dos cristãos está justamente em absolutizar “uma” dentre as múltiplas maneiras de ler aquele texto. É bom que se saiba que o Apocalipse possui diversas chaves interpretativas. Todas carregam possibilidades de erros e acertos, e nenhuma delas obtém o êxito de ser inequívoca[ii].

É do contexto de uma das interpretações fatalistas do Apocalipse que emerge outra idéia apressada de ecumenismo. É comum a essas interpretações identificar a Babilônia dos capítulos 17 e 18 como um signo que remete ou à Igreja Católica ou a um governo político de alcance mundial. Nessa compreensão, prevêem-se a uniformização mundial tanto da estrutura política quanto da estrutura religiosa como atos da “besta”, ou do “falso profeta” que estão por vir (13,11-18). Trata-se do período que é relacionado à expressão “grande tribulação” (2,22; 7,14) presente no texto sagrado. A partir desse ponto de vista, toda tentativa de aproximação das confissões cristãs e religiosas antagônicas fica sob a suspeita de conter já os germens dessa escatologia fatalista. Em outras palavras, corroborar com tais atitudes é o mesmo que endossar os projetos das forças do mal, previstos para os fins dos tempos. O ecumenismo, visto em macro-proporções como harmonia espiritualista global, corresponderia à versão religiosa da dominação do anticristo. Preserva-se nessa interpretação do Apocalipse a idéia de “fusão religiosa” e unicionismo comentada no tópico anterior. O agravante aqui é o fato dessa macro-fusão político-religiosa ser vista como expressão das forças do mal durante o alvorecer da história. A atitude ecumênica, nesse caso, não se dá em função de si mesma. Dá-se, de outra forma, como mero meio cujas finalidades estão relacionadas à dominação e ao poder do mal.

A nosso ver, nada mais romântico, anacrônico e distante do espírito das intenções verdadeiramente ecumênicas.

Há pelo menos razões bem razoáveis para refutar essa interpretação. A tarefa ecumênica, em primeiro lugar, não pesa parcialmente sobre nenhum grupo ou instância cristã solitariamente. É uma vocação e um chamado concomitante de toda comunidade cristã universal. Não se trata de uma consciência a que devamos ser impelidos exteriormente por quem quer que seja, nem mesmo por esse ensaio. Brota das demandas internas, como dito mais acima, e das demandas externas da missão perante a sociedade. Foi pensando assim que Hans Küng, utilizando-se da terminologia de Thomas Kuhn, chamou de “paradigma ecumênico” a vocação inescapável da teologia e da atividade das igrejas cristãs desse tempo[iii]. Se pensarmos assim, nenhuma imposição vertical pode ser identificada com a proposta ecumênica. É sempre movido por razões espontâneas da horizontalidade que se sai da arrogância e intolerância para o encontro dialogal com o outro. Qualquer coisa diferente disso só poderá ser encarada como imposição servil, que nada tem a ver com os sentimentos que nos arremetem à tarefa ecumênica.

Embora eu não comungue com a interpretação do Apocalipse que dá vazão a esta noção de ecumenismo, isto é, com as interpretações fatalistas, não creio que a chave interpretativa que adoto seja também inequívoca. Permanece a consciência de que é uma possibilidade entre tantas. Todavia, partindo desse vasto campo de possibilidades, permanece sendo possível (embora eu não creia, reitero) que as coisas sucedam como prevê tal interpretação fatalista. A única coisa a ser dita nesse caso é que a expressão “ecumenismo” não cabe para definir esse projeto de unificação global político-religiosa deduzido do Apocalipse. Outro termo deveria ser utilizado aí. As motivações que movem o exercício ecumênico são outras bem distintas.

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Meu esboço de dois anos atrás, muito maior que o trecho aqui reproduzido, ficou suspenso exatamente nesse ponto. Depois dessa parte desconstrutiva, isto é, depois de dizer o que não é ecumenismo, seria preciso aclarar essa expressão e falar de seus porquês autênticos.

Hoje eu resumiria essa tarefa na forma de teses muito breves.

Ecumenismo é, em primeiro lugar, o reconhecimento humilde de que a verdade de minha tradição religiosa não abarca a verdade toda, mas é a expressão de uma perspectiva forjada a partir de inúmeros condicionamentos sócio-históricos.

Ecumenismo é, em segundo lugar, o reconhecimento de que a verdade do outro nem sempre é antagônica à minha verdade, mas por vezes pode completar, instruir e aprofundar a minha verdade. Reitero o que já disse noutra oportunidade: evito o outro não porque estou certo de minha verdade, mas porque temo que suas verdades esfacelem minhas falsas certezas sobre ele e sobre mim mesmo.

Ecumenismo é, em terceiro lugar, a consciência de que o projeto formulado em torno do símbolo Reino de Deus não se confunde substancialmente com as confissões eclesiais cristãs existentes, mas as vaza assim como o oceano vaza uma caixa de fósforos furada.

Ecumenismo é, em quarto lugar, o reconhecimento de que a unidade (não a uniformidade) dos cristãos é o sinal mais persuasivo que as igrejas podem oferecer às sociedades, mesmo em relação às ações político-sociais e evangelizadoras.

Foi entre os Monges do Campo lá na Serra da Catita que eu pude ver que, na prática, isso tudo é muito simples. Os Monges do Campo é um movimento de leigos – homens e mulheres, casados e celibatários – fomentado, como eu disse, pela Teologia da Enxada articulada sobretudo por José Comblin. A Teologia da Enxada, como esse nome sugere, procura integrar o discipulado cristão ao trabalho campesino e a um estilo de vida muito simples. O Mosteiro da Catita não possui status institucional, portanto não se situa sob nenhuma jurisdição eclesial e diocesana. Além dos valores preconizados pela Teologia da Enxada, o silêncio, próprio do estilo monacal e como condição para a ausculta do divino e de si mesmo, é um valor sobremodo cultivado ali.

Nossa prática ecumênica na Serra da Catita consistiu simplesmente em sentar-se a uma mesa comum, comer, orar, falar sobre teologia (tivemos uma belíssima aula sobre Teologia da Enxada com o monge João), ouvir experiências alheias, sem o peso e a opressão das batalhas argumentativas. Reconhecer a legitimidade da experiência de Deus que o outro faz, por mais distinto que isso seja em relação à minha própria, é uma experiência de profunda espiritualidade, amor, graciosidade e transcendentalidade.


[i] Recentemente o então cardeal Joseph Ratzinger reformulou essas teses num documento intitulado Dominus Iesus, indo mais além que a Unitatis Redintegratio, ao afirmar que as igrejas não-católicas usurpam o termo “igreja”, e cuja salvação eterna depende de sua reintegração ao corpo institucional da Igreja Romana.

[ii] Pessoalmente, adoto a chave política para ler o Apocalipse. Comungo da idéia de que este escrito seja reflexo dos enfrentamentos da Igreja Antiga face às demandas da perseguição do Império Romano. Em meio a esses enfrentamentos, o Apocalipse constituiu-se como manifesto de resistência e esperança daquela comunidade perseguida, animada pelas promessas escatológico-messiânicas. Nessa linha hermenêutica encontra-se o instigante trabalho de Carlos MESTERS, Francisco OROFINO. Apocalipse de João: a teimosia da fé dos pequenos. Petrópolis: Vozes, 2003.

[iii] Para mais detalhes a esse respeito, cf. Hans KÜNG. Projeto de ética mundial. Petrópolis: Vozes, 1990.

terça-feira, 14 de abril de 2009

PEDAGOGIA DO PAGANISMO


Podem as igrejas ser chamadas de “movimentos sociais”?


Foi uma enorme surpresa encontrar as igrejas arroladas entre aquelas articulações coletivas que conhecemos como movimentos sociais. Foi com o livro Pobreza política*, do Pedro Demo, que eu tomei esse susto. Em que sentido poderíamos classificar as igrejas como movimentos sociais na acepção mais corriqueira que damos a esta expressão?

Que as igrejas sejam uma realidade sociológica é inegável. É verdade que o impacto social que esperamos das igrejas nem sempre corresponde às nossas expectativas. Mas não podemos pensar que por causa disso esse impacto não exista. Toda igreja, pelo simples fato de defender e replicar uma ideologia religiosa qualquer, promove impactos sociais silenciosos e imperceptíveis ao olhar ligeiro, mas nem por isso inexistentes. Tais impactos quase sempre fogem às intencionalidades das próprias igrejas. No entanto são fatos da realidade social.

Talvez Max Weber tenha sido o sujeito que melhor nos convenceu dessa tese. Seu livro clássico – A ética protestante e o espírito do capitalismo – mostra como certos dogmas protestantes produziram por tabela um modelo de ética que fomentou o desenvolvimento do capitalismo na Europa. Em nenhuma hipótese os calvinistas europeus intencionaram esse fim. Mas faz parte da economia da ação o fato de que não somos donos das implicações dos nossos atos. Conforme Weber, ao se esforçarem para glorificar a Deus com certas concepções religiosas, os calvinistas acabaram por servir de mola propulsora para o desenvolvimento do sistema econômico capitalista.

Nesse sentido, compete aos religiosos (ou pelo aos intelectuais orgânicos aí presentes) buscar discernir que impactos sociais derivam de suas convicções vivenciadas no seu comportamento. Compete aos tais discernir quais impactos sociais derivam da vivência prática da ideologia de cada grupo. Algumas perguntas a serem feitas aí seriam estas:

a) Até que ponto a expressão prática da vivência da minha fé (ou do meu grupo) legitima relações assimétricas de poder? Como isso se traduz nas relações de gênero? Como isso se traduz nas relações profissionais entre empregados e empregadores? A vivência prática das minhas convicções religiosas legitima relações assimétricas de poder nesses casos ou democratiza essas relações?

b) Até que ponto a expressão prática da minha fé embota a percepção das injustiças sociais? Em que medida minha cosmovisão religiosa ajuda a naturalizar essas injustiças mortificando assim toda tentativa de ação transformadora? Até que ponto a expressão prática da minha fé me distancia da responsabilidade de ruptura com o status quo e me conforma à passividade?

c) Até que ponto a expressão prática da minha experiência de fé sacraliza e legitima as estruturas de dominação de nossa sociedade? Até que ponto ela corrobora, por exemplo, ideologias como o neoliberalismo, comportamentos como o consumismo, ou atitudes como o individualismo?

São muitas as perguntas que poderíamos continuar a elaborar na mesma linha. Todas elas tematizam os impactos sociais, nem sempre intencionados, da vivência prática de nossas convicções religiosas. Dessa forma, toda igreja e toda religião é responsável por importantes reverberações sobre a sociedade. Elas podem funcionar como “forças estruturantes” (Pierre Bourdieu) ajudando a sedimentar os aspectos ideológicos (em sentido negativo) de uma sociedade, assim como podem funcionar como forças utópicas, isto é, contestadoras do status quo e parceiras na construção de uma sociedade cada vez mais humana.

Lamentavelmente, quase sempre as igrejas e religiões cumprem muito bem a função estruturante, enquanto prescindem do cumprimento da função utópica.

Então, já sabemos que não temos escolhas quando se trata de influenciarmos a dinâmica social. Do ponto de vista da alienação, não existe uma prática social que seja totalmente isenta, nem mesmo a vivência da espiritualidade. Ou funcionamos como forças estruturantes e alienantes, ou funcionamos como forças utópicas e contraproducentes do ponto de vista do status quo.

Como responderemos então à questão inicial sobre o status de movimento social por parte das igrejas? Elas seriam ou não movimentos sociais?

As representações que fazemos de todas as articulações coletivas conhecidas como movimentos sociais já estão impregnadas com a dimensão da contestação ao status quo, da crítica social, da luta pela justiça e pelos direitos dos desfavorecidos e humilhados da História. Dessa forma, eles não seriam estritamente um fenômeno do nosso tempo. É recorrente na história os levantes subversivos e contestadores que procuram promover relações justas entre os homens. Movimentos articulados com as questões de gênero, de etnia, da terra, de expressão sexual, de habitação, de condições de trabalho, da educação, por exemplo, são abundantes na história.

Todavia, no século 20 tivemos uma reconfiguração/burocratização desses movimentos e sua ascensão à qualidade institucional/organizacional, com legitimidade jurídico/legal, além de um alcance maior das bases da sociedade, assim como uma inserção maior de classes historicamente distantes dessas articulações. A despeito dos conhecidos problemas que sempre advém dos processos de burocratização desses movimentos, permanece a representação de que se tratam de forças contestatórias, por vezes subversivas, engajadas na construção de um modelo de sociedade mais justo e mais humano.

É óbvio que com essa representação em mente podemos dizer as igrejas podem também gozar do status de movimentos sociais. Se elas têm cumprido todas as expectativas apegadas àquelas representações constitui outra discussão. Se elas se portam como forças retrógradas da história, constitui outra discussão mais diferente ainda.

Os movimentos sociais existentes – com toda a ambigüidade que os perfazem – podem oferecer importantes pistas para a reflexão acerca do status de movimento social por parte das igrejas. A meu ver, uma possível aproximação entre as igrejas e esses movimentos deveria se guiar à base de três perguntas-guia:

a) A primeira é a pergunta sobre a natureza do grito em questão. Há legitimidade no grito e na articulação teórico-prática de tais movimentos? O conteúdo mesmo da luta que move tais articulações é justo e plausível ou é produto de interesses privados e desarticulados das tensões sociais? A causa promove a reparação e a restituição de dívidas históricas legais e direitos humanos fundamentais aos interessados?

b) A segunda tem como pressuposto uma ousada hipótese teológica. Em que medida esses movimentos são “traduções secularizadas” de certos anseios bíblicos? Até que ponto a luta pela paridade nas relações de gênero, pela democratização fundiária, pela erradicação da pobreza, pela humanização das condições de trabalho, pela paridade étnica, por exemplo, atualizadas nos movimentos sociais, são a manifestação secular possibilitada pela declinação do Cristianismo a esses quefazeres? Em que medida tais movimentos são “animados pelo Espírito da vida”?

c) A terceira só é possível a partir de uma atitude de muita humildade. Em que medida a práxis desses movimentos pode informar e aperfeiçoar a práxis eclesial cristã? Submetidos ao olhar crítico e ao discernimento evangélico, os movimentos sociais teriam algo a oferecer quando se trata de otimizar a eficácia missiológica das igrejas?

São questões contundentes que podem ser facilmente rejeitadas pela mentalidade auto-suficiente e encastelada que caracteriza certas igrejas e religiões. Todavia, enfrentadas com seriedade e humildade, poderiam trazer renovo à nossa prática pessoal e comunitária como cristãos.

Essa coisa de equiparar “os que são do reino” com “os que não são do reino” não é nada original. Essa “pedagogia do paganismo” não é produto de minhas aventuras teológicas. Antes, pertence às inclinações do próprio Jesus de Nazaré. Lembremos que ele tratou um sargento romano, uma pagã siro-fenícia e os hereges samaritanos como protótipos de cidadãos do Reino de Deus. Por que não aprenderíamos nós com aqueles que, no meio desse mundo louco e injusto, arriscam suas vidas na construção de uma sociedade melhor e mais igual para todos e todas?


* DEMO, Pedro. Pobreza política. Campinas: Autores Associados, 2006.

segunda-feira, 6 de abril de 2009

A BÍBLIA E A CRISE NOS TABULEIROS ALAGOANOS


Tensão econômica e solidariedade à luz da tradição profética

Nós aqui na micro-região dos Tabuleiros Alagoanos estamos atravessando uma profunda crise relacionada substancialmente a fatores de ordem econômica. Como todos sabem, a Zona da Mata em Alagoas ainda vive sob a hegemonia do imperialismo econômico da cana de açúcar. É verdade que em nível nacional, desde 2007 esse setor econômico recebeu notável impulso devido à carência mundial por matrizes energéticas limpas. No entanto, aqui entre nós os efeitos da atual crise econômica mundial têm sido mais predadores que a expectativa criada ao redor da produção de biocombustíveis – no caso, o etanol.

Muito próximo mim se desenrola um drama coletivo relacionado à iminente bancarrota da Usina Brasil Etanol (antiga Usina Utinga Leão S/A). Todos os dias chegam a nós notícias sobre o desespero de trabalhadores que, em função dos atrasos salariais que já ultrapassam um mês, não conseguem sustentar suas famílias. Agregada a essa situação que vai beirando o caos está a fatídica falta de articulação desse mesmo quadro de trabalhadores do complexo industrial da referida empresa. Acossados por uma tradicional atitude de intimidação por parte dos empregadores, permeada por ameaças de demissões, os trabalhadores ligados ao complexo industrial são forçados a continuar suas atividades, a despeito da situação na qual se encontram suas famílias.

Por sua vez, a referida empresa tem cumprido pontualmente seus compromissos salariais junto ao quadro de trabalhadores do campo. Informados pelos movimentos sociais articulados com a luta pela democratização fundiária (sobretudo pelo MST), esses trabalhadores do campo – cortadores, tratoristas, e etc. – resistem às imposições e ao trato unilateral imposto pelos latifundiários da cana. Cada tentativa de acossamento por parte desse empresariado é respondida com a ameaça de greves e de manifestações populares.

A nossa comunidade religiosa – a Igreja Batista na Forene – se encontra ligada a todos esses acontecimentos. Temos famílias sofrendo os efeitos da desestruturação econômica desta usina, isto é, famílias cuja subsistência está ligada a esse complexo industrial e, portanto, apreensivas quanto ao presente e ao futuro, e temos famílias ligadas ao quadro campestre que, graças ao contato com os referidos movimentos sociais, se encontram numa situação mais tranqüila em termos de sua subsistência.

No último domingo (05/04) achei por bem refletir sobre essas questões com a Igreja Batista aqui na Forene. Lembrava-lhes da situação de crise enfrentada por Israel na ocasião da invasão babilônica, e de como as falsas consolações e as curas superficiais foram uma tentação presente naqueles dias. Sobretudo Jeremias tematizou a tentação das falsas consolações e das curas superficiais. Tanto uma quanto a outra são tentações porque se dirigem sempre ao ser fragilizado, aberto ao primeiro sufrágio que lhe apareça. Ademais, são tentações porque depositam a responsabilidade de transposição da crise sempre nas mãos de outrem: Deus, políticos, profetas...

A narrativa particular do embate entre os profetas Hananias e Jeremias (Jr 28,1-17) nos conduz à conclusão de que crises não podem ser transpostas à base de ilusões. Mas eu dizia ao meu pessoal que somente hoje nos é possível chegar tão tranquilamente a essa conclusão teórica.

[Se possível, leia a narrativa de Jr 28,1-17 antes de terminar a leitura desse artigo.]

Imaginemo-nos naquela situação. Imaginemo-nos submersos numa tragédia oni-abrangente. Imaginemo-nos como um povo saqueado, com nosso centro cultural-econômico-político-religioso sitiado, nossas tradições religiosas mais profundas ultrajadas por uma potência estrangeira imperialista, nossos dirigentes e referenciais políticos seqüestrados. Enfim, imaginemo-nos numa situação onde todos os grandes pilares de sustentação do sentido de nossas vidas estão sendo aniquilados. Não podemos fazer esse exercício mental sem lembrar da mais profunda representação que Israel fazia de si, como “nação eleita”, “povo exclusivamente escolhido entre os povos”, e como “povo único de Deus”. Numa situação como essa, o discurso de Hananias seria acolhido por qualquer um de nós como genuína “palavra de Deus”.

Todavia, embora essas expressões não apareçam textualmente ali, a narrativa segue com a denúncia de que a palavra de Hananias estava entre aquelas que poderiam ser classificas como falsas consolações, curas superficiais e ilusões. Como dissemos, a tentação desse tipo de discurso consiste na transferência de responsabilidades na transposição da crise. Além disso, esse discurso cega o sujeito para toda criatividade e para a possibilidade de refletir sobre seu próprio papel no advento da crise. É verdade que esse último aspecto só se aplica à crise de Israel. A teologia desses textos advoga a idéia de que o desterro na Babilônia veio como produto da infidelidade do povo frente à aliança com Javé. Por outro lado, não se pode dizer que os trabalhadores da usina tenham responsabilidade quanto ao advento da crise que os abate (ainda que tenham responsabilidade sobre a forma de enfrentá-la).

Então, reiteramos a idéia a que a narrativa nos conduz: crises não podem ser transpostas à base de ilusões, de falsas consolações ou de curas superficiais. Ao mesmo tempo chamamos a atenção para a difícil tarefa de discernir entre os discursos que pretendem ser Palavra de Deus e os discursos ilusórios, alienantes e superficiais. É muito tênue o fio que os separa.

Dia desses, por exemplo, ouvi perplexo um desses pastores midiáticos afirmar que “com o povo de Deus não tem crise” e que “a crise pode ter lugar no mundo, mas não tem lugar na igreja”. Fatidicamente, declarações como essas resumem minimante toda uma ideologia. Primeiro, revela uma forma de cristianismo atravessado pelo “arquétipo da Arca de Nóe”, onde a igreja flutua cinicamente sobre as águas do caos enquanto o resto da humanidade segue rumo à morte. Segundo, revela seu pertencimento à tradição cujo símbolo poderia ser o profeta Hananias, onde vigora a alienação que deriva das falsas consolações e das curas superficiais.

Nós aqui, como comunidade cristã, temos optado por “pular para o lado de fora da arca”. Mais precisamente, temos optado por “chorar com os que choram”. É sentindo de perto a possibilidade da morte com todos os homens que a igreja se aproxima mais da qualidade do Evangelho. Sentir as dores e as agruras da crise junto com todos os implicados aqui tem nos parecido mais próximo do caminho de Jesus Cristo. Sem falsas consolações, curas superficiais ou ilusões, os próprios implicados (pelo menos entre aqueles que pertencem à nossa comunidade) compreenderam que sem articulação coletiva e engajamento da classe operária dificilmente essa crise se resolverá priorizando seus direitos fundamentais.

E quanto ao flagelo da fome, contra esse não há teorização nem meditação bíblica que aplaque. Somente a mão aberta e o repartir misericordioso do pão podem ajudar. Porque é verdade que “nem só de pão vive o homem...” Mas também é verdade que na falta do pão, dificilmente o homem tem interesse por “...toda palavra que sai da boca de Deus”.