quinta-feira, 14 de maio de 2009

RELIGIÃO E VIOLÊNCIA


Contra certas formas discursivas sobre a destrutividade humana

Talvez uma das maiores contradições potenciais da ideologia religiosa – também do nosso velho protestantismo – consista no fato de que ao confessar um conhecimento revelado, e, portanto, supostamente autêntico em relação ao sentido profundo do mundo e da vida, ela opere a construção da falsa consciência, naturalizando relações assimétricas de poder e sacralizando comportamentos humanos reprováveis e indesejáveis. Para usar uma ilustração, isto corresponderia ao cego que insiste no exercício da oftalmologia.

Um exemplo disso está num tipo de discurso religioso perante as múltiplas modalidades da violência humana.

O discurso de alguns grupos religiosos sobre a violência está entre aqueles que poderíamos chamar de discursos negados ao nível público. Esses discursos negados são aqueles que circulam somente no nível interno das comunidades, sendo aceitos somente depois do pesado trabalho de formação ideológica ali. Caso contrário, isto é, sem esse processo de formação na ideologia religiosa, nem mesmos os crentes seriam capazes de aceitar e reproduzir tais discursos. Se eles são negados ao nível público, é porque se tem consciência de que, no fundo, são absurdos, e só podem fazer sentido para sustentar uma cosmovisão caduca, arbitrariamente tirada da Bíblia.

Essa é uma realidade íntima de toda religião: ocultar certas convicções do nível público, sobretudo do discurso evangelizador, a fim de não escandalizar.

Vamos ao exemplo de um tipo discurso religioso sobre a violência humana.

Parafraseando Paulo Freire eu diria que o problema central de um certo discurso da religião sobre a violência é a produção da desproblematização do presente[1]. Em termos práticos, a desproblematização do presente se traduz numa atitude passiva e por vezes cínica em face de realidades brutais de violência. O caso alagoano é dos mais eloqüentes.

Se levarmos em conta os diversos constructos teóricos em torno desse fenômeno – a violência política, policial, midiática, simbólica, concreta, urbana, estatal, institucionalizada e etc. –, poderíamos dizer que Alagoas teve sua construção civilizatória feita à base de violências múltiplas, quase sempre como instrumentos de manutenção de um poder oligárquico e impiedoso. Em casos como esse, o silêncio, se não é filho da alienação, é o fruto de um profundo e reprovável cinismo. Jung Mo Song[2] tem razão quando afirma que o cinismo de certas ideologias (e teologias) não está naquilo que elas dizem, mas naquilo que elas não dizem.

Esse discurso sobre a violência que certos grupos religiosos negam ao nível público é justamente aquele que liga o recrudescimento desse fenômeno aos esquemas escatológicos fundamentalistas. Dito peculiarmente, a violência é interpretada aí como sinal dos tempos em sentido estritamente teológico. A meu ver, essa representação da violência enquanto sinal dos tempos seria teologicamente legítima se tivesse fundo crítico. Relações sociais pensadas teologicamente, sobretudo à luz símbolo Reino de Deus, exigem, entre outras coisas, que aquelas violências acima citadas sejam rejeitadas. Nesse sentido, a violência pode ser perfeitamente interpretada teologicamente como sinal dos tempos, desde que o fundo crítico subjaza essa leitura.

Infelizmente, não é o que ocorre na forma dos discursos religiosos mais comuns sobre esse fenômeno humano. Sinal dos tempos, nesses casos, é o mesmo que sinal escatológico para a Igreja. Isso é possível porque as Igrejas vivem do mal incurável de se auto-proclamarem como concretizações do Reino de Deus. Assim, todos os elementos da História que deveriam apontar para a irrupção do Reino de Deus são entendidos como sinalizações para as próprias Igrejas. O recrudescimento da violência humana seria um desses elementos. Quanto mais elementos “sinalizadores” desse tipo se manifestam, mais se afirma a atitude escapista e apolítica desses grupos.

Nilo Odalia[3] tem razão quando diz que o ato violento não traz em si uma etiqueta de identificação. Quase sempre desconhecemos as raízes profundas da violência com que temos contato, mormente por meio da mídia. Além disso, às vezes são múltiplas as interpretações sobre o mesmo ato violento. Todavia, isso não quer dizer que as raízes da violência em suas diversas faces nos sejam inacessíveis, inatingíveis e inapreensíveis. Erich Fromm chamou de análise da destrutividade humana o labor de compreender as razões profundas da violência. No seu caso, o trabalho consistiu numa etiologia psicológica desses impulsos destrutivos.

O discurso que representa a violência e seu recrudescimento como sinalização escatológica para as Igrejas, pelo contrário, não esclarece nada. Do contrário, obnubila a realidade e engendra a falsa consciência. Além disso, sacrifica no altar da alienação toda possibilidade de contra-ofensiva, corroborando, assim, condições sociais onde a violência pode continuar campeando.

Há, por sua vez, outro sério problema ainda ligado a este tipo de discurso representacional da violência.

É amplamente sabido que a hermenêutica fundamentalista é politicamente conservadora. Historicamente esse conservadorismo político dos religiosos conservadores se traduziu não somente em simples identificação ideológica, mas em freqüentes adesões e cooperações ativas em práticas “purgatórias” ou “inquisitoriais” direcionadas a elementos considerados subversivos: comunistas, revolucionários, liberais, e etc.

Na prática, essa falsa consciência leva a outros três terríveis equívocos: (1) sacraliza o Estado como instituição maior de gerência social; (2) identifica o “espírito legítimo” desse Estado com as ideologias políticas conservadoras; (3) e se torna cega para uma das piores formas de violência, que justamente a institucionalizada pela via estatal.

***

Não dizer não é o mesmo que não comunicar. O silêncio comunica, e comunica eloqüentemente, conforme a situação. Por outro lado, certas religiões são tristemente verborrágicas. Vivem da ânsia de tudo saber e de tudo vaticinar. Enchem de palavras vãs realidades inefáveis da existência. A violência humana, embora possa ser perfeitamente discernível, tem o seu quê de inefabilidade em função de sua ancestralidade. Resiste triste e recorrentemente a todo progresso do espírito.

É muito dizer que a violência tem suas raízes na alienação humana, que biblicamente chamamos de pecado? Sim, é muito! É uma espécie de resumo do assunto. Mas suas formas, motivações, modalidades, sutilezas e ardis são desdobramentos que talvez a religião não possa dar conta. Nesse caso, silenciar é melhor que embotar a realidade com palavras falsas e ilusórias. Se couber algum discurso religioso nessas horas, será aquele autenticamente identificado com a vida.




[1] Freire falava em desproblematização do futuro como fruto das concepções mecanicistas e fatalistas da história. Cf. FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia – Saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 2005.

[2] SONG, Jung Mo. Cristianismo de libertação: Espiritualidade e luta social. São Paulo: Paulus, 2007.

[3] ODALIA, Nilo. O que é violência. 3ª edição, São Paulo: Brasiliense, 1985.




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