domingo, 17 de maio de 2009

RELIGIÃO E VIOLÊNCIA [2]


A “violência cristã sofisticada” como violência simbólica

A História é testemunha de que existe uma estreitíssima relação entre os conceitos de religião e violência. Sobretudo na História do Ocidente, entre Cristianismo e violência.

Os cristãos, em princípio, foram vítimas de uma violência desproporcional às suas forças, perpetrada pelo Império Romano. Sobretudo nas comunidades do primeiro e segundo séculos sobejam os mártires. A condenação da Besta e da Babilônia prenunciada no Apocalipse é o subproduto teológico-reativo a essa violência imperial. No entanto, ocupando posteriormente o lugar privilegiado Religião Oficial do Império Romano, os cristãos foram os protagonistas de terríveis violências e cruzadas em nome de Deus. Em caso de dúvidas, consultem os árabes.

Primeiro, os “pagãos” violentam os cristãos. Depois os cristãos violentam os “pagãos”. Por fim, os cristãos violentam a si mesmos. Ou já nos esquecemos da inesquecível Noite de São Bartolomeu? Este episódio é só um fragmento do grande caldeirão de sangue no qual se tornou a Europa no período pós-reformatório. Quem tiver dúvidas que leia Tratado sobre a tolerância, do Voltaire.

A violência no âmbito de gênero, tão presente ainda hoje, já teve nos cristãos requintes de especialidade irrepetíveis. Ninguém cometeu maiores atrocidades contra as mulheres do que os cristãos encarregados do Santo Ofício. Quem pode esquecer tudo os cristãos fizeram com o Malleus Maleficarum debaixo do braço? Também a repressão violenta às manifestações de trabalhadores, absurdamente atual, teve nos cristãos episódios vergonhosos. Lutero amaldiçoou a matança de cinco mil camponeses revoltos em Frankenhausen no ano de 1525 [perdoemos a Lutero: Não matarás não constava nas 95 Teses]. O velho Calvino também não deixou de caçar bruxas e hereges na sua calvinocrática Genebra. A expansão colonial que vitimou por inteiro as civilizações pré-colombianas – há quem calcule em torno do desaparecimento de 88 milhões de seres humanos durante a invasão das Américas – também se deu fomentada religiosamente pelo Cristianismo. Havendo dúvidas aqui, eu indico As veias abertas da América Latina, do Eduardo Galeano.

Mas chega de sangue.

Deixemos para depois os casos da colonização protestante na América do Norte e o extermínio dos ameríndios ianques, siouxes, apaches, navajos, cheroquis, e tantos outros pele-vermelha. Deixemos para depois as cruzadas cristãs nos regimes coloniais (principalmente no Brasil), responsáveis pela “higienização religiosa” desses países e pelo expurgo de judeus, maçons, candomblecistas, e etc. Deixemos para depois as intriguinhas ainda vigentes entre os irmãos lá da gelada Irlanda do Norte, católicos e protestantes.

Não, não sou eu quem diz “chega de sangue”. Quem diz isso são os cristianismos ocidentais. Isso não quer dizer, todavia, que estão dizendo “chega de violência”. Porque violência não se faz somente com arcos e espadas, ou com paus, pedras e armas de fogo. Num tempo onde o derramamento de sangue em nome de Deus se tornou politicamente incorreto e socialmente indecoroso, a violência sofisticada é aquela que se especializou no reino do sentido, com o símbolo e com a palavra. Mais ou menos aquilo que o Pierre Bourdieu vem chamando aí de violência simbólica.

A violência simbólica – que no fundo deixa cicatrizes bastante concretas em suas vítimas – é aquela que se dá no campo do sentido. Seu ardil consiste em arruinar a legitimidade do ser do outro. É o terrorismo que se faz com a palavra, alvejando o outro naquilo que ele tem de mais íntimo, que é a sua própria percepção como gente no mundo. A mútua violência simbólica que as religiões cristãs deflagram entre si nem precisa ser assunto de discussão. É um escândalo quase natural, como natural é o ar que respiramos.

A violência cristã sofisticada como violência simbólica segue pleno curso nos nossos dias. A fobia das culturas locais é um desses casos, embora não seja nada novo. A evangelização no Brasil, mormente nos círculos protestantes e evangélicos, não tem consistido num violento atentado contra a cultura tupiniquim? A ética pessoal dos evangélicos, pretensamente deduzida da Bíblia, não coincide com um certo american way of life? Nossa musicalidade cristã, tanto aquela ainda marcada pelo tradicionalismo dos primeiros missionários protestantes, quanto essa influenciada pelo mercado gospel, não são importações norte-atlânticas? É da Bíblia que procede nosso trato aversivo e violento diante de determinados elementos de nossa própria cultura? Em caso de dúvida confira A gestação do futuro, onde Rubem Alves declararia que “levaria um grande tempo até que aprendesse a dançar e a gostar de samba, pois a única coisa que sabia era cantar as gospel songs norte-americanas”.

Nesse ínterim, vale a pena dizer alguma coisa rápida sobre a violência simbólica deflagrada contra a cultura e a religiosidade afro-brasileira.

Também aqui não estamos diante de nada novo. O professor Paulo D. Siepierski defenderia a tese de que a aversão religiosa de cunho cristão às manifestações culturais afro-brasileiras é somente a versão teológica do preconceito milenar direcionados a esses povos. Eu diria que se o Apartheid (“vida separada”) consistiu num movimento histórica e geograficamente circunscrito a um país, o apartheid teológico consistiu na maneira como os grupos cristãos se relacionaram com a cultura e com a religião africanas em todo tempo e em todo lugar. No Brasil, essa forma de violência simbólica se exacerba no neopentecostalismo. Enquanto os protestantes históricos elegeram a Igreja Católica como antítese, aqueles elegeram a religiosidade afro-brasileira. É a esta que dirigem sua violência discursiva, fora os casos de verdadeiras jihads com implicações físicas, dada as invasões de terreiros e os confrontos concretos com esses religiosos negros.

Para não alongar demasiadamente esse pequeno artigo, eu fecho dizendo alguma coisa sobre a violência cristã sofisticada como violência simbólica deflagrada contra certas minorias articuladas em torno da legitimidade de sua experiência sexual. E eu desejo me ater somente à homossexualidade, para não fazer referência às dezenas de outras possibilidades de sexualidade catalogadas hoje no âmbito das ciências do comportamento: bissexualidade, transexualidade, etc.

Não resta dúvida de que todo discurso homofóbico é simbolicamente violento. Também ele arruína a legitimidade da auto-percepção do outro. Ao se dizer isso, não se está legitimando a hossexualidade em si mesma. Mas já deveríamos ter aprendido que é preciso legitimar essa auto-percepção que o outro carrega. E aqui eu não me refiro à inclusão dos homossexuais nas comunidades cristãs. Pessoalmente sou todo pessimismo quando se trata de acreditar que um dia nossa teologia alcance tal nível de consciência e humanidade. Não! Estou me referindo ao próprio direito e o reconhecimento que o homossexual exige de ter legitimada sua auto-percepção existencial. Porque até contra isso temos assistidos cruzadas político-religiosas promovidas sobretudo por evangélicos brasileiros. Para quem duvidar, assista com mais assiduidade os programas evangélicos das manhãs de sábado.

Fechando.

Ao menos entre nós, cristãos ocidentais, é patente essa parceria histórica entre religião e violência. Pelo que vimos, os cristianismos não têm se docilizado em nada nessa caminhada. O que eles têm feito é sofisticarem as formas com as quais encarniçam as sociedades com o odor de sua violência. Nesses dias, politicamente correto é ser violento simbolicamente, por meio da palavra e do sentido. Como eu disse, as marcas dessa violência sofisticada são tão dolorosas e cruéis quanto eram os instrumentos de tortura da Santa Inquisição. Em caso de dúvida, perguntem às vítimas.


Um comentário:

Anônimo disse...

Obrigado pelo seu texto e pelo seu site. Descobri-o por acaso e favoritei-o de imediato, isso já alguns meses. Essa discussão toda em torno da PL-122 tem me feito sofrer muito. Eu, cristão de (novo) nascimento, consciente de minha limitação e imutabilidade nessa esfera de minha personalidade, desejoso de agradar a Deus e tentando ser o mais ético possível dentro de minha condição, de forma a andar de forma digna do Evangelho, sinto-me VIOLENTADO com o discurso desses que, com aparência de piedade e discurso de pretenso amor e de desejo de salvar os homossexuais do inferno, lançam dardos inflamados e malignos contra pessoas como eu, incapazes de mudar, sem poder recorrer a NINGUÉM (nem mesmo à família) e sem poder abrir a boca e protestar contra o tal discurso. Resta-me vencer tudo só, e esperar que gente como vocês, que têm raciocínio na cabeça, levantem-se e defendam o direito dos oprimidos. MUITO OBRIGADO!