quarta-feira, 22 de abril de 2009

ECUMENISMO E TEOLOGIA DA ENXADA


Sobre uma experiência entre os Monges do Campo na Serra da Catita

Eu tenho duas convicções fundamentais acerca da tarefa ecumênica: (1) se entendêssemos em profundidade as razões dessa proposta, e se submetêssemos nossos pré-conceitos não refletidos a uma avaliação dos reais porquês do ecumenismo, nós o abraçaríamos com uma paixão ardente diferente dessa postura de gueto que nos caracteriza como igrejas protestantes no Brasil; (2) como forma de sinalização para a sociedade, a prática ecumênica é o que de mais persuasivo as igrejas podem oferecer ao mundo, mesmo em relação às ações político-sociais e evangelizadoras.

Embora eu mantenha essas convicções, já faz algum tempo que não me ocupo teoricamente desse tema. Já faz dois anos que iniciei o esboço de uma espécie de justificação dessas convicções acima – projeto que deixei de lado. Esse tema me volta agora provocado por uma experiência prática na Serra da Catita, em Alagoas, junto ao mosteiro onde vivem os Monges do Campo. A convite dos meus amigos pastor Wellington Santos e da pastora Odja Barros, fiz a prazerosa experiência de conhecer essa comunidade fomentada pela Teologia da Enxada, fortemente atrelada à influência de José Comblin.

Instigado por essa experiência, eu gostaria de resgatar parte do esboço da discussão que iniciei há dois anos. Depois de discutir o caráter ecumênico, sincrético e inter-religioso presente nos processos formativos da própria Bíblia e da tradição da Igreja, eu me dedicava a discutir justamente as concepções equivocadas acerca da palavra “ecumenismo”. Portanto, as posições isolacionistas e a mentalidade de gueto da maioria das igrejas cristãs atuais são profundamente contrárias ao processo formativo da própria Bíblia e da tradição da Igreja, que é eminentemente ecumênico, sincrético e inter-religioso.

Cheguei a sinalizar no meu esboço para dois equívocos na compreensão do que seja ecumenismo: (1) Ecumenismo confundido com “unicionismo” e “subordinacionismo”; e (2) Ecumenismo como produto das “escatologias fatalistas. As confusões, no entanto, são bem maiores que essas duas. Seguem abaixo sem qualquer modificação.

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3.1 Ecumenismo confundido com “unicionismo” e “subordinacionismo”

É bem verdade que a expressão “ecumenismo” por si só causa calafrios em muita gente das igrejas. Mesmo para quem transita nas instituições de educação teológica é comum ouvir-se os maiores absurdos acerca desse termo. Bem, explicar as razões dessa dissonância não é nossa intenção aqui. Cabe dizer somente que grande parte dela deve-se ao ensino reproduzido pelas autoridades eclesiais. Há, todavia, um núcleo que une todas essas compreensões apressadas acerca do que venha a ser “ecumenismo”. Esse núcleo é “a idéia de que o ecumenismo é algo que contradiz os desígnios de Deus para a Igreja”, por vezes atribuído às forças do mal. Bem verdade é que algumas das noções sobre ecumenismo nutridas pelos protestantes evangélicos no Brasil são justificadas. Dedicaremos algumas linhas para debatermos algumas dessas noções mais arraigadas nessas igrejas.

Para dizermos em primeiro lugar o que não é ecumenismo, começaremos por uma das noções mais arraigadas sobre esse tema nas igrejas que compõem o protestantismo evangélico brasileiro. Para parte significativa dessas igrejas e seus membros, ecumenismo é sinônimo de “fusão religiosa”. É comum entre esses cristãos rejeitar-se qualquer aproximação ou mesmo o uso de terminologia ecumênica fundados na idéia artificial da Grande e Única Igreja Cristã. Todas as suspeitas, nesse sentido, se dão em relação à Igreja Católica, acusada de tal pretensão. A idéia de unicionismo temida aqui corresponderia a um provável retorno das igrejas protestantes à institucionalidade gerenciada pelo catolicismo. Se essa idéia não for justificada em si mesma (e eu creio que não é), há pelo menos alguns elementos oriundos do catolicismo que justificam o temor e a distância dos protestantes em relação à esta proposta ecumênica. São eles:

1. Um primeiro motivo diz respeito à terminologia adotada depois do Concílio Vaticano II em relação às igrejas protestantes como irmãos separados. Tal terminologia procede dos pressupostos da Encíclica Papal Unitatis Redintegratio (que vide alguma citação...) [Reintegração da Unidade] de João XXIII. Ali, textualmente se afirma que a plenitude do mistério revelado em Cristo reside sobre a instituição Igreja Católica Apostólica Romana, cabendo às demais igrejas distantes dessa tradição – incluindo aí Protestantes e também Ortodoxos – uma participação parcial nesse mistério[i]. Em lugar de promover maior aproximação e comunhão entre essas igrejas, tudo isso acabou por sedimentar a suspeita protestante de um projeto unicionista com alcunha ecumênica. Os resultados foram desastrosos a partir daí.

2. O outro forte motivo (esse menos popular) da suspeita unicionista por parte dos protestantes, que a nosso ver também se justifica, é a ausência da Igreja Católica no World Council of Churches [Conselho Mundial de Igrejas – CMI]. O CMI, criado em 1948, é um órgão que congrega igrejas cristãs de todo o mundo sob um critério simples e único: a confissão de que “Jesus Cristo é o Senhor”. Tendo em seu quadro igrejas das mais diversificadas expressões confessionais – evangélicos históricos, reformados e pentecostais, assim como ortodoxos –, até então a Igreja Católica não despertou interesse nessa proposta. Tal atitude, para muitos protestantes, reflete o interesse ecumênico-unicionista-subordinacionista como única proposta de aproximação da Igreja Católica em relação às demais igrejas. É preciso dizer, todavia, que isso é expressão das forças gerenciais daquela igreja, e não representa um consenso interno. É a “voz da Igreja” somente enquanto é a voz da hierarquia. Por certo, não é a “voz do povo católico”.

Nenhum projeto desse tipo (unicionista ou subordinacionista) deve ser pensado em relação à proposta ecumênica. Primeiro, porque sempre pressupõe que o outro reconheça seu estado de equívoco. Dessa forma, na base de tal proposta estará sempre a altivez e a arrogância que não combinam com as reais relações ecumênicas. Segundo, porque contradiz aquilo que afirmamos acima como sendo parte da essência da fé cristã: a diversidade e a pluralidade. O desafio de bem compreender as distinções entre “união” e “unidade” está sempre diante de nós. Enquanto é comum perceber união como a fusão orgânica dos grupos e a supressão de suas diferenças, deve-se perceber que a unidade pressupõe essas mesmas diferenças. Mais ainda, no dizer de Moltmann “só há unidade [ou a reintegração dela] entre diferentes”. Portanto, ecumenismo não é fusão religiosa, nem unicionismo cúltico e nem subordinacionismo institucional de quem quer que seja a quem quer que seja.

3.2 Ecumenismo como produto das “escatologias fatalistas”

Aqui entramos no campo do imaginário mais popular e divulgado entre as igrejas que compõem o protestantismo evangélico brasileiro de agora. Para a maioria dessas igrejas, e para a maioria de seus líderes, o ecumenismo está vinculado às interpretações fatalistas do Apocalipse, sejam elas milenistas, pré-milenistas ou a-milenistas.

Creio não restar dúvidas de que o Apocalipse seja, entre os livros da Bíblia, o de mais difícil interpretação. Suas abundantes figuras de linguagens, sua linguagem perceptivelmente velada e codificada, fazem com que sua interpretação permaneça sempre relativizada e colocada no campo da probabilidade. Pelo menos, assim deveria ser! Todavia, a primeira ingenuidade na interpretação do Apocalipse entre a maioria dos cristãos está justamente em absolutizar “uma” dentre as múltiplas maneiras de ler aquele texto. É bom que se saiba que o Apocalipse possui diversas chaves interpretativas. Todas carregam possibilidades de erros e acertos, e nenhuma delas obtém o êxito de ser inequívoca[ii].

É do contexto de uma das interpretações fatalistas do Apocalipse que emerge outra idéia apressada de ecumenismo. É comum a essas interpretações identificar a Babilônia dos capítulos 17 e 18 como um signo que remete ou à Igreja Católica ou a um governo político de alcance mundial. Nessa compreensão, prevêem-se a uniformização mundial tanto da estrutura política quanto da estrutura religiosa como atos da “besta”, ou do “falso profeta” que estão por vir (13,11-18). Trata-se do período que é relacionado à expressão “grande tribulação” (2,22; 7,14) presente no texto sagrado. A partir desse ponto de vista, toda tentativa de aproximação das confissões cristãs e religiosas antagônicas fica sob a suspeita de conter já os germens dessa escatologia fatalista. Em outras palavras, corroborar com tais atitudes é o mesmo que endossar os projetos das forças do mal, previstos para os fins dos tempos. O ecumenismo, visto em macro-proporções como harmonia espiritualista global, corresponderia à versão religiosa da dominação do anticristo. Preserva-se nessa interpretação do Apocalipse a idéia de “fusão religiosa” e unicionismo comentada no tópico anterior. O agravante aqui é o fato dessa macro-fusão político-religiosa ser vista como expressão das forças do mal durante o alvorecer da história. A atitude ecumênica, nesse caso, não se dá em função de si mesma. Dá-se, de outra forma, como mero meio cujas finalidades estão relacionadas à dominação e ao poder do mal.

A nosso ver, nada mais romântico, anacrônico e distante do espírito das intenções verdadeiramente ecumênicas.

Há pelo menos razões bem razoáveis para refutar essa interpretação. A tarefa ecumênica, em primeiro lugar, não pesa parcialmente sobre nenhum grupo ou instância cristã solitariamente. É uma vocação e um chamado concomitante de toda comunidade cristã universal. Não se trata de uma consciência a que devamos ser impelidos exteriormente por quem quer que seja, nem mesmo por esse ensaio. Brota das demandas internas, como dito mais acima, e das demandas externas da missão perante a sociedade. Foi pensando assim que Hans Küng, utilizando-se da terminologia de Thomas Kuhn, chamou de “paradigma ecumênico” a vocação inescapável da teologia e da atividade das igrejas cristãs desse tempo[iii]. Se pensarmos assim, nenhuma imposição vertical pode ser identificada com a proposta ecumênica. É sempre movido por razões espontâneas da horizontalidade que se sai da arrogância e intolerância para o encontro dialogal com o outro. Qualquer coisa diferente disso só poderá ser encarada como imposição servil, que nada tem a ver com os sentimentos que nos arremetem à tarefa ecumênica.

Embora eu não comungue com a interpretação do Apocalipse que dá vazão a esta noção de ecumenismo, isto é, com as interpretações fatalistas, não creio que a chave interpretativa que adoto seja também inequívoca. Permanece a consciência de que é uma possibilidade entre tantas. Todavia, partindo desse vasto campo de possibilidades, permanece sendo possível (embora eu não creia, reitero) que as coisas sucedam como prevê tal interpretação fatalista. A única coisa a ser dita nesse caso é que a expressão “ecumenismo” não cabe para definir esse projeto de unificação global político-religiosa deduzido do Apocalipse. Outro termo deveria ser utilizado aí. As motivações que movem o exercício ecumênico são outras bem distintas.

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Meu esboço de dois anos atrás, muito maior que o trecho aqui reproduzido, ficou suspenso exatamente nesse ponto. Depois dessa parte desconstrutiva, isto é, depois de dizer o que não é ecumenismo, seria preciso aclarar essa expressão e falar de seus porquês autênticos.

Hoje eu resumiria essa tarefa na forma de teses muito breves.

Ecumenismo é, em primeiro lugar, o reconhecimento humilde de que a verdade de minha tradição religiosa não abarca a verdade toda, mas é a expressão de uma perspectiva forjada a partir de inúmeros condicionamentos sócio-históricos.

Ecumenismo é, em segundo lugar, o reconhecimento de que a verdade do outro nem sempre é antagônica à minha verdade, mas por vezes pode completar, instruir e aprofundar a minha verdade. Reitero o que já disse noutra oportunidade: evito o outro não porque estou certo de minha verdade, mas porque temo que suas verdades esfacelem minhas falsas certezas sobre ele e sobre mim mesmo.

Ecumenismo é, em terceiro lugar, a consciência de que o projeto formulado em torno do símbolo Reino de Deus não se confunde substancialmente com as confissões eclesiais cristãs existentes, mas as vaza assim como o oceano vaza uma caixa de fósforos furada.

Ecumenismo é, em quarto lugar, o reconhecimento de que a unidade (não a uniformidade) dos cristãos é o sinal mais persuasivo que as igrejas podem oferecer às sociedades, mesmo em relação às ações político-sociais e evangelizadoras.

Foi entre os Monges do Campo lá na Serra da Catita que eu pude ver que, na prática, isso tudo é muito simples. Os Monges do Campo é um movimento de leigos – homens e mulheres, casados e celibatários – fomentado, como eu disse, pela Teologia da Enxada articulada sobretudo por José Comblin. A Teologia da Enxada, como esse nome sugere, procura integrar o discipulado cristão ao trabalho campesino e a um estilo de vida muito simples. O Mosteiro da Catita não possui status institucional, portanto não se situa sob nenhuma jurisdição eclesial e diocesana. Além dos valores preconizados pela Teologia da Enxada, o silêncio, próprio do estilo monacal e como condição para a ausculta do divino e de si mesmo, é um valor sobremodo cultivado ali.

Nossa prática ecumênica na Serra da Catita consistiu simplesmente em sentar-se a uma mesa comum, comer, orar, falar sobre teologia (tivemos uma belíssima aula sobre Teologia da Enxada com o monge João), ouvir experiências alheias, sem o peso e a opressão das batalhas argumentativas. Reconhecer a legitimidade da experiência de Deus que o outro faz, por mais distinto que isso seja em relação à minha própria, é uma experiência de profunda espiritualidade, amor, graciosidade e transcendentalidade.


[i] Recentemente o então cardeal Joseph Ratzinger reformulou essas teses num documento intitulado Dominus Iesus, indo mais além que a Unitatis Redintegratio, ao afirmar que as igrejas não-católicas usurpam o termo “igreja”, e cuja salvação eterna depende de sua reintegração ao corpo institucional da Igreja Romana.

[ii] Pessoalmente, adoto a chave política para ler o Apocalipse. Comungo da idéia de que este escrito seja reflexo dos enfrentamentos da Igreja Antiga face às demandas da perseguição do Império Romano. Em meio a esses enfrentamentos, o Apocalipse constituiu-se como manifesto de resistência e esperança daquela comunidade perseguida, animada pelas promessas escatológico-messiânicas. Nessa linha hermenêutica encontra-se o instigante trabalho de Carlos MESTERS, Francisco OROFINO. Apocalipse de João: a teimosia da fé dos pequenos. Petrópolis: Vozes, 2003.

[iii] Para mais detalhes a esse respeito, cf. Hans KÜNG. Projeto de ética mundial. Petrópolis: Vozes, 1990.

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