sábado, 24 de outubro de 2009

FOUCAULT E A TEOLOGIA


Condições de possibilidades para um diálogo fecundo


"Quando percorrermos as bibliotecas, persuadidos desses princípios, que destruição deveríamos fazer? Se examinarmos, por exemplo, um volume de teologia ou de metafísica escolástica e indagarmos: contém algum raciocínio experimental a respeito das questões de fato e de existência? Não. Portanto, lançai-o ao fogo, pois não contém senão sofismas e ilusões".

(David Hume, Investigação sobre o Entendimento Humano)

Eu não posso negar o estranhamento que me invade ao fim de cada aula da disciplina Foucault e a Psicologia. Então entramos no reino daquelas coisas que só podem ser ditas por metáforas. E a mais ajustada que encontro é a de uma tesoura me rasgando a alma. E não se trata daquela fase crítica juvenil pela qual passam meninos e meninas crentes egressos nos ambientes universitários. Em minha auto-percepção considero essa fase como vencida. De outra forma, se trata do exercício da coerência intelectual, que deve crescer na medida em que avança nossa jornada epistêmica.

A evidência de que o que digo aqui não está ligado a uma crise de fé, mas à honestidade intelectual, está nas perguntas com que desejo me aproximar daquele filósofo francês contemporâneo: Em que medida Michel Foucault pode se constituir como parceiro dialogal em Teologia? Existem intersecções entre seu projeto intelectual e as re-significações que temos buscado para a tarefa teológica hoje? Quais as chances de uma aproximação entre esses dois projetos? Muito embora minha iniciação aos temas foucaultianos seja ainda bastante verde, eu desejo arriscar a hipótese de que este é um diálogo com boas possibilidades.

Uma advertência prévia, no entanto, é necessária. Estou ciente de que as mediações filosóficas em Teologia estão mais ou menos em desuso em nossos dias. A América Latina, graças à Teologia da Libertação, assistiu à irrupção das Ciências Sociais como parceiras privilegiadas do debate e da metodologia teológica. E com muito acerto! Mas em Foucault temos um pensador interdisciplinar cuja crítica se volta para um amplo leque de temas do interesse coletivo. Nele as fronteiras disciplinares não aparecem tão óbvias, de tal maneira que o rótulo de “filósofo” lhe cabe apenas como etiqueta intelectual. E ao chamá-lo de filósofo, jamais devemos pensar nas imagens clássicas do teórico perdido em abstrações que pouco dizem à vida concreta das pessoas. Os temas foucaultianos, pelo contrário, estão entre aqueles mais prementes na agenda de discussões públicas: sexualidade, saber/poder via práticas discursivas, relações sociais de dominação, (bio)poder, (bio)política, etc.

As minhas primeiras impressões acerca do projeto intelectual de Michel Foucault é a de que ele repete o movimento empreendido pelas Ciências Humanas em relação aos postulados religiosos, a partir do século XIX. Em outras palavras, a crítica desferida pelas Ciências Humanas em direção às práticas e discursos religiosos, em Foucault se repetem em direção àquele conjunto de saberes que em nosso tempo vêm galgando o status de “saberes hegemônicos” – majoritariamente os saberes ditos científicos. E embora se elucidem os “jogos de verdade” em todos esses movimentos, em Foucault não temos uma discussão de nível ontológico, ou uma guerra de verdades. Nele, a atenção está direcionada para os efeitos concretos da imposição que certos saberes instituem e naturalizam. Como exemplo rápido, pode-se mencionar a crítica foucaultiana aos saberes científicos que legitimaram por muito tempo as práticas psiquiátricas de controle, disciplinamento e subjugação dos corpos de uns homens por outros.

Três grandes tendências intelectuais do século XX são rejeitadas por nosso filósofo. São elas: os humanismos de todas as categorias, as meta-teorias e a noção de ideologia debitária do materialismo histórico-dialético. A rejeição aos humanismos se radica na negação explícita a qualquer coisa que se pareça com os ideais de uma “natureza humana”. A rejeição às meta-teorias se radica na recusa de todos os construtos teóricos pretensamente oni-abrangentes, e pretensamente aplicáveis em todo e qualquer contexto geo-histórico. E a rejeição ao conceito de ideologia se radica na recusa da tensão falsa consciência X verdadeira consciência. Verdadeiro e falso seriam categorias valorativas que no fundo servem igualmente aos jogos de poder.

É difícil e injusto eleger um termo ou uma fórmula que resuma o projeto intelectual de alguém com uma obra tão extensa como a de Michel Foucault. Mas se me fosse imposta essa obrigação, eu escolheria a fórmula “desnaturalização de nossa relação com o mundo”. Não se trata de negar o mundo tal como é, nem de eliminar todas as relações de poder que nele encontramos. Mas se trata de repensar nossa relação com o mundo a partir de uma relação não-naturalizada com as coisas. Conforme nosso filósofo, somente aí está a possibilidade de resistência nas chamadas “sociedades de controle” como a nossa. Muito embora uma boa parte dos intelectuais dedicados ao estudo de sua obra insista na afirmação de que em Foucault não temos um trabalho de tipo “sistemático”, o tema da desnaturalização de nossa percepção do mundo – da sexualidade, das relações de gênero, do saber científico, da política, etc. – está presente em quase todos os seus livros.

Não nos é possível nesse pequeno artigo penetrar em cada um desses temas numa perspectiva foucaultiana. Necessitaríamos de algum tempo a fim de entendermos a arqueologia e genealogia enquanto ferramentas metodológicas de investigação científica usadas por Foucault. Mas diante do que já expomos aqui, penso ser possível arriscar algumas hipóteses quanto à possibilidade de uma aproximação dialógica da discussão foucaultiana junto à Teologia.

Com efeito, é preciso dizer que esse diálogo não é possível em relação a todas as Teologias.

Primeiro, ele é viável somente a um tipo de Teologia disposta a servir como um dos saberes na construção de formas mais humanas de convivência social. E sabemos que nem todas as Teologias estão interessadas nisso. Para citar uma pequena afirmação de Foucault, essa Teologia também deve estar disposta a trabalhar na construção de uma sociedade onde “os jogos de dominação se dêem num nível mínimo possível”. Em segundo lugar, esse diálogo só possível a uma Teologia que esteja disposta a abrir mão das concepções naturalizadas religiosamente acerca da conduta humana. Pierre Bourdieu dizia que as religiões cumprem uma “função estruturante” nas sociedades, isto é, elas legitimam teologicamente a estruturação da vida social e dos comportamentos humanos. Portanto, para esse diálogo, a Teologia deverá estar disposta a reconsiderar esse papel estruturante, e adotar uma concepção histórica do ser humano, como ser que se faz e se refaz durante seu caminhar no mundo. Numa palavra, esta deverá ser uma Teologia disposta a renunciar a todo tipo de pré-conceito, sobretudo aqueles que derivam de uma leitura desatenta do texto bíblico.

Não estou muito seguro de que a fé bíblica dê vazão à enormidade de tipificações e pré-conceitos com os quais nossas Teologias têm classificado os seres humanos. Não estou muito seguro de que seu interesse esteja em nos fornecer imagens estanques e modelos a-históricos dos seres humanos, válidos em todo tempo e em todo lugar. Não estou muito seguro de que ela postule padrões fixos e heterônomos que devem ser aplicados às sociedades via o trabalho das igrejas. Desconfio que a fé bíblica assuma o caráter histórico da conduta humana, e aceite com muita tranqüilidade esse fazer-se e refazer-se que os seres humanos empreendem historicamente. Em resumo, não estou muito certo de que a Bíblia sirva para legitimar religiosamente nenhuma imagem fixa sobre os seres humanos. E vou caminhando para uma conclusão com um exemplo para essas desconfianças.

O tema das relações familiares tem sido, pelo menos para os Cristianismos que encerraram o século XX e entraram no século XXI, um dos focos centrais da preocupação das igrejas. Sobretudo para as tradições ligadas ao Protestantismo, os valores familiares foram se constituindo como objetos de preocupação central do cuidado pastoral e eclesial. A família aparece aí como um valor que relativiza todos os demais, e no caso do Protestantismo, ela está acima até mesmo do trabalho e das práticas religiosas. Além disso, a ênfase nos valores familiares está assentada numa leitura bíblica que elegeu um modelo familiar como natural, em função de sua “procedência divina”. Esse modelo coincide com o modelo de família patriarcal imposto pelo contexto Greco-romano que deu origem aos escritos neotestamentários, embora esse fato dificilmente seja realçado nos discursos religiosos.

Diante dessa realidade, a irrupção de novos modelos familiares como contrapontos ao modelo patriarcal – famílias mono-nucleares (de mães ou pais que optaram pela condição de solteiros), mono-genêricas (baseadas na união estável de duas pessoas do mesmo sexo) – tem sido vista com muita suspeita pelas igrejas. Invariavelmente esses modelos familiares emergentes vão sendo tipificados como “aberrações”, ou como “desvios” e “modismos” em relação àquilo que é natural, porque divinamente instituído. À despeito da qualidade das relações humanas presentes nessas experiências, o modelo alternativo em si mesmo é alvo de pré-conceito numa leitura desse tipo.

É curioso que a narrativa bíblica dê testemunho de variados modelos de convivência familiar e nunca ponha em cheque o modelo em si mesmo. É curioso que a narrativa bíblica prefira apontar sempre para a qualidade das relações entre as pessoas, qualquer que seja o modelo em voga: a monogamia de Abraão, a poligamia de Jacó, Elcana e David, por exemplo, ou mesmo o modelo monogâmico patriarcal presente no período neotestamentário. É curioso que o próprio Jesus de Nazaré não tenha posto o modelo em cheque, mas tenha se preocupado com a qualidade das relações dentro do modelo vigente em seus dias, protegendo as mulheres da coisificação a que estavam sujeitas junto aos seus maridos. É a isto que se volta sua palavra de negação ao divórcio: contra a banalização e a coisificação da mulher, e não à naturalização do modelo monogâmico patriarcal.

Para fechar, uma última advertência: Foucault não nos oferece nenhum programa de ação. Não há receituários em seu legado intelectual, e não estamos em busca disto. Buscamos parceiros de diálogo. Buscamos olhares que nos ajudem na humanização da sociedade, e que consideremos condizentes com a tarefa que temos como teólogos e teólogas hoje. Portanto, o referencial permanece sendo o Evangelho, e o programa de ação deve ser decidido do lado de cá, entre nós, teólogos e teólogas. E não há subordinação da Teologia a nenhum construto intelectual contemporâneo, pois isso seria infantil e antievangélico.

Mas reconhecemos que a compreensão dos processos de naturalização das relações humanas pode nos ajudar a decantar de nosso discurso teológico uma última camada de pré-conceitos e naturalizações religiosas ainda presentes mesmo nas Teologias mais progressistas. O problema da naturalização de certos aspectos da vida social, reiteramos, está nos efeitos nocivos que daí decorrem: tipificação, marginalização, exclusão, etc. É contra eles que pretendemos nos precaver. E nisso reconhecemos em Michel Foucault um parceiro epistemológico muito interessante.

terça-feira, 13 de outubro de 2009

LANÇAMENTO E DIVULGAÇÃO DE LIVRO‏


Olá minha gente boa!

Nos últimos dias 08, 09 e 10 de outubro estivemos reunidos em Salvador, na Igreja Batista da Graça, participando do encontro teológico Transformando a Missão: Justiça, Espiritualidade e Cidadania. Muita coisa boa ocorreu por lá nesses dias. Eu resumiria tudo em alguns tópicos ligeiros: (1) o prazer inefável de estar na Bahia; (2) o reencontro com amigos de longa data, a quem não víamos a muito tempo; (3) excelentes palestras e oficinas debatendo o sentido da missão eclesial no Nordeste; (4) o acesso a muita literatura teológica de qualidade indiscutível.

No meio disso tudo a Aliança de Batistas do Brasil lançou sua segunda publicação. Depois do grande sucesso de Quatro frágeis liberdades (2005), agora chegou a vez de Religião, utopia e sociedade - Diálogos com Martin Luther King Jr. e Richard Shall. O livro oferece ao grande público os resultados do 1º Fórum Protestantismo, Teologia Pública e Relevância Profética, realizado no Rio de Janeiro em 25 e 26 de maio de 2007. A mim coube a transcrição das falas e a Apresentação do livro. Mais abaixo, segue o texto da Apresentação, e caso você se interesse pelo livro, entre em contato comigo.

Se você desejar saber mais sobre a Aliança de Batistas do Brasil, clique aqui: www.aliancadebatistas.com.br. Caso queira conferir o layout do livro, clique aqui: www.editoralivro.com.br.

Ah, o livro custa apenas R$ 20,00.

Um abraço!

APRESENTAÇÃO

Uma leitura para fazer “arder o coração”

É com grata satisfação que a Aliança de Batistas do Brasil traz agora ao alcance de um público maior as comunicações do primeiro fórum Protestantismo, Teologia Pública e relevância profética em diálogo com as éticas sociais de Martin Luther Jr. e Richard Shaull, realizado na cidade do Rio de Janeiro durante os dias 25 e 26 de maio de 2007. O livro que o leitor e a leitora têm em mãos consiste na versão textual das falas ali apresentadas. Um dos objetivos técnicos dessa publicação consistiu em preservar o caráter informal e espontâneo de cada palestra. Por isso, os textos se apresentam num formato suavizado em relação à formalidade acadêmica. Não obstante, todo trabalho de transcrição textual de comunicações orais implica em uma intrusão mínima do redator. Consciente disto, nosso trabalho seguiu na tentativa de uma intrusão não-conteudística, mas atida aos aspectos formais da apresentação dos textos, com mínimas reformulações conceituais ali onde a clareza está prejudicada pelos improvisos e imprecisões da comunicação oral.

O primeiro capítulo nos oferece uma reflexão exclusivamente dedicada à atividade e ao pensamento de Martin Luther King Jr. (MLK). Nela, Israel Belo de Azevedo, pastor batista e ex-reitor do Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil, está interessado em responder acerca de qual seria o legado e qual o significado da obra de MLK. Além disso, está interessado em refletir acerca de quais respostas MLK daria às questões mais prementes de nossa agenda atual, uma vez que vivenciamos uma configuração conjuntural inteiramente nova. Israel Belo de Azevedo apontará ainda para três rupturas no pensamento e na atuação de MLK frente a consagradas dicotomias do universo teológico e pastoral: ação versus oração, erudição versus piedade, e ministério local versus ministério nacional. Privilegiando aspectos biográficos e peculiares à personalidade de MLK, Israel Belo de Azevedo ainda trará para a discussão alguns elementos presentes na vida deste pastor batista estadunidense considerados pertinentes para aqueles e aquelas que se ocupam da atividade pastoral em nosso contexto brasileiro.

No segundo capítulo o Dr. Ken Sehested estabelece um diálogo crítico entre o imperialismo estadunidense no século XX e a denúncia profética de MLK, convocando-nos a partir disso à insistência nos projetos utópicos do Evangelho. Partindo de exemplos de sua própria experiência prática, assim como da análise de eventos históricos relacionados à política internacional estadunidense no século XX, Ken Sehested procura nos mostrar de que maneira os sonhos e as imposições dessa política internacional foram se constituindo como pesadelos para o resto do mundo, sobretudo para o Oriente Médio e para a América Latina. MLK aparece aí como voz crítica e profética de contraponto à este imperialismo tocado sob as marcas do racismo, do militarismo e do materialismo. O Dr. Ken Sehested ainda denunciará uma certa domesticação da memória de MLK, ocorrida nos Estados Unidos, e nos lembrará que a obra e o pensamento deste ainda nos serve como forma de afirmação das possibilidades utópicas do Evangelho em nosso contexto atual.

Raimundo César Barreto, pastor batista e presidente do Centro de Ética Social Martin Luther King Jr., nos trará no terceiro capítulo uma reflexão preocupada igualmente com os legados teológicos de MLK e de Richard Shaull. Nosso autor faz questão de iniciar sua comunicação com algumas pontuações acerca da Aliança de Batistas de Brasil como entidade ecumênica, libertária, dialógica e comprometida com a justiça social. Conforme o mesmo, são essas marcas que colocam a Aliança de Batistas do Brasil em estreita ligação com os legados daqueles dois homens. Em seguida, sua contribuição nos brinda com uma reflexão acerca do status propriamente teológico de MLK e Richard Shaull. Na linha de José Casanova e David Tracy, Raimundo César Barreto entende que MLK e Richard Shaull podem ser compreendidos, já em sua época, como “teólogos públicos”. Seguindo ainda o construto teórico de Gramsci relativo às funções dos intelectuais orgânicos, dirá que ambos também podem ser compreendidos como “teólogos orgânicos”. Na sequência, Raimundo César Barreto nos coloca em contato direto com alguns dos principais tópicos do pensamento teológico de MLK e Richard Shuall, a fim de que estes nos ajudem no resgate da relevância da teologia na nossa ação prática perante a sociedade.

No quarto capítulo, o cubano Francisco Rodez (Fraternidade Batista Cubana) desenvolve uma sucinta meditação bíblico-teológica sobre o tema da utopia e do reino de Deus. À luz dos legados de MLK e Richard Shaull, Francisco Rodez nos apresenta um exercício de leitura bíblica que deseja ser eficaz como contraponto a um suposto realismo e a um suposto fim das possibilidades utópicas que busca espaço na mentalidade latino-americana. Este autor também nos apresenta de forma simples, mas não simplista, as razões do fracasso do projeto socialista em países como Cuba. Nesse sentido, além da militância político-ideológica, os anseios pessoais e os valores familiares são valorizados como elementos necessários à construção de um mundo novo. Em sua meditação, Francisco Rodez também deseja evitar toda atitude triunfalista que se poderia deduzir de um projeto de utopia cristã. Remete-nos à crucificação de Jesus de Nazaré como exemplo de um projeto utópico fracassado. Mas também nos remete à sua ressurreição como afirmação de todas as possibilidades utópicas inerentes ao símbolo “reino de Deus”.

Abigail Evans, professora do Seminário Teológico de Princeton, dedica sua meditação especialmente a Richard Shaull. Neste quinto capítulo ela nos oferece um esboço biográfico desse pastor presbiteriano cuja atuação deixaria marcas indeléveis na história do protestantismo brasileiro e na própria teologia cristã latino-americana. Dando ênfase aos contornos políticos que marcaram a sociedade brasileira a partir da década de 1960 – sobretudo em função do golpe militar de 1964 –, a autora evoca as ênfases centrais de um pensamento e de uma práxis notadamente marcada por tensões internas em relação à Igreja Presbiteriana do Brasil, caracterizada à época pela rigidez doutrinária e pelo conservadorismo político. Abigail Evans também trabalhará com a tese de que os elementos fundamentais daquilo que futuramente se articularia com uma Teologia da Libertação – a crítica profética das injustiças sociais, a vocação ecumênica, o chamado às comunidades eclesiais a assumirem sua vocação histórica como vetores de libertação, e etc. – têm seus brotos já no pensamento e na atuação de Richard Shaull.

No sexto capítulo, Roberto Schuler, pastor da Igreja Reformada da Suíça e atual reitor do Seminário Teológico Batista do Norte do Brasil, nos oferece mais do que uma simples reflexão: ele nos oferece um desabafo e um chamado a que o protestantismo brasileiro reencontre suas matrizes proféticas e verdadeiramente “protestantes”. Denunciando um espírito de conformismo e resignação como próprio do protestantismo brasileiro atual, Roberto Schuler busca fundamentar sua crítica tanto na tradição do profetismo veterotestamentário quanto numa rica tradição profética presente na própria história do protestantismo. Sua reflexão dedica espaço especial para uma crítica das posturas reacionárias adotadas pelas igrejas protestantes brasileiras durante o regime militar que se instalou no Brasil a partir de 1964, em confronto com a postura crítica tanto de outras igrejas como de outros atores da sociedade civil. Roberto Schuler também dedicará espaço em sua reflexão para propor os eixos fundamentais de uma teologia pública, que, segundo o autor, além do envolvimento com as questões sociais, deve assumir como valores a relevância e as possibilidades dos riscos inerentes à sua concretização.

No penúltimo capítulo deste livro Luis Longuinni Neto, pastor presbiteriano ligado ao Instituto Mysterium, partirá da prática pastoral de MLK e Richard Shaull para pensar em elementos fundamentais a uma teologia da missão. Sua tese de partida consiste em que “a missão é da igreja, mas a agenda é do mundo”. Luis Longuinni Neto faz questão de acentuar a dimensão pastoral presente na práxis tanto de MLK e Richard Shaull, a quem adjetiva de “duas vocações rebeldes”. Dessa dimensão pastoral presente nestas vocações rebeldes, ele deriva alguns elementos que considera pertinentes e necessários a uma teologia da missão em nosso contexto. Entre tais elementos o autor destaca o sofrimento dos pobres como ponto de partida da missão, a tarefa ecumênica, o diálogo com a teologia prática e com uma pastoral relevante, e a busca pela formação de cristãos conscientes.

Encerrando o conjunto de textos deste livro, o teólogo cingalês Devaka Premawardhana nos oferece uma discussão intercalando temas da Teologia Negra e da Teologia das Religiões. Em consonância com as intuições de James Cone, o autor procura estabelecer um diálogo crítico entre o pensamento de MLK e de Malcolm X. Devaka Premawardhana entende que nestas personagens existem tanto elementos favoráveis como desfavoráveis à construção de uma Teologia Negra que seja pertinente em face dos dilemas raciais ainda candentes em nosso tempo. No que tange à Teologia das Religiões, o autor buscará por contribuições na própria tradição protestante. Seu olhar crítico enfatizará a atitude etnocêntrica característica das missões protestantes chegadas ao Brasil em meados do século XIX. Nesse sentido, a grande provocação de Devaka Premawardhana consistirá numa ousada hipótese missiológica que assume a presença do Espírito de Deus nas culturas mundiais, antes mesmo da presença missionária representante dos centros de poder econômico. Para o autor, a atitude de MLK junto a Gandhi deve se constituir como paradigma das relações entre os cristãos e as pessoas pertencentes às demais religiões. Dessa forma, Devaka Premawardhana preconiza uma atitude reinocêntrica como item central de uma Teologia das Religiões que contribua na construção de relações fraternas entre as culturas humanas.

Nossa esperança, em primeiro lugar, é que esta publicação comece a preencher a grande lacuna existente no universo editorial evangélico brasileiro no que tange aos legados teológicos de Martin Luther King Jr. e Richard Shaull. Mas como Aliança de Batistas do Brasil, nosso desejo não se circunscreve à mera inserção no mercado de literatura teológica. Portanto, em segundo lugar, nosso objetivo terá sido alcançado se este livro que o leitor e a leitora têm em mãos servir-lhe como vetor de inquietação. Mais do que um saber teológico academicamente sistematizado, as páginas que se seguem dão testemunho de dois legados teológicos construídos no calor de posicionamentos muito concretos. Falo de uma teologia excepcionalmente feita à base de confrontos, rupturas, riscos, ameaças, mas também feita à base de uma inquebrantável esperança fundada na certeza da presença confortante de Deus. Se esta leitura lhe fizer “arder o coração” (Lc 24,32), ainda que minimamente, nosso objetivo terá sido alcançado.

Paulo Nascimento

Maceió-AL, 20 de agosto de 2009



sexta-feira, 2 de outubro de 2009

O ONIPRESENTE AROMA DA MORTE


A queimada dos canaviais alagoanos e seus efeitos sim-bólicos e dia-bólicos


As nefastas influências dos usineiros da cana na sociedade alagoana seguem ininterruptas, e sem prazo de vencimento ou data de validade. Noutra oportunidade eu chamava a atitude predatória dos mesmos de vampirismo econômico. Com essa metáfora eu fazia referência à dieta feita à base do “sangue dos trabalhadores”, como sendo o pão de cada dia da aristocracia agrária nesse estado. E quero continuar explorando a metáfora do vampirismo, mas agora para falar da relação parasitária e predatória dos usineiros frente à Natureza.

Digo todas essas coisas em função da época de moagem da safra que se prenuncia agora. Com ela, iniciam-se as queimadas dos canaviais, condenadas pela edafologia há mais de um século. Mas não se deve estranhar que uma oligarquia agrária que sonega anualmente 98,25% do montante de ICMS devido aos cofres públicos desse estado, também faça vistas grossas a um postulado científico que prevê a conservação dos solos e o bem-estar das comunidades do entorno dos canaviais.

Eu, por exemplo, resido muito próximo à zona dos canaviais. A esta época de queimadas tenho agregado às péssimas condições de saneamento básico do meu bairro, o emporcalhamento do ar pela fumaça das queimadas. E no meu caso os efeitos se agravam, uma vez que psicologicamente isso produz em mim uma sensação de onipresença maligna dos usineiros, que quando não atingem nossa cidadania de uma forma, atingem de outra. Mas talvez isso seja somente o produto inebriante da fumaça tóxica das queimadas!

Faz um ano e meio, numa discussão entre teólogos aqui em Maceió, propus uma avaliação das agressões ecológicas geradas pela atividade canavieira alagoana. Gostaria de citar outra vez um fragmentozinho do meu discurso naquela oportunidade.

***

A queimada dos canaviais é um procedimento corriqueiro que antecede a moagem. Sua finalidade é reduzir os custos dos usineiros com a colheita da cana, já que o rendimento do trabalhador cortador de cana ou da colheitadeira é triplicado quando não há queimadas (isto é, quando a palha é cortada). Conforme Manoel Ferreira, “o uso do fogo na agricultura é condenado há mais de um século pelos manuais de conservação do solo e da edafologia, pelas conseqüências negativas por ele provocadas na produtividade da terra”. Vale registrar os casos de Cuba e das Filipinas, que a partir da década de 1970 mecanizaram toda colheita da cana, utilizando a palha como adubo orgânico e, por tabela, reduzindo vertiginosamente os impactos ambientais provenientes das queimadas.

As queimadas reduzem os custos e maximizam os lucros do setor sucroalcooleiro. No entanto é a sociedade que fica com os prejuízos causados por elas. Esse processo agrícola arcaico tem como ressonância a produção concomitante de múltiplas vítimas: na fauna, na flora e conseqüentemente na sociedade humana.

Manoel Ferreira nos informa que as queimadas causam a liberação para a atmosfera de ozônio, de grandes concentrações de monóxido (CO) e de dióxido de carbono (CO2), que afetam a saúde dos seres vivos, reduzindo também as atividades fotossintéticas dos vegetais, prejudicando a produtividade de diversas culturas. As queimadas liberam grandes quantidades de gases que contribuem para a destruição da camada de ozônio na atmosfera e, assim, possibilitam que raios ultravioletas atinjam em maior quantidade a Terra e causem efeitos cancerígenos e mutagênicos. Na mesma linha, o fogo não mata as sementes das gramíneas invasoras e estas, por não estarem cobertas pela palha, germinam rapidamente. Para combater essas plantas invasoras, os agricultores utilizam herbicidas em grande escala e em quantidade cada vez maior, motivo pelo qual a cultura da cana é responsável pelo uso de mais de 50% de todos os herbicidas utilizados na agricultura brasileira. O mesmo agrônomo segue dizendo que são comuns as notícias publicadas sobre a destruição dos remanescentes de vegetação nativa por incêndios, com início a partir das queimadas da palha da cana-de-açúcar, sempre com alegações dos representantes do setor sucroalcooleiro afirmando que o fogo fugiu ao controle[1]. Para ele, mesmo que as usinas paguem as multas e indenizações, não há reparação monetária que recupere a situação original de uma reserva florestal, com sua biodiversidade, seus nichos e seu equilíbrio, que foram destruídos para sempre pelo fogo.

Quanto à fauna, as queimadas eliminam os predadores naturais de algumas pragas, como as vespas, provocando o descontrole destas pragas e exigindo assim a utilização cada vez maior de agrotóxicos, provocando maior contaminação ambiental. Não existe um levantamento estatístico científico sobre a quantidade de animais e de todas as espécies que morrem, em média, por hectare de canavial queimado. Os dados existentes são escassos e representam uma fração bastante pequena da realidade, pois são referentes apenas aos animais que são resgatados com vida e levados a um atendimento emergencial. Assim, estão fora deste levantamento todos os insetos e praticamente todas as aves e pequenos roedores. Também não estão computados animais que conseguem fugir, lesionados, que acabam por morrer em outro lugar. Manoel Ferreira conclui que a queimada da palha da cana-de-açúcar, embora muitas vezes feita com autorização do poder público, é uma prática que infringe a lei, pois provoca danos na fauna, que é especialmente protegida por leis federais e estaduais.

As ressonâncias negativas da queimada da palha cana sobre o homem podem ser abordadas em dois momentos: um primeiro e mais restrito, na perspectiva dos trabalhadores cortadores de cana; e um segundo e mais amplo, em seus impactos na qualidade de vida da sociedade em geral. Seguindo as contribuições de Manoel Ferreira, pode-se dizer que as condições ambientais de trabalho do cortador na cana queimada são muito piores que na cana crua, pois a temperatura no canavial queimado, pela cor escura que apresenta, eleva a temperatura ambiente que chega a mais de 45º C. Além disso a fuligem da cana penetra pela pele e pela respiração circulando na corrente sanguínea do trabalhador. Substâncias cancerígenas presentes na fuligem já foram identificadas na urina desses trabalhadores. Mesmo a substância particulada inalada pelos trabalhadores pode estar associada aos casos de mortes por problemas cardíacos. No geral, as comunidades no entorno dos canaviais sofrem também os danos diretos dessa ação. As pessoas ficam doentes, pois respiram as partículas finas e ultrafinas provenientes das queimadas, que penetram no sistema respiratório provocando reações alérgicas e inflamatórias. Esses poluentes passam para a corrente sanguínea, causando complicações em diversos órgãos. Aumentam as despesas públicas com atendimento, para o tratamento dessas moléstias, e a população normalmente tem que arcar com o custo dos medicamentos e outros procedimentos médicos.

Resumidamente, esses são alguns dos demonstrativos antiecológicos perpetrados pela voragem do capital sucroalcooleiro em Alagoas. Cada um deles torna veraz a afirmação de Boff quando diz que “hoje não apenas os pobres gritam. Gritam também a terra, as águas, os ares submetidos a formas de utilização depredadora e destrutiva (...)”. Hoje, sem perder de vista a dimensão da libertação dos pobres e das minorias oprimidas, é quase um imperativo para a teologia articulada a partir do tema da libertação reconhecer a Terra como outro sujeito em situação de cativeiro. Em Alagoas isso começa justamente na relativização dos ídolos que não somente concentram a posse da terra, mas ainda a espoliam sem qualquer sinal de sensibilidade, senso de preocupação com as gerações vindouras, ou com a construção de uma “sociedade sustentável”. Ademais, sua relação predatória com a natureza e sua relação opressora com a sociedade alagoana confirmam o quadro elaborado por Jon Sobrino quanto à definição teológica dos ídolos: o que fazem, fazem-no sem necessidade de justificarem-se a si mesmos diante dos demais seres humanos.

***

Tinha razão Frei Betto quando adjetivava os pretensos biocombustíveis – no nosso caso, o etanol – de “necrocombustíveis”. Está mais do que justificado esse pesado neologismo! Tanto aqui em Alagoas quanto nos outros parques industriais canavieiros do Brasil (como poucas e felizes exceções), a proporção entre aqueles que são beneficiados pela produção de biocombustíveis como o etanol é muitíssima inferior em relação àqueles que são prejudicados pela mesma produção. Entre esses últimos estão os bóias-frias cortadores de cana, trabalhadores do chão de fábrica de usinas canavieiras, moradores de vilas de operários desse ramo, e cidadãos que vivem nas proximidades dos canaviais, seja na cidade ou no campo.

O genocídio da cana, entre os tais, se faz de muitas maneiras. A uns, ela extirpa a vida muito rapidamente. [Saibam vocês que a produtividade média de um trabalhador do corte de cana é de apenas quinze anos.] São incontáveis os casos de homens e mulheres que, submetidos a jornadas extenuantes e a metas que prevêem o corte de dez a quinze toneladas diárias, tombaram em função de colapsos cardíacos súbitos e fulminantes. Mas a outros a cana vai sorvendo a vitalidade num gota à gota. Gente como eu, que, se não bastasse a presença simbólica e psicológica dos usineiros refletidas nas imagens diárias das injustiças sociais de Alagoas, ainda têm que trazer a ação assassina da cana dentro dos pulmões, via fumaça das queimadas dos canaviais.

Oxalá esses fantasmas sejam somente produto químico da fumaça das queimadas. E que o vento leve rapidamente consigo não somente o odor incômodo da fumaça da cana, mas também o aroma da morte e da onipresença dos vampiros que insistem em sobreviver à custa do sangue desse povo.


[1] Para obter exemplos dessa natureza com relação ao caso alagoano cf. FLORES, Alder. Meio Ambiente – Uma contribuição para Alagoas. Maceió: Imagem Gráfica Rápida, 1999, p. 188-189.