domingo, 10 de maio de 2009

A FACE MATERNA DE DEUS


Um elogio das formas não-patriarcais da experiência religiosa

Quis a vida que minha formação humana de base fosse privada de uma influência materna conforme os padrões. Aos quatro anos de idade meus pais se separaram. Minha criação coube a meu pai. Isso era 1981. Hoje, 2009, eu completo um ciclo de 12 anos sem qualquer tipo de contato com a mulher que me concebeu.

É bem verdade que quer tenhamos sido criados pelo pai, quer ela mãe, nossa formação humana está perpassada significativamente pela cultura patriarcal. Assim como com o nascimento biológico trazemos inscritas em nossa constituição genética as predisposições biofísicas de nossa genealogia, com o nascimento cultural vão sendo impostas a nós as marcas de uma cultura onde vige o primado do macho. Então, ainda que em nossa criação familiar tenha prevalecido a figura da mãe, as demais instituições sociais – escola, igreja, mídia, etc. – permanecem como bastiões da cultura patriarcal. A internalização desses valores é, portanto, algo de que não podemos escapar.

Não obstante, tudo indica que a maternidade se configure como um dos símbolos mais adequados quando se trata de forjarmos nossas representações da existência humana, sobretudo quando se trata de nossa relação com a terra. Em contrapartida, a cultura ocidental – mormente o cristianismo – fez do pai a figura arquetípica por excelência. O que perdemos com isso?

É verdade, Jesus de Nazaré disse que Deus era Pai. Mais especificamente disse que Deus era Abba, que era a forma como as criancinhas diziam paizinho em aramaico. Mas também isso deve ser visto à luz do horizonte de seu tempo. Afinal, que afirmação humana sobre Deus tem o poder de ser unívoca? Deus é o mistério que transborda toda compreensão humana. Portanto, toda fala sobre Deus é uma espécie de golpe analógico. Só é possível dizer que Deus é Pai porque existe uma ínfima intersecção entre a paternidade divina e a paternidade humana. No entanto, elas não se confundem. A diferença qualitativa entre Deus Pai e o Homem Pai permanece infinita (Karl Barth).

Com efeito, se a possibilidade daquela analogia está atrelada na intersecção da experiência da paternidade divina e humana, temos muito mais motivos para dizer sem medo de cometer sacrilégio: Deus é Mãe. Porque essa intersecção é muito maior que aquela!

O recalque à maternidade e à feminilidade em Deus cresce com o desenvolvimento do ocidente. Em contrapartida, já a Torah sinalizava esse traço feminino e materno da divindade. Ruah, que é a palavra hebraica para Espírito, é uma palavra feminina. Segundo Antonio Magalhães, o relato mítico do Gênesis (pontualmente Gn 1,2) dá a entender que a ruah tenha sido uma espécie de útero da criação, isto é, o espaço vital que possibilitou o surgimento da vida. Calvino teria intuição semelhante ao adjetivar o Espírito Santo de fons vitae – fonte da vida –, o que lhe faculta a maternidade de todas as coisas.

Mas se o desenvolvimento teológico no ocidente – sobretudo em função das demandas da sociedade Greco-romana onde o Novo Testamento foi composto – consistiu num recalque à feminilidade e à maternidade na fala sobre Deus, é mister fazer menção a algumas tradições pouco conhecidas que expressaram essa sensibilidade. Jürgen Moltmann* em sua pneumatologia nos oferece inúmeros desses casos. No Evangelho dos Hebreus, por exemplo, se lê Jesus dizendo: “Logo tomou-me minha mãe, o Espírito Santo, por um de meus cabelos e transportou-me para o grande monte Tabor”. No escrito gnóstico-cristão Cântico das Pérolas a Trindade consiste em Deus como Pai, o Espírito Santo como Mãe, e no Cristo como Filho.

Para mim, o caso mais especial é o do Conde Zinzendorf, grande patriarca dos Irmãos Moravianos, para quem a Trindade, concebida segundo a imagem de uma família, era uma espécie de modelo da comunidade fraterna sobre a terra: “Como o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo é nosso verdadeiro Pai / e o Espírito de Jesus Cristo nossa verdadeira Mãe; porque o Filho do Deus vivo... é o nosso verdadeiro irmão. O Pai tem que nos amar e não pode fazer de outra maneira, a Mãe tem que nos guiar pelo mundo e não pode fazer de outra maneira, o Filho, nosso irmão, tem que amar as almas como sua própria alma, o corpo como seu próprio corpo, porque somos carne de sua carne e ossos de seus ossos, e não pode fazer de outra maneira”.

Moltmann conclui dizendo que “uma certa despatriarcalização da imagem de Deus tem como conseqüência também uma despatriarcalização e desierarquização da Igreja”. O dado triste disso tudo é o fato de que essas tradições estão entre aquelas que foram vencidas na história das Igrejas.

Sem dúvida o Deus estritamente patriarcal corresponde à uma hipostatização, no sentido de Feuerbach. Corresponde à projeção do desejo infinito de supremacia do masculino. Não há melhor fundamento que tal Deus para justificar as estruturas patriarcais tanto dentro das igrejas quanto fora delas. Nesse sentido Feuerbach, a meu ver, tem mais razão que Freud. Para o psicanalista vienense, Deus consistia numa produção do psiquismo universal a fim de socorrer os homens diante do seu infantilismo perante as intempéries da existência, perante as forças da natureza e, sobretudo, perante a realidade inescapável da morte. Mas Freud esqueceu que nesses casos é à mãe que suplicamos auxílio, e não ao pai.

Como eu disse mais acima, a intersecção entre a experiência materna-humana e a experiência materna-divina é muito maior que no caso masculino. Sim, Deus também é nossa Grande Mãe. Essa analogia também lhe cai muitíssimo bem!

Mãe, que como todas as mães, é fons vitae. Mas não é somente fonte da vida. É também vita vivificans. Mãe que, conforme Jesus de Nazaré, acolhe seus filhos e filhas tal como uma galinha acolhe seus pintos debaixo de suas asas (Lucas 13,34). Mãe que, conforme Isaías, consola como qualquer outra (Isaías 66,13).

Para mim já não há mais problema em pensar que o meu Deus (a minha imagem de Deus) é somente um produto de minhas projeções. Porque considero isso inescapável. Não há ato de fé e de crença em deuses e demônios, céus e infernos, que não se faça à base de projeções daquilo que nós somos. Nossa relação com Deus se dá sempre pela mediação da imagem que dele fazemos. Quem de nós põe em suspenso o turbilhão de pulsões, experiências, ambigüidades, memórias e desejos no ato de crer? Cremos com tudo isso. Melhor, cremos a partir de tudo isso. Nossa imagem de Deus quase sempre cumpre a função psicológica de aplacar os monstros e tapar buracos de nosso ser.

No meu caso, portanto, Deus é mais Mãe do que pai. Abaixo daquilo que Deus é em si mesmo, minha imagem dele me cura da ausência do amor materno-humano. Todas essas coisas, por sua vez, dizem respeito somente a nós mesmos. Deus permanece sendo o que é, a despeito de nossa fala sobre ele/ela e de nossas projeções ao seu respeito.

Ademais, reconhecer esse “rosto materno de Deus” (Leonardo Boff) seria uma forma sui generis de homenagear essa miríade de mulheres que sozinhas criam seus filhos, e por vezes anulam sua existência em função dos mesmos. Seria uma forma de homenagear esses seres que, assim como o Cristo, oferecem da própria carne para que seus filhos tenham vida.



* Cf. MOLTAMNN, Jürgen. O Espírito da Vida: Uma pneumatologia integral. Petrópolis: Vozes, 1999, p. 152-155.

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