sábado, 20 de dezembro de 2008

RESTA-NOS UMA ÚLTIMA INQUISIÇÃO


Sobre os mosaicos e os vitrais, a verdade e a heresia

Outra metáfora para a verdade

Desconfio de todo herege auto-intitulado. Penso logo que se trata da necessidade problemática de chamar a atenção para si. Os hereges auto-intitulados são um prato cheio a psicanálise. Pois aí essa necessidade de chamar a atenção, essa paixão artificial pela diferença, comparecem como produtos de uma personalidade em conflito patológico. É bem verdade que o ideal de singularidade seja uma das pulsões naturais de nosso ego. Toda uniformização do comportamento – principalmente a religiosa –, portanto, traz o potencial de atentar contra essa “estrutura ontológica” que carregamos intrinsecamente. Então, que essa singularidade brote de forma natural.

Não conheço um único herege no seio da vasta historiografia religiosa que quis ser chamado assim. Pelo contrário, para todos eles, os desviantes do pensamento coerente eram aqueles a quem dirigiam sua denúncia. Herege é sempre o outro, mesmo para o próprio herege. Entre os “hereges clássicos”, não conheço um que tenha se conformado a essa alcunha. Por isso, desconfio de todos os que, propositalmente, querem assumir esse encargo como um sacerdócio.

Na realidade, tal palavra – heresia – só faz sentido se sustentamos o esquema epistemológico de um único pensamento certo que pode ser contradito por pensamentos desviantes. Ao sustentar tal esquema, não sabe o pseudo-herege que continua sendo profundamente ortodoxo. Pessoalmente, como entendo que a verdade não é nem da ordem do absoluto nem da ordem do relativo, mas da ordem da liberdade, sou da pluralidade. Minhas metáforas preferidas para a verdade são o mosaico e o vitral. Sendo assim, eu desejaria que chegasse o tempo em que a própria palavra heresia viesse a ser vítima de processos inquisitórios. Nesse caso, eu mesmo me candidataria a inquisidor!

À moda de Freud, sinto o faro de um interlocutor astuto que me indaga: mas caberia a metáfora do mosaico e do vitral no caso de uma declaração do tipo “Eu sou o caminho, a verdade e a vida”? Conforme Jesus, esse mosaico e esse vitral não seriam compostos de uma peça só – ele mesmo? E eu diria que Jesus, dentre todas grandes figuras religiosas da história, é aquele em quem a metáfora do mosaico e do vitral mais se ajusta. Porque o mesmo Jesus que diz ego eimi hê alethéia – eu sou a verdade –, diz também eu sou o faminto, o sedento, o errante, o nu, o doente e o encarcerado (vide Mateus 25,31-40). A epifania da verdade de Jesus tem rostos variados, sobretudo nos rostos múltiplos que têm os espoliados e pequeninos do mundo. Exatamente como num mosaico ou num vitral!

Convicções sob vigilância crítica

Todavia, não posso fechar os olhos para a realidade de que na maioria das produções simbólicas do homem, mormente na Religião Organizada, certas idéias se tornaram prevalecentes, normativas, dirigentes da práxis, da compreensão do mundo, de tal maneira que acabam definindo a identidade dos respectivos grupos que as adotam, e, assim, se tornam critérios pelos quais se delimita o próprio sentido de pertencimento a tais grupos. Historicamente essas idéias normativas se condensam sob forma textual nos Dogmas, nos Credos, nas Confissões de Fé, nas Declarações Doutrinárias, ou na literatura produzida pelos “intelectuais orgânicos” (A. Gramsci) desses grupos. No âmbito da vivência prática, essas idéias normativas se concretizam na práxis dos grupos e no nível pessoal onde cada um de nós, um a um, procura vivenciar aquilo a que damos assentimento.

Não obstante, as verdades normativas são cheias de ambigüidade. Definem os grupos. Conferem a identidade das associações humanas, sem a qual nenhuma delas seria possível. Criam um mundo simbólico sem o qual não seria possível existirmos no mundo concreto. Mas ao mesmo tempo podem segregar e fomentar a violência, simbólica e concreta. E embora nos seja possível operar essa distinção, ambas, a violência simbólica e a concreta, são no fundo um único fenômeno. Pois a violência concreta – a segregação, o racismo, a opressão política, o homicídio, o genocídio, por exemplo – é somente o ápice da violência simbólica. Ou seja, a violência concreta é a violência simbólica em plenitude. Toda convicção, desde a mais bem intencionada, traz o germe dessa ambigüidade. Terá sido por isso que Nietzsche aconselhava a que não se confiasse num homem de convicções?

Uma sugestão de sinalização para o mundo

No âmbito religioso, muito bem fazem aqueles que procuram eliminar a palavra heresia de seu vocabulário e de suas ações. Mas também muito bem fazem aqueles que procuram eliminar a palavra tolerância. Também essa, assim como heresia, pressupõe aquele esquema epistemológico descrito acima de um único pensamento certo que pode ser contradito por pensamentos desviantes. Daí que essa palavra – tolerância – só pode subsistir enquanto concessão. Continua pressupondo uma situação de autoritarismo e de posse exclusiva da verdade. Isto é, tolerância só pode existir onde haja relações assimétricas de poder. E as Religiões Organizadas bem que poderiam dar justamente aí um enorme sinal para o mundo, declinando do exercício dessas relações de poder, tão em voga no mundo. “Entre vós não seja assim...”, dizia Jesus aos seus discípulos!

Nisso, penso que tanto Católicos quanto Protestantes estejam quase emparelhados: nenhum deles ainda conseguiu dar/ser esse “sinal” para o mundo.

Por gozar de uma coesão ideológica mais unânime, é mais fácil falar dessas relações na Igreja Católica. Com todo totalitarismo de sua máquina gerencial (que o diga Bento XVI), é muito fácil notar que a tolerância ali é mais elástica. Por exemplo, autores e teólogos protestantes publicam suas obras em editoras católicas e estudam Teologia nos centros de formação gerenciados por esta Igreja. Isso é um exemplo mínimo de tal elasticidade da tolerância. Um processo de excomunhão por desvio de pensamento na Igreja Católica – algo esdrúxulo e terrivelmente escandaloso para o mundo de hoje – necessita de vários anos para que se possa empreender uma investigação que possibilite fundamentação máxima aos procedimentos inquisitórios (os quais, reafirmo, são bestiais!).

Por outro lado, eu, pastor protestante, me assustei quando topei com a matéria de Ultimato intitulada Quarenta livros que fizeram a cabeça dos evangélicos brasileiros nos últimos quarenta anos, escrita por Ricardo Quadros Gouvêa. Conforme o mesmo, os critérios adotados para a formação da lista foram os seguintes: “[foram escolhidos] livros que foram campões de vendagem, citados e debatidos, que influenciaram e continuam influenciando os evangélicos brasileiros, livros muito lidos e com alto índice de aceitação, e também os que hoje estão operando uma mudança paradigmática na cultura evangélica contemporânea”. Dos quarenta, eu só tinha ouvido falar em quinze! E desses quinze, eu só li um!

Essa minha “alienação” é um bom sinal! Não por que eu queira aparecer. Disse antes e ratifico: lugar de hereges auto-intitulados é o divã. Mas o sinal é bom porque aponta minusculamente para um retorno às próprias tradições protestantes, originalmente perpassadas pela liberdade e pela pluralidade. Sou batista e fiz toda minha formação teológica num seminário batista, mas, no entanto a lista acima me é estranha. Apesar disso, continuo me sentindo profundamente protestante e batista.

Auto-criticidade e a última inquisição

Karl Popper sinalizava que a força do desenvolvimento científico não está nem na qualidade de seu método nem nas convicções produzidas por ele, mas está na criticidade. Se a criticidade tiver mesmo todo esse poder de aperfeiçoar cada vez mais as nossas produções simbólicas, deveríamos lutar sempre mais em favor de uma pluralidade cada vez maior, mormente entre nós mesmos. Porque, de fato, não há desenvolvimento do espírito onde impera a uniformidade e onde se padece da falta de criticidade. Temos já, como protestantes, a diversidade. Falta-nos ainda a criticidade, que em sua forma genuína é sempre auto-criticidade também.

O caminho para a unidade não passaria pelo caminho da criticidade, sobretudo da auto-criticidade? O caminho da auto-criticidade não nos levaria a conciliar sem traumas liberdade e diversidade? O primeiro passo deveria consistir em iniciarmos rápido nossa última inquisição: contra a palavra heresia.


quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

A VERDADE NO TUTANO DAS COISAS



Nada pode ser mais subversivo do que dizer a alguém: se você conhecer a verdade, a verdade vai libertar você (João 8,32). Digo assim sem medos que Jesus de Nazaré foi o Mestre da Subversão.

A transgressão, o atrevimento incontido, a coragem rebelde, têm na dialética dos processos sócio-culturais um lugar de honra. Um simples olhar à nossa volta, uma caminhada até a padaria, um dia comum no trabalho ou na escola, nos colocam em contato visual com uma infinidade de objetos, todos filhos da transgressão. São aqueles objetos surgidos do útero da ciência. E ela, a ciência, é uma das mais legítimas filhas do atrevimento humano. Num mundo cansado da cosmovisão religiosa, a razão humana viu-se fecundada por esse fermento que, tendo levedado a massa, me proporciona escrever hoje esse texto, nesse computador, e a você, lê-lo em seu computador.

Enfim, as grandes produções humanas devem sua maternidade à inteligência, à inventividade e à arguta capacidade do homem de romper com os condicionamentos impostos pela natureza. Mas nada disso é gerado sem o útero da rebeldia e da transgressão.

A história humana vai dando a impressão de ser uma constante repetição de estreitamentos seguidos de aberturas nas mais variadas áreas. A um estreitamento, segui-se uma ruptura, que se solidifica em novo estreitamento, que força a produção de uma nova abertura. E cada síntese histórica vai sendo produzida nesse jogo dialético que parece interminável. Hegel dizia que esse movimento todo está “marchando para frente”. É o Espírito em sua caminhada. O telos – fim, finalidade, culminância – dessa marcha seria a objetivação sempre maior do Espírito. Sei não...

Os exemplos concretos desse jogo dialético seriam extenuantes. Vejamos somente alguma coisa sobre o Cristianismo em particular.

Enquanto fenômeno sócio-histórico-cultural, ele sozinho serviria para clarificar o que se elucidou acima. Porque se quisermos dizer que o Cristianismo vive do Espírito, teremos que assumir que esse Espírito tem sobrenome, e esse sobrenome é de Subversão. O Cristianismo vive da subversão, tem a subversão no DNA, e deve completamente sua sobrevivência à subversão. Porque é da programação mais íntima da Religião Organizada o controle e a esterilização de todo carisma. Basta comparar, por exemplo, a fé e a práxis das primeiras comunidades cristãs com a fé e a práxis do alto clero na Idade Media. Basta comparar a teologia e a práxis dos Reformadores no século 16 com a teologia e a práxis de boa parte dos Reformados de hoje.

O Protestantismo, produto mais legítimo da subversão em toda Cristandade, vive também à custa dela. Tendo sido vento que esmiúça a pedra, cedinho ele mesmo fez-se pedra por um processo de auto-engessamento ideológico. Esse caleidoscópio religioso atual sob a alcunha de “evangélicos” nada mais é que o produto vivo e pulsante da subversão que, encontrando maior liberdade no Protestantismo, vive de romper odres velhos aqui e acolá. E não há nenhum lamento em minhas observações. Não se pode mesmo pôr vinho novo em odres velhos sem que esses se rompam. Odres novos são sempre bem vindos desde que os vinhos também sejam novos.

Se você conhecer a verdade, a verdade vai libertar você. Credo mínimo de todo espírito subversivo. A verdade não é nem da ordem do absoluto nem da ordem do relativo: ela é da ordem da liberdade.

Uma pena que a maioria dos intérpretes cristãos, em sua ânsia por estreitamentos, tenha confinado a compreensão daquela frase no universo tipicamente religioso. Ou não reconhecemos que conhecer a verdade hoje consista em conhecer as apropriações que cada Igreja faz da Bíblia? Ou não reconhecemos que conhecer a verdade hoje consista somente em se dar conta da trama religiosa que subjaz o sentido do mundo? Grande serviço hermenêutico nós prestaríamos ao mundo se começássemos a alargar essa compreensão do conhecer a verdade.

Aqui também os exemplos concretos seriam extenuantes. Fiquemos somente com a verdade acerca da pobreza sócio-econômica, para concluir.

É sempre rompendo com as significações naturalizantes desse fenômeno, e conhecendo suas causas reais, que os homens resolvem se tornar revolucionários. E nem se precisa de curso superior para isso. A maioria dos militantes do MST, por exemplo, nunca leu uma linha de Marx. É conhecendo a verdade da opressão, e o fato de que a miséria sócio-econômica é produto da espoliação do homem pelo homem, que gente simples se liberta do casulo da impotência e da invisibilidade, se junta com outros, ganha força e milita. É conhecendo a verdade da arbitrariedade e da mesquinhez da natureza humana que os oprimidos levantam seu grito por libertação.

Quando a verdade dos mecanismos da opressão se dá à mente, o homem está livre. Sua luta pela terra, por exemplo, já é produto de libertação. Não estará liberto somente no dia em que conquistar seu pedaço de chão. Nesse dia sua liberdade terá concebido à luz um lindo filho. Mas liberto, de fato, já será. Porque a libertação acontece sempre que um homem ou uma mulher se tornam sujeitos para si mesmos, e resolvem ser artífices de seus próprios destinos.

Albert Camus dizia que “com a rebeldia nasce a consciência”. Poderíamos completar tranquilamente dizendo que “com a consciência fecunda-se a liberdade”. Viver à base da memória de Jesus requer que assumamos a tarefa de ajudar a encher esse mundo de gente subversiva. Gente que consegue conhecer a verdade no tutano das coisas. E, à base disso, compra briga contra as forças que escravizam e que vivem à custa da desumanização.

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

A SAUDADE COMO JOGO E MAGIA


Com a licença de tod@s, eu hoje não desejo falar nem de teologias nem de teólogos. Eu desejo falar é de saudade! Essa coisa estranha que, conforme dizem, só possui um equivalente verbal em nossa língua portuguesa.

Segundo a estória infantil A menina e o pássaro encantado do Rubem Alves, o amor se alimenta da saudade. A menina, apaixonada pelo pássaro encantado, diz: “vou prendê-lo numa gaiola e ele será só meu, por todo tempo”. Preso, o encanto do pássaro fenece. Triste, este diz à menina: “meu encanto reside justamente na graça de voar livremente”. Porque cada vez que o pássaro regressava de seus vôos, trazia em suas penas o colorido dos lugares onde estivera. Engaiolado, restou-lhe somente um cinza enfadonho. Então, liberto outra vez, regressou-lhe o colorido mágico que a distância e a saudade produziam em suas penas.

Estória bonita. Serve para ajudar os relacionamentos amorosos a se alimentarem da saudade. Serve para ajudar pais e filhos da mesma forma. Serve pra conscientizar a própria religião (não vou falar disso hoje!) de que deuses engaiolados por Dogmas são deuses sem cor, sem graça e sem Graça. Mas essa estória remete a saudades temporárias. Saudades leves, com data marcada para acabar.

Há outras saudades que são incuráveis mesmo. A saudade de quem se foi para sempre, de quem morreu, por exemplo. Como o próprio Rubem gosta de dizer, “saudade é a presença de uma ausência”. “É arrumar o quarto do filho que já morreu”, continua citando o Chico Buarque de Holanda. Não há encanto que a cure. Bonhoeffer dizia numa de suas cartas da prisão que não é correto dizer que Deus preenche a lacuna. Ao contrário, Bonhoeffer escreve, Deus justamente a mantém aberta e, dessa maneira, ajuda-nos a preservar nossa ligação com tal pessoa.

Minha esposa sempre me criticou porque rompi os laços com minha terra natal de forma muito abrupta. Sempre manifestei pouca saudade em relação ao lugar e às pessoas dali. Como um psicanalista à cata do seu insight, ela sempre desconfiou desse meu comportamento. Vez por outra arrisca um psico-diagnóstico leigo. E ela tem razão! Na média, embora muitas pessoas do interior cultivem a máxima de que a cidade grande representa uma expansão nos seus horizontes existenciais, quase todas deixam para trás relações que instigam a saudade, ainda que em doses mínimas. E eu de fato, nesse âmbito, sempre demonstrei uma frieza de causar desconfiança mesmo.

Deixei na Bahia uma família com meu pai e meu irmão mais novo. Tenho também duas irmãs, frutos de um segundo casamento de meu pai, e que vivem com sua mãe, a mulher que me deu criação. Meu pai e meu irmão não os vejo há um ano. Pouca coisa. Mas minhas irmãs e minha mãedrasta não as vejo há muito tempo. Tanto tempo que já não tenho mais idéia de quanto seja.

Muito subitamente me invadiu uma saudade enorme desse povo todo. Saudade produzida por geração espontânea, ex nihilo, como diziam os antigos teólogos (eles insistem em se insinuar a mim!). Fui ao Orkut. Encontrei lá muitas fotos de meus irmãos. Foi pior! Outra coisa inusitada irrompeu de minha penumbra interior: esbocei uma lágrima. Tivesse ela chegado a rolar no meu rosto e estaria aí um desses acontecimentos da história que merecem documentação. Coisa esquisita o que me ocorreu. E essas esquisitices todas denunciam a necessidade perene de nos tornarmos todos, caso ainda não sejamos, parceiros epistêmicos de Sócrates, obedecendo-lhe a convocação: conhece-te a ti mesmo.

Meus irmãos já não são aquelas crianças que deixei anos atrás. Cada um está fazendo o seu caminho. Estão todos bem, saudáveis, bonitos (coisa hereditária!), e submersos em diferentes atividades entre trabalho, cultura e estudos. Como o salmista dizia acertadamente, se transformaram em flechas nas mãos do arqueiro (Salmo 127,4). A imagem deles ali no monitor desabrochou a química mental que me remeteu a outras tantas imagens da infância boa no recôncavo baiano. E de repente redescobri que os amo. Redescobri que família é muito mais que genes, carne e sangue compartilhados. Tudo graças a essa coisa mágica chamada saudade.

Eu e meus irmãos, filhotes no ninho ontem, hoje somos pássaros em pleno vôo. Estamos desengaiolados. Talvez quando a vida nos proporcionar um reencontro, ainda que momentâneo, vejamos o colorido nas penas uns dos outros. Espero que possamos ver as marcas de alegria que a vida está impingindo na trajetória de cada um. E que possamos ver aí o produto colorido do encanto que a saudade fez nascer em nós. Afinal, esse colorido só pode ser visto de perto, bem de perto. Depois, resta retomar o vôo e deixar que a saudade continue seu jogo.

sábado, 6 de dezembro de 2008

PARA QUE(M) SERVEM OS TEÓLOGOS?



Os formandos em Teologia desse ano no Seminário Teológico Batista de Alagoas (SETBAL) me pediram que escrevesse um texto para o boletim de seu culto de formatura. Fiz alegremente. Mas, de repente, me invadiu uma vontade de dizer a todos os formandos em Teologia desse ano, em qualquer lugar, o que disse textualmente aos formandos daqui.

Por isso, se você conhece algum formando em Teologia aí no seu lugar, transmita-lhe esse recado.

Fica minha gratidão.

***

Os formandos talvez quisessem me perguntar: “mas somente agora essa questão?” Sim, somente agora! Porque não se precisam de quatro anos de uma graduação para respondê-la. E mesmo agora, no apagar das luzes, é possível extrair a pertinência de sua provocação. Afinal, para que servem os teólogos hoje em dia?

Sei que minha questão é uma provocação, e quase uma afronta. Mas falando honesta e seriamente, no tempo da privatização absoluta da experiência religiosa e da impertinência pública da Teologia Acadêmica, para que servem os teólogos? No tempo marcado pela onipotência do mercado mundial globalizado enquanto regulador das necessidades essenciais dos seres humanos, para que servem os teólogos? No tempo da sacralização e da objetivação dos dogmas neoliberais – competitividade, inclusão excludente, celebração do individualismo, do poder –, para que servem os teólogos?

Digo sem rodeios: se optam pelo equívoco de virar as costas para o turbilhão de novidades desse
estranho mundo novo, os teólogos de fato têm quase nenhuma utilidade. Com seus discursos anacrônicos, suas questões irrelevantes e suas polêmicas desgastadas que não interessam a ninguém, servem somente ao status quo!

Mas minha palavra conclusiva é de esperança!

Posto que ao teólogo está dada a oportunidade singularíssima de fazer magia com a palavra e com a Palavra. A ele/ela é dada a oportunidade ímpar de reler este mundo novo, espiritual e criticamente, à luz do Evangelho de Jesus Cristo. A ele/ela cabe a responsabilidade de invadir esse mundo sem medo, penetrar suas entranhas, falar sua linguagem, deslindar seus segredos, e ajuizá-los conforme a vontade de Deus.

Pois se ainda resta alguma pertinência nesse ofício insistente, é esta: assumir a “santa ambigüidade” de amar/negar o mundo concomitantemente.
Amo o mundo na medida em que penetro em suas entranhas para compreender-lhe a partir de si mesmo. Nego-o na medida em que ao invadir suas entranhas, me deparo com criações e artificialidades anti-evangélicas, desumanizantes e pecadoras. O reconstruo em amor, a partir do Evangelho, que é paz, alegria e justiça no Espírito Santo! Eis a tarefa de vocês, novos teólogos alagoanos!

Parabéns à turma!!!

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

O AB-USO IDEOLÓGICO DO DISCURSO RELIGIOSO


Num país de desarranjos macro-sociais tão escandalosos, dizer a uma pessoa que seus dilemas econômicos pessoais são de origem demoníaca, a meu ver, é mais satânico do que a maior artimanha que qualquer demônio possa intuir.

De um ponto de vista do marxismo, diríamos que tal discurso – o atrelamento de dilemas pessoais de ordem econômica a elementos do imaginário religioso cristão – é substancialmente ideológico, posto que falseia a realidade e se presta a legitimar certas relações de poder. Esconde a realidade concreta de um fenômeno sob uma capa ilusória que mais entorpece do que convoca à ação transformadora. O discurso religioso, nesse viés, portanto, corre o risco da ideologização em cada palavra que profere. Weber já dizia, por exemplo, que a concepção de vocação em Lutero – profissões seculares enquanto vocações com a mesma legitimidade do sacerdócio religioso – tendia a petrificar determinadas relações trabalhistas, isto é, tendia a legitimar religiosamente o que a partir de Durkheim chamaríamos de divisão social do trabalho.

Entretanto, o risco da ideologização nunca foi um privilégio exclusivo da religião. Toda produção da cultura humana traz semelhantemente o risco onipresente do falseamento da realidade e da legitimação de relações assimétricas de poder: a ciência, a filosofia, a arte e o senso comum.

Nunca nos perguntamos como pode uma massa poderosa de trabalhadores se render – nas fábricas, nas usinas, nos escritórios, e etc., – como um rebanho manso às vontades interesseiras de seus patrões? Nunca nos perguntamos como pode uma legião inumerável de pessoas se transformarem coletiva e silenciosamente em instrumentos para a produção de riquezas que pertencerão a pouquíssimas e estranhas mãos? Nunca nos perguntamos como as pessoas vão sendo constrangidas a assimilar e a construir sua experiência pessoal ao redor de cada nova falsa necessidade tecnológica produzida pelo mercado – celulares, ipods, iphones, notebooks? Nunca nos perguntamos como as pessoas podem celebrar a idéia insuportável de competitividade (darwinismo social) propalada exaustivamente por todos os lados, sem se dar conta (e sem se comoverem) do fato de que minha inclusão no mercado de trabalho só pode existir à custa da exclusão de outrem? Enfim, nunca nos perguntamos como multidões inteiras deixam-se convencer por discursos religiosos escancaradamente maliciosos e minimamente cristãos?

Uma vez que as respostas a essas questões acima nem sempre estão atreladas ao discurso religioso, é preciso ir a outras instâncias para encontrá-las. É a produção de sentido, aquilo que Marx deu o nome de aspectos superestruturais de dada sociedade, que responde a essas questões. Toda produção de sentido que alimenta as relações assimétricas numa dada sociedade pode ser adjetivada de ideológica. E seus instrumentos e meios hoje, para além da própria Instituição Religiosa, são muitíssimo variados. Adorno e Horkheimer, por exemplo, já combatiam os efeitos alienantes da indústria cultural desde a primeira metade do século passado. E as mídias talvez ainda compareçam hoje como os maiores veículos de produção de sentidos e de difusão de discursos ideológicos.

A partir a Psicologia Social, Pedrinho Guareschi falava em processos psicossociais da exclusão. Tais processos, por sinal, nos ajudam inclusive a responder algumas daquelas questões acima, pois eles indicam o como da difusão do discurso ideológico. Falava ele, por exemplo, da tática da culpabilização, que consiste basicamente em polarizar toda a responsabilidade pelo destino de uma pessoa sobre ela mesma, desconsiderando todos os fatores sócio-político-econômicos que a envolvem. Em outras palavras, com esse recurso o fracasso pessoal é encarado sempre como responsabilidade exclusiva do indivíduo, de sua falta de ação, de sua preguiça, e etc. Táticas como essa, por se basearem em juízos parciais e falsos sobre esses fenômenos e por servirem a determinados interesses, são profundamente ideológicas.

Mas nenhuma delas ainda se compara à demonização dos dilemas econômicos de uma pessoa. A perversidade da demonização, para além de ser um atentado grotesco à inteligência média, consiste em deixar a pessoa sem quaisquer recursos próprios de ação. É um cruzado a la Mike Tyson. A demonização é uma rasteira que ultrapassa em eficácia o molejo e a força de qualquer capoeirista de minha terra natal! O sujeito está entregue aos cuidados de quem detém a eficácia do capital simbólico da religião. Ao dar assentimento a tal discurso, o sujeito abdica de si mesmo. Numa atitude idólatra, é constrangido a operar segundo a crença de que somente por tais meios (correntes, campanhas, sacrifícios...) e somente pela mediação de tais pessoas de determinado grupo religioso (a casta sacerdotal) seu dilema pode ser superado.

Portanto, não há demonização sem o seu correlato: a idolatria. Esse termo deve ser entendido aqui numa acepção tillichiana, ou seja, como elevação de um ente relativo e condicionado ao status de absoluto e incondicionado. E não esqueçamos a dica de Nietzsche, quando nos lembrava que a idolatria apaga certas idiossincrasias inerentes ao ídolo dos olhos do idólatra. Ao dar adesão ao discurso da demonização, a pessoa tropeça inevitavelmente na advertência do profeta Jeremias: “maldito o homem que faz de seu semelhante o seu braço...” (17,5). Transliterando Jeremias: “o homem que elege seu semelhante como única e exclusiva via para a solução de seus dilemas pessoais, vai se deparar logo-logo com o engano e a desilusão”. Um pouco pessimista, concordo.

Portanto, pior do que responsabilizar unicamente a pessoa por seu fracasso pessoal, é fazer dela esse joguete esdrúxulo, essa marionete incauta, a quem eu posso ludibriar com a mesma astúcia do gênio maligno de Descartes. Parafraseando Jesus para terminar (Mt 8,11-12): “digo-vos que muitos capitalistas e neoliberais virão do Oriente e do Ocidente e tomarão lugares à mesa com Abraão, Isaque e Jacó no reino dos céus; ao passo que os funcionários Universais do Reino serão lançados para fora, nas trevas, e ali haverá choro e ranger de dentes... e muita blasfêmia”.

domingo, 30 de novembro de 2008

MARCOS 10,46-52: UM EXERCÍCIO DEVOCIONAL


Introdução


Todo mundo já ouviu as expressões “alienação” e “povo alienado”. O que queremos dizer com essas expressões? Elas têm muitos sentidos diferentes. Mas, geralmente, o sentido mais usual de “alienação” talvez seja aquele quando dizemos que uma pessoa ou um povo não sabem direito das coisas. É uma pessoa ou um povo por fora das questões políticas, dos jogos da economia, do discurso ciência, enfim... Pessoas assim, dizemos, são pessoas alienadas. Não conhecem nem seus próprios direitos de cidadão. Do contrário, as pessoas que entendem disso tudo são as pessoas “esclarecidas”, “informadas” e “politizadas”.


É verdade que é muito bom quando as pessoas buscam informação sobre tudo. Quando fazemos isso, só temos a ganhar. Ser alguém informado é vantajoso para que não se seja “massa de manobra”, “maria vai com as outras”, ou para que se tenha opinião própria e não se deixe enganar por ninguém. Mas há uma coisa importantíssima: parece que de nada vale sermos tão informados se nos faltam dimensões da vida como a fé, a esperança, e em linguagem bíblica, “a visão do Reino de Deus”, que é espiritual, e por isso mesmo demasiadamente humano. Bartimeu é um exemplo disso!


1. Bartimeu - Cego, mendigo, e à beira do caminho: um sujeito alienado?


Diferentemente de outras narrativas evangélicas (cf. João 9, por exemplo), não sabemos as origens da cegueira de Bartimeu (v.46). Não sabemos se ela era de nascença ou se fora posteriormente adquirida (diabetes, glaucoma, catarata, etc.). É muito provável que sua doença viesse recebendo a significação corriqueira na época, que estava agregada à presença de espíritos malignos. Se isso for correto, esse seria mais elemento oculto no texto que traz à tona mais uma força de opressão sobre aquele homem. Por outro lado, é quase certo que o “ser mendigo à beira do caminho” indique que ele não fosse uma pessoa muito informada das coisas no sentido expresso acima.


Naquele tempo, o acesso à informação era escassíssimo. Sobejava a multidão iletrada (embora eu reconheça que ser iletrado e ser desinformado não sejam a mesma coisa). O acesso ao letramento era quase uma exclusividade da casta sacerdotal e de certos grupos religiosos tradicionais, como os escribas e fariseus, saduceus e essênios, por exemplo. Não que a condição de cegueira e mendicância fosse um determinante em si mesmo da condição iletrada. Mas era um condicionante de muita força. Era com base nisso que, segundo informa o Evangelho de João, as elites religiosas de Israel alimentavam uma abusiva relação opressora em relação às massas (veja João 7,49).


2. Todavia, o clamor de Bartimeu demonstra que ele não era de todo alienado


“Filho de David”, a maneira como Bartimeu se refere a Jesus de Nazaré (v. 47), era uma das formas como as pessoas se referiam ao esperado Messias. Era o que nós, teólogos acadêmicos de hoje, chamamos de “título cristológico”. Era tempo de cativeiro romano. É bem verdade que era um modelo de cativeiro diferente dos anteriormente enfrentados por Israel. Mas era cativeiro, e cativeiro é sempre cativeiro. Qualquer que seja a forma, o conteúdo é sempre o peso da espoliação, da negação de valores nacionais, da opressão econômica, cultural, e etc. Essas coisas todas certamente faziam parte das conversas entre as pessoas “conscientizadas” e “politizadas” daqueles dias em Israel.


Bartimeu, todavia, poderia ser uma pessoa pouco informada sobre essas coisas de fato “importantes”. Mas à sua maneira, Bartimeu estava bem antenado. Mesmo cego, seus “olhos espirituais” estavam o tempo todo bem abertos. Gritar “Filho de David”, para além de ser um clamor pessoal, indica que ele mantinha profunda sintonia com as esperanças messiânicas de sua nação. De dentro da escuridão biofísica, Bartimeu fazia notar a lucidez (relativa à “luz”) de quem está bem informado pelo imaginário espiritual de seus pares judeus. Isto é, Bartimeu na verdade via muito, porque via com os olhos esperançosos de seu povo!


3. Quando nossa “sede oceânica” é atiçada, nada mais nos impede de “ver a Deus”


A resistência e a insistência de Bartimeu em receber o milagre (v. 48) são demonstrações de que nada e ninguém mais podem ser barreiras entre um homem e uma mulher cujo desejo é “ver a Deus”. Quando essa necessidade existencial se nos abre, todo nosso desejo se volta para Deus, e não importa o que os outros digam ou pensem. A “sede oceânica” que nos invade é capaz de enfrentar toda oposição. Acaba o temor, e entra em cena uma “santa insistência” em ser de Deus e em “ver a Deus”.


Quando a “sede oceânica” nos invade, muitas das antigas barreiras e restrições ficam minúsculas em face da nova experiência espiritual. Pedro, Tiago e João nem sequer lembraram da necessidade do ofício que lhes garantia o pão diário. Aquilo ficou minúsculo em face da “sede oceânica” que lhes invadiu. Largaram tudo (Lucas 5,1-11)! Zaqueu, homem de status e importante figura estratégica do sistema tributário romano, “paga o mico” e esquece o constrangimento de, trepado numa árvore, ver a Jesus passar (Lucas 19,1-10). Bartimeu, cego e mendigo – por tabela alguém cuja fragilidade física e a auto-estima estão inferiorizadas em relação à média –, encontra força tal para resistir à oposição daqueles que o repreendiam (v. 48).


Essa tal “sede oceânica”, essa resistência espiritual ao flagelo da vida expressa nas formas religiosas do povo oprimido, é algo a ser considerado, mesmo que sejamos ateus, e muito mais se desejamos ser “teólogos da libertação”.


4. Quando o/a homem/mulher expressa pública ou intimamente o seu desejo, cresce sua confiança em Deus e inicia-se o seu processo libertador


Parece uma pergunta sem sentido a que Jesus fez a Bartimeu (v. 51). Hoje diríamos tratar-se de uma “pergunta retórica”. Mas a pergunta retórica é interessantíssima. Parece ingênua, mas não é. Até Carl Rogers se apercebeu disso em seu método terapêutico. A pergunta retórica faz o sujeito se voltar para a sua própria questão. Faz o sujeito se debruçar sobre o seu próprio objeto de desejo. Perguntando “o que você quer que eu faça Bartimeu?” Jesus devolve ao sujeito a responsabilidade de pensar no objeto de seu próprio desejo. “Quero voltar a ver”, naquele caso, era a expressão de um desejo genuíno. E nossos desejos genuínos só podem ser discernidos por nós mesmos com tal precisão a ponto de dizermos no meio da praça: “quero ver!”.


Ademais, não só Jesus sabia, mas todos ali sabiam que ele era cego. Jesus sabia disso muito mais que todos. Penso que o que Jesus intenta é que, ao expressar seu desejo, Bartimeu coopere no seu processo de cura e de libertação. É assim mesmo que acontece na oração. Ao exteriorizarmos nossas petições, a “cura” e a libertação já se iniciam. Afinal, conforme Jesus, “o vosso Pai conhece todas as vossas necessidades antes que vocês as expressem” (Mateus 6,8).


Conclusão


As pessoas informadas e “conscientizadas” de nossa sociedade, isto é, as “não-alienadas”, deveriam se dar conta da força espiritual e existencial de gente como Bartimeu. Quando não se dão conta disso, passam a engrossar a fileira daqueles que adjetivam de alienados. E, diga-se de passagem, Bartimeu continua muito vivo na biografia de milhões de pessoas vitimadas pelas atuais circunstâncias estruturais e também pessoais.


Nós, de postura auto-intitulada progressista e libertária, deveríamos levar mais em consideração os projetos de libertação escolhidos pelo próprio povo “oprimido”. Afinal, alardeamos na nossa teoria que “o pobre deve ser o próprio sujeito de sua libertação”. Mas ao mesmo tempo, insistimos em que essa libertação se dê conforme o projeto pronto que nós escrevemos e idealizamos. Talvez seja ideal mesclar criticamente os clamores e gritos dos bartimeus de hoje com esses nossos projetos libertários, que também são escritos com muito boa vontade. Mas ainda assim, se não se abrem para a experiência libertadora e para a “sede oceânica” do povo, ficam tão cegos quanto o próprio Bartimeu antes de seu encontro com Jesus.

domingo, 23 de novembro de 2008

APOCALIPSE 17 E 18: UMA RELEITURA


Eu acabei de reler os capítulos 17 e 18 do livro bíblico do Apocalipse. Eles descrevem a ruína de Babilônia. Um primeiro pensamento que me ocorreu após esse exercício devocional, confesso, foi uma sensação de estupidez ligada à interpretação clássica desses textos pelo imaginário das Igrejas Evangélicas. Eu aprendi desde as primeiras lições na EBD (Escola Bíblica Dominical) que a Babilônia ali é uma figura da Igreja Católica. E que o texto era um prognóstico de sua destruição.

Babilônia, a antiga capital da Suméria e Acádia, de fato já não existia no tempo em que o Apocalipse foi escrito, por volta de 96 d.C. Portanto, sua menção nominal ali de fato é um artifício de linguagem. É a expressão velada de uma revolta. Mais ou menos como fez o Chico Buarque de Holanda com o ...Pai, afasta de mim esse cálice... no período da ditadura militar no Brasil. É a exploração inteligente das amplas possibilidades da linguagem em meio à censura e à castração da liberdade de expressão.

Mas não podemos cometer a infâmia de pensar que o próprio texto da Escritura tenha sido escrito à imagem e semelhança do Protestantismo Brasileiro, isto é, que ele seja anticatólicoo.

Aqui, uma denúncia: esses textos não respaldam aquilo que construímos historicamente, ou seja, a nossa condição de inimizade declarada com a Igreja Católica. Pelo contrário, esses textos respaldam aquilo que nunca quisemos ser historicamente, isto é, inimigos dos ídolos reais que oprimem os povos! Porque o texto é escancaradamente anti-imperial!!!

Sim, o texto é anti-romano. Mas não é o prognóstico do declínio de nenhuma Instituição Religiosa de agora. Antes, é o testemunho de um desejo ardente de que o opressor Império Romano feneça. E esses textos só ganham caracteres prognósticos na medida em que sua força espiritual nos impulsione a uma fé anti-imperial hoje.

Nessa leitura também me dei conta de quão anacrônica é a nossa fé e a nossa postura cristã-protestante no mundo. Sem os instrumentais analíticos das Ciências Sociais dos quais dispomos hoje, os textos bíblicos em destaque falam da opressão imperial por via da economia. Sem análise conjuntural, sem marxismo, sem estatísticas e sem diagnose social, os textos ainda assim entendem que o Império e a estrutura econômica que lhe sustenta, em sua influência oni-abrangente, vitima os miseráveis da terra, e, portanto, merece a sentença divina.

Não posso compreender como em nome dos textos das Escrituras ainda sejamos empurrados para fora do mundo. Dispomos hoje de todo um aparato intelectual de excelência – Sociologia, Economia, Ciências Políticas, Psicologia Social, por exemplo – para decifrarmos os meios pelos quais se dão os novos modos de dominação e as novas violências imperiais. Mas surpreendentemente nada disso nos interessa.

Os versículos do capítulo 18,11-20 dizem respeito ao pranto dos mercadores diante da destruição de Babilônia. E ao final consta a conclamação à exultação evangélica diante da coisa toda (18,20). Algumas perguntas a serem feitas são: por que aqueles cristãos desejavam exultar ante a derrocada de um sistema de relações comerciais? O que havia nesse sistema de relações comerciais que suscitasse o desejo de seu desaparecimento por parte do povo de Deus? Por que aquele sistema de relações comerciais fazia parte do discurso evangélico daqueles cristãos? Se o que importava era a salvação pessoal dos eleitos, o discurso de negação de um sistema de relações comerciais não compareceria com uma digressão esquisita? O mundo das relações comerciais não faz parte daquele vil destino à condição laboral que nos foi imputado após a transgressão do Éden?

Só posso pensar que as intuições do autor (ou “dos autores”) dos textos em questão tenham sido germinadas em profunda comunhão com o Espírito de Deus. Sim, porque já esse autor saca com maestria e perspicácia que o mundo do trabalho e das relações comerciais, por sua amplitude oni-abrangente, tem maior poder para oprimir que qualquer outro artifício humano. A riqueza econômica humana, toda ela, é produto de nossa atividade laboral. E é justamente por aí que passam as formas mais recorrentes de pecado que o homem inventou. Porque a guerra, em toda sua monstruosidade, é sempre uma calamidade transitória. Ademais, sua crueldade exige lapsos de tempo bem mais exíguos. Mata-se velozmente. Porque ali o tempo é um fator decisivo.

Com o mundo do trabalho a coisa é diferente. Sua crueldade por vezes exige que as vítimas míngüem e vertam até a última gota de sangue ou de suor. A ele pertence uma dialética tão em voga em nossos dias: a da exclusão/inclusão. E também nós já estamos nessa corrida desenfreada para garantir nossa inclusão nesse arranjo sistemático. Estamos nas universidades, nos cursos técnicos, nas pós-graduações. E nem nos damos conta de que esse processo é dialético, ou seja, que a minha inclusão não existe sem o seu revés: a exclusão de outrem. As dessimetrias classistas também são filhas do mundo do trabalho e das relações de comércio. Porque nunca houve produção de riqueza seguida da equitativa distribuição das mesmas entre os humanos. E aqui também o processo é dialético: toda produção de riquezas implica na produção de dominação. Toda concentração de riquezas num lado implica na exploração do outro.

Engraçado que Lutero, com toda sua ambigüidade, ainda ultrapasse amplamente a maioria de nós. Não podia suportar a usura dos comerciantes cristãos de seu tempo. Via no mundo do trabalho e das relações de comércio de seus dias uma terrível profanação, assim como os primeiros cristãos viram no Império e na Babilônia essa mesma profanação e a relataram no Apocalipse. Lutero escreveu de forma virulenta contra aqueles que haviam tornado a necessidade do outro uma fonte de lucro.

Portanto, não tenho dúvidas de que se trata mesmo, no caso do Apocalipse, de um texto inspirado. E pelo que me lembro, entrou bastante tardiamente no Canon oficial das Escrituras. Foi o último na composição do Novo Testamento. Mas entrou a tempo de nos fazer perceber que não existe pertinência evangélica sem o paradoxal movimento de negação e de amor ao mundo. Amo o mundo na medida em que penetro em suas entranhas para compreender-lhe a partir de si mesmo. Nego-o na medida em que ao invadir suas entranhas, me deparo com criações e artificialidades anti-evangélicas, desumanizantes e pecadoras. O reconstruo em amor, a partir do Evangelho, que é paz, alegria e justiça no Espírito Santo!

O autor de Apocalipse sabia disso tudo antes de mim. Se convidou a todos a que jubilassem a queda de Babilônia, é porque estava embevecido desse paradoxo de negação do mundo e de amor ao mundo – negação da opressão que se dá por meio do mundo do trabalho e das relações de comércio – amor pelos seres humanos espoliados por isso.

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

A ESPIRITUALIDADE DE EINSTEIN E SAGAN


Cheguei à conclusão de que nem a mais profunda decepção com a Instituição Religiosa seria suficiente para que eu me tornasse um homem “sem espiritualidade”. Nem a mais profunda decepção com as pessoas mais piedosas que conheço serviria para abalar a dimensão espiritual em mim. Sim, porque tanto o referencial da Instituição Religiosa quanto o testemunho de pessoas santas servem também como uma espécie de “base complementar” para nossa experiência espiritual, além da nossa própria convicção pessoal.

Mas é bem verdade que nesses tempos atuais nem todas as pessoas pensam como eu. Muita gente se assume profundamente espiritual a despeito das Instituições Religiosas e do referencial de outras pessoas. Desde que se operou a distinção entre religiosidade e espiritualidade, muita gente se sente solta para cultivar a espiritualidade fora das paredes dos templos.

Isso nunca agradou as instâncias oficiais que gerenciam o arcabouço simbólico das religiões. E essa espiritualidade “espontânea” fica sempre com a pecha da marginalidade. De certa forma, o próprio Jesus de Nazaré teve que enfrentar esse de tipo de censura nos seus dias. Sua espiritualidade não foi oficial, mas marginal. E penso que hoje a oficialidade dos múltiplos cristianismos talvez repetissem o que a oficialidade judaica de seu tempo fez com ele.

Carl Sagan, falecido astrofísico estadunidense e popularizador da ciência [cuja réplica no Brasil tem sido a figura de Marcelo Gleiser], chega a afirmar estranhamente que a espiritualidade é um dos produtos resultantes da própria atividade científica. Obviamente, não podemos nos iludir a ponto de pensar que Sagan está falando da espiritualidade preconizada pela Religião. Não! Espiritualidade aí é o produto da contemplação de nosso lugar na inefável grandeza do universo. Em O mundo assombrado pelos demônios Sagan chega a dizer que “a ciência não é só compatível com a espiritualidade; é [também] uma profunda fonte de espiritualidade”. Segue ainda dizendo que:

“Quando reconhecemos nosso lugar na imensidão de anos-luz e no transcorrer das eras, e quando compreendemos a complexidade, a beleza e a sutileza da vida, então o sentimento sublime, misto de júbilo e humildade, é certamente espiritual”.

Antes disso, Einstein – quer era judeu de raça, mas não de religião – parece ter dito as mesmas coisas com palavras diferentes. Para mim Einstein até teve mais ousadia do que Sagan – obviamente em função de sua maior genialidade. Porque para aquele a espiritualidade não era somente um produto da atividade científica, como dizia Sagan, mas era o próprio poder oculto na biografia de cientistas famosos. Einstein falava em religiosidade cósmica. Em outras palavras, trata-se daquele mesmo vislumbre perante o universo enunciado por Sagan. Assim ele a explica em Como vejo o mundo:

“O ser experimenta o nada das aspirações e vontades humanas, descobre a ordem e a perfeição onde o mundo da natureza corresponde ao mundo do pensamento. A existência individual é vivida então como uma espécie de prisão e o ser deseja provar a totalidade do Ente como um todo perfeitamente inteligível”.

Einstein admite a presença germinal dessa religiosidade cósmica já em alguns Salmos de David e em alguns profetas bíblicos; em seguimentos do Budismo e em Schopenhauer; nos gênios religiosos e também nos hereges de todos os tempos; em Demócrito, São Francisco de Assis e em Espinoza, por exemplo. Essa religiosidade cósmica, segue Einstein, “não tem dogmas nem Deus concebido à imagem do homem, portanto nenhuma Igreja a ensina”. Em função da sempiterna voracidade de poder das Oficialidades Religiosas, explica nosso físico, homens e mulheres dessa estirpe sempre foram considerados subversivos, ou mesmo ateus. Não obstante, a vontade de fusão na totalidade do Ser encontrada nessas pessoas religiosas, é a mesma que movia as vidas de cientistas como Kepler e Newton, por exemplo.

Nunca houvesse sido erigida uma única Religião Organizada sequer, teríamos ainda mil motivos para ser profundamente espirituais. Porque não bastasse essa sublimidade estonteante do universo apontadas por Einstein e Sagan, o próprio mistério da vida convoca a uma atitude de reverência. O próprio mistério do Ser Humano, enquanto espécie sui generis na terra, nos convida a dedicar-lhe algum tempo. O que brota daí é espiritualidade em sua mais autêntica expressão.

Pequeno, eu chamava meu pai de painho. Coisa típica da Bahia. Um professor meu, gaúcho, disse certa vez que lá no sul isso soaria pouco masculino (os gaúchos e seu velho complexo de masculinidade!). Outros usam simplesmente “pai”, ou “papai”, para se referir ao seu genitor. Nós usamos “Deus” para falar da fonte primária de tudo isso. Einstein e Sagan usavam outros nomes. Somente os nomes são diferentes, mas no fundo, todos estamos falando de uma coisa só. E só se pode falar dessa “uma coisa só”, ainda que num breve texto como esse, se não abdicamos de nossa espiritualidade a despeito de nada.

LEIA MENOS, PENSE MAIS!


“Quem pensa por si mesmo é livre, e ser livre é coisa muito séria...” (Renato Russo)

Há bem poucos dias eu andava por aqui me queixando da queda em meu ritmo pessoal de estudos. É um tipo diferente de neurose, que tem forma de autopunição intelectual, e se manifesta nessa cobrança auto-imposta por leituras e estudos. Voltei a pensar que aquele adágio popular, “quem estuda demais fica doido”, pudesse ser verdadeiro. Como se o sumo bem da vida consiste em devorar pilhas de livros. E como se precisássemos disso como forma de auto-afirmação diante dos outros.

Bobagem pura!

Ser um devorador de livros, pelo contrário, denuncia o quanto somos tolos!

Comumente reverenciamos as pessoas ditas “inteligentes”. Olhamos os acadêmicos com uma admiração silenciosa, e por vezes nos projetamos neles. E sempre que fazemos isso repetimos a confusão entre ciência e sapiência.

Eu, pessoalmente, ando mesmo é desencantado com a maioria dos intelectuais e acadêmicos que conheço. Não estou a fim de seguir os passos de nenhum deles. E não tenho dúvidas de que a própria Universidade, enquanto espaço de produção de novos intelectuais e acadêmicos, também aliena por formar justamente esses acadêmicos irrelevantes com os quais não quero me aparentar.

Paulo Freire (Pedagogia da Autonomia) falava sobre uma espécie de intelectuais a quem chamava criticamente de “memorizadores”:

“O intelectual memorizador, que lê horas a fio, domesticando-se ao texto temeroso de arriscar-se, fala de suas leituras quase como se estivesse recitando-as de memória – não percebe, quando realmente existe, nenhuma relação entre o que leu e o que vem ocorrendo no seu país, na sua cidade, no seu bairro. Repete o lido com precisão mas raramente ensaia algo pessoal. Fala bonito de dialética mas pensa mecanicistamente. Pensa errado. É como se os livros todos a cuja leitura dedica tempo farto nada devessem ter com a realidade de seu mundo (...).

Mas antes de Paulo Freire, quem “pegou pesado” mesmo com os intelectuais memorizadores, acadêmicos universitários e eruditos puros foi Arthur Schopenhauer. Numa fantasia do pensamento, pensei que se eu fosse reitor de Universidade, de Seminário, ou diretor de Escola, promulgaria lei que levasse à leitura em cada classe, no primeiro dia do ano letivo, da seguinte passagem de Schopenhauer (A Arte de Escrever):

“A peruca é o símbolo mais apropriado para o erudito puro. Trata-se de homens que adornam a cabeça com uma rica massa de cabelo alheio porque carecem de cabelos próprios. (...) O excesso de leitura tira do espírito toda elasticidade, da mesma maneira que uma pressão contínua tira a elasticidade de uma mola. O meio mais seguro para não possuir nenhum pensamento próprio é pegar um livro nas mãos a cada minuto livre. (...) Os eruditos são aqueles que leram coisas nos livros, mas os pensadores, os gênios, os fachos de luz e promotores da espécie humana são aqueles que as leram diretamente no próprio livro do mundo. (...) Assim, uma pessoa só deve ler quando a fonte de seus pensamentos próprios seca, o que ocorre com bastante freqüência mesmo entre as melhores cabeças. Por outro lado, renegar os pensamentos próprios, originais, para tomar um livro nas mãos é um pecado contra o Espírito Santo. (...) Ler significa pensar com uma cabeça alheia, em vez de pensar com a própria. Nada é mais prejudicial ao próprio pensamento".

Confesso que tomei um susto quando li pela primeira vez, em Discurso do Método, Rene Descartes afirmando que para alcançar um conhecimento verdadeiro sobre as coisas, o primeiro passo que ele tomou foi o de esquecer tudo o que aprendeu no melhor colégio da Europa de então – La Fleche:

“Eu sempre tive um enorme desejo de aprender a diferenciar o verdadeiro do falso, para ver claramente minhas ações e caminhar com segurança nesta vida. (...) Após dedicar-me por alguns anos em estudar assim no livro do mundo, e em procurar adquirir alguma experiência, tomei um dia a decisão de estudar também a mim próprio e de empregar todas as forças de meu espírito na escolha dos caminhos que iria seguir. Isso, a meu ver, trouxe-me muito melhor resultado do que se nunca tivesse me distanciado de meu país e de meus livros”.


Mas não são justamente as Escolas, as Universidades e os outros Centros de Formação da vida que carregam a tarefa de nos “instruírem” e nos ajudarem a “forjar nossos conhecimentos”?

Sim, salvo se eles não esquecerem o fato de que não é de “perucas” que precisamos. O que nós precisamos é de centelhas de conhecimento que aticem nosso pensar próprio. Porque nossas cabeças são fogueiras! O conhecimento alheio só será pertinente na medida em que for fomento para a liberdade do próprio pensar de cada um de nós. Caso contrário, no lugar de nos “instruir” esse conhecimento vai “destruir” nossa liberdade criativa e nossa inventividade. E no lugar de “forjar nossos conhecimentos” vai “forjar nosso aliciamento às algemas epistemológicas alheias”.

Eu já decidi que não quero isso pra mim! Parei de reclamar pelo fato de estar lendo pouco. Porque, reitero, não quero peruca: quero fogo!

terça-feira, 18 de novembro de 2008

MARX VERSUS MARXISTAS


Se eu fosse espírita, pediria a Deus para que na próxima reencarnação me fizesse aranha. Mas não é a sua belíssima teia que me fascina, mas seus oito olhos. Mas também não são seus oito olhos em si que me fascinam. Mas a metáfora que eles provocam. Ver o mundo com oito olhos, ou mais, é o que todos devemos fazer se quisermos vê-lo em toda a sua beleza.

Me assustei quando vi a faixa esticada na frente da Biblioteca Central da UFAL. Era o anúncio de um seminário promovido pelos estudantes de Filosofia: O funeral inconcluso: A insuperável filosofia marxiana para o século XXI. Apenas esse ano é o terceiro evento cujo tema central é esse: a filosofia de Karl Marx. Participei dos outros dois primeiros. Gosto de Marx! Mas duvido que o mesmo ficasse satisfeito se pudesse saber o que se passa com os seus ditos seguidores do século XXI em Alagoas.

Marx não seria marxista ortodoxo nos dias de hoje. Nesse tempo de novas demandas políticas, sociais, econômicas e conjunturais como um todo, Marx seria um “revisionista”. Hoje ele falaria mais em “pobretariado” do que em proletariado. E ao assistir a performance dessa cultura de massa, falaria em “ideologia” de outra forma. Atitudes que o tornaria suspeito entre os marxistas atuais da UFAL. Seria Marx versus marxistas alagoanos!

Sim, porque os tais se imaginam em pleno século 19. Viram as costas para um mundo de transformações ocorridas nesses 160 anos desde a publicação do Manifesto Comunista em 1848. Não conseguem ver os limites e os recortes que o marxismo ortodoxo ainda não podia dar conta naquele momento. E chamam pejorativamente de “revisionistas” a todos aqueles e aquelas que tentam dar conta dessas insuficiências. Nada sabem sobre a opressão da raça e do gênero, por exemplo.

Foi Erick Hobsbawm quem disse que “Marx não regressará como uma inspiração política para a esquerda até que se compreenda que seus escritos não devem ser tratados como programas políticos, mas sim como um caminho para entender a natureza do desenvolvimento capitalista”*. Mas os marxistas de agora pensam diferente. E querem eles, em nome dos trabalhadores, ascender ao poder por via de uma revolução que nunca se viabiliza na prática. Eu não temeria tanto uma “ditadura do proletariado”. Mas morreria de medo de uma ditadura desses marxistas que nunca souberam o que é a miséria na sua carne.

O que eu penso mesmo é que esses sujeitos são bastante religiosos. Fundamentalistas com tudo o que têm direito: messias (Marx), credo apostólico (Manisfesto Comunista), panteão particular (Lenin, Mao Tse Tung, etc.) e corpo doutrinário (materialismo histórico e dialético). Deram forma secular a um dos piores legados da religião, que é o pensamento único. Não conseguem enxergar o mundo senão com as lentes do marxismo ortodoxo.

Nesse sentido, não há como não entrar no campo da epistemologia.

Não sabem eles que a própria razão humana vem resistindo feroz e secularmente ao império do pensamento único. Nem é preciso falar nada acerca do oceano de revisões e revisões teóricas produzidas em cada campo do conhecimento humano todos os dias. Basta falar nas próprias modalidades de relação com o real que a razão humana criou: o senso comum, a filosofia, a ciência, a arte e a própria religião.

Todas essas modalidades se constituem em possibilidades de construção do real. Porque o real não nos está dado fora de nossa relação com ele. O real se torna tal desde nossa interação com o mesmo. Pensando assim, não existe, a rigor, conhecimento humano que seja ilegítimo em si mesmo, uma vez que todo ele é produto dessa nossa relação exasperada com o real, querendo conhecê-lo. Todo ser humano aspira naturalmente ao conhecimento, dizia Aristóteles no princípio de sua Metafísica. Hoje já sabemos que essa busca instintiva não quer dizer um desvelamento do que o real é, mas a construção mesma do real por nós.

Portanto, Deus que me livre de ver o mundo (ou de construir o real) com uma lente só. Quero os olhos da aranha. O que não entrar no campo de visão de um olho, entra no do outro. E quanto mais olhos, mais larga em extensão será a visão. Aí o senso comum dialoga com a ciência, que mergulha na fruição da arte – da poesia, da música, da plasticidade –, que medita junto à filosofia, que contempla à luz da religião. E o mundo fica mais colorido. E sem esquecer que o próprio Marx tem um lugar de honra nisso tudo!

sábado, 15 de novembro de 2008

A CRISE ECONÔMICA E A FOBIA DOS PROFETAS


Não posso esconder que a idéia de “sociedade secularizada” me provoca um certo contentamento. O “mundo emancipado e adulto”, tematizado por Bonhoeffer, mundo que alcançou a maioridade e deixou pra trás a dependência das cangas da religião organizada, esse mundo é para mim uma tentação, um flerte, em quem encontro um prazer recatado. Mas em nome da religião organizada e de sua pertinência ancestral, temos que viver de recalque em recalque a esse sonho secularista. Isso é uma confissão. E não vou negar que é isso que sinto verdadeiramente.

Mas também não posso negar que boa parte desse processo secularizador deu-se sobre bases religiosas. Por exemplo, interpreto (criticamente) os movimentos sociais de agora como formas secularizadas das esperanças evangélicas que tombaram no percurso histórico do Cristianismo. Para mim, a “voracidade de poder” das igrejas cristãs custou a morte dessas esperanças, que hoje pululam aqui e acolá nos movimentos sociais.

Mas meu flerte com o mundo “adulto e emancipado” não se faz acriticamente. Também este vai dando mostras suficientes de que ainda não é bem a síntese que desejamos.

Aponto somente uma razão que me faz pensar assim. E nisso, penso, o mundo secularizado repete tacitamente a atitude do mundo sob a égide religiosa. Refiro-me à fobia dos profetas. Tal como o mundo balizado pelas religiões organizadas, o mundo secularizado, adulto e emancipado tem medo dos profetas.

Quero iluminar a questão com um exemplo prático e atual.

O mundo todo anda estupefato com as oscilações em Wall Street. Mesmo nós, que pouco sabemos sobre conjuntura econômica, começamos a organizar nossas vidas em sintonia com os atuais dilemas do mercado mundial globalizado. Aqui e ali encontro pessoas que já refizeram planos e adiaram sonhos de consumo. Temerosas acerca dos próximos desdobramentos do chacoalhar da economia mundial, essas pessoas desistiram da compra de carros, casas, viagens parceladas e outros compromissos que demandassem financiamentos longos. Se há fundamento verdadeiro por trás dessas ações, não sei. Mas fenomenologicamente elas são uma demonstração explícita do poder dessa teia global na qual estamos todos integrados.

Mas o fato que eu gostaria de mencionar, é que muito antes de todo esse alarde em torno dos atuais desarranjos econômicos, muitos Teólogos/as (sim, T-E-Ó-L-O-G-O/A-S!!!) anteciparam-se com discursos proféticos que alertavam as sociedades contra um modelo de economia que era insustentável a médio e longo prazo. Não falavam na condição de economistas, mas na condição de profetas evangélicos. Mas com as categorias analíticas próprias das Ciências Humanas, diziam ao mundo que o pior pecado desse sistema de relações econômicas estava no seu “DNA antievangélico”, excludente (para dois terços dos seres humanos), opressor (concreta e simbolicamente) e imperialista (identificado com centros geográficos bem definidos).

Recomendo, a despeito de dúvidas a esse respeito, uma investigação em torno desses nomes: Hugo Assmann, Jung Mo Sung, Franz Hinkelammert, Ulrich Duchrow, Ignacio Ellacuria, Jon Sobrino, José Comblin, Juan Luis Segundo, Leonardo Boff e Elza Tamez. Esses são somente alguns nomes acerca dos quais consigo lembrar sem consulta.

Em certa medida, observando as especificidades de cada um desses articuladores, todos apontaram para o que Assmann se referia como sendo uma idolotria do mercado. Aplicar a idolatria como chave interpretativa em relação ao mercado mundial globalizado significa dizer que este assumiu as características da “idéia de Deus”. Mas essa identificação da idolatria do mercado não se faz por simples analogia. Antes, faz-se a partir do reconhecimento da auto-divinização mesma do mercado ao impor-se como um absoluto para as pessoas, como objeto de esperança ditando as “leis do sucesso”, o perfil do homem e da mulher bem-sucedidos (nesse caso, os consumidores), e, por tabela, identificado os interesses dos grupos dominantes com os interesses de todos e com os da natureza.

Confira você mesmo, num exemplo, se a tipologia dos ídolos modernos elaborada por Jon Sobrino não explica muito da bifurcação econômica pela qual atravessa o mundo agora:

(1) os ídolos [nesse caso, o mercado] apresentam características de divindades: ultimacidade (não se pode ir além deles), autojustificação (não necessitam justificar-se a si mesmos diante dos seres humanos), intocabilidade (não podem ser questionados e quem o fizer será destruído);

(2) agregam a si instituições sociais como instrumentais de ação: poder militar, político, patriarcal, cultural, étnico, judicial, intelectual e também com freqüência o poder religioso;

(3) exigem culto: as práticas cruéis do capitalismo;

(4) exigem uma ortodoxia: exigem uma ideologia acompanhante [neoliberalismo?] e prometem salvação a seus adoradores, isto é, torná-los semelhantes aos ricos e poderosos do primeiro mundo.

Li em Nietzsche (O Anticristo) que “o proprium de toda grande idolatria reside no fato de que ela apaga no ser idolatrado idiossincrasias e feições originais, feições com freqüência penosamente estranhas; ela mesma sequer as enxerga”. E ouvi de Jorge Nery, numa aula de Mentoreamento em 2001, que “todo ídolo, quando se quebra, é odiado pelo idólatra”. Nietzsche tem razão quanto a relação entre os homens que “movem o mundo” das relações econômicas hoje e seu ídolo (o mercado). Queira Deus que agora Jorge também tenha razão em seu aforismo.

Sim, os profetas precisam ser ouvidos. Eu já sabia que eles não eram da ordem da religião organizada. Agora vejo que também não são da ordem do mundo “emancipado e adulto”. Eles devem pertencer a essa síntese que buscamos e que ainda não sabemos o nome. Melhor, sabemos o nome, mas esquecemos o significado profundo: Evangelho.