terça-feira, 18 de novembro de 2008

MARX VERSUS MARXISTAS


Se eu fosse espírita, pediria a Deus para que na próxima reencarnação me fizesse aranha. Mas não é a sua belíssima teia que me fascina, mas seus oito olhos. Mas também não são seus oito olhos em si que me fascinam. Mas a metáfora que eles provocam. Ver o mundo com oito olhos, ou mais, é o que todos devemos fazer se quisermos vê-lo em toda a sua beleza.

Me assustei quando vi a faixa esticada na frente da Biblioteca Central da UFAL. Era o anúncio de um seminário promovido pelos estudantes de Filosofia: O funeral inconcluso: A insuperável filosofia marxiana para o século XXI. Apenas esse ano é o terceiro evento cujo tema central é esse: a filosofia de Karl Marx. Participei dos outros dois primeiros. Gosto de Marx! Mas duvido que o mesmo ficasse satisfeito se pudesse saber o que se passa com os seus ditos seguidores do século XXI em Alagoas.

Marx não seria marxista ortodoxo nos dias de hoje. Nesse tempo de novas demandas políticas, sociais, econômicas e conjunturais como um todo, Marx seria um “revisionista”. Hoje ele falaria mais em “pobretariado” do que em proletariado. E ao assistir a performance dessa cultura de massa, falaria em “ideologia” de outra forma. Atitudes que o tornaria suspeito entre os marxistas atuais da UFAL. Seria Marx versus marxistas alagoanos!

Sim, porque os tais se imaginam em pleno século 19. Viram as costas para um mundo de transformações ocorridas nesses 160 anos desde a publicação do Manifesto Comunista em 1848. Não conseguem ver os limites e os recortes que o marxismo ortodoxo ainda não podia dar conta naquele momento. E chamam pejorativamente de “revisionistas” a todos aqueles e aquelas que tentam dar conta dessas insuficiências. Nada sabem sobre a opressão da raça e do gênero, por exemplo.

Foi Erick Hobsbawm quem disse que “Marx não regressará como uma inspiração política para a esquerda até que se compreenda que seus escritos não devem ser tratados como programas políticos, mas sim como um caminho para entender a natureza do desenvolvimento capitalista”*. Mas os marxistas de agora pensam diferente. E querem eles, em nome dos trabalhadores, ascender ao poder por via de uma revolução que nunca se viabiliza na prática. Eu não temeria tanto uma “ditadura do proletariado”. Mas morreria de medo de uma ditadura desses marxistas que nunca souberam o que é a miséria na sua carne.

O que eu penso mesmo é que esses sujeitos são bastante religiosos. Fundamentalistas com tudo o que têm direito: messias (Marx), credo apostólico (Manisfesto Comunista), panteão particular (Lenin, Mao Tse Tung, etc.) e corpo doutrinário (materialismo histórico e dialético). Deram forma secular a um dos piores legados da religião, que é o pensamento único. Não conseguem enxergar o mundo senão com as lentes do marxismo ortodoxo.

Nesse sentido, não há como não entrar no campo da epistemologia.

Não sabem eles que a própria razão humana vem resistindo feroz e secularmente ao império do pensamento único. Nem é preciso falar nada acerca do oceano de revisões e revisões teóricas produzidas em cada campo do conhecimento humano todos os dias. Basta falar nas próprias modalidades de relação com o real que a razão humana criou: o senso comum, a filosofia, a ciência, a arte e a própria religião.

Todas essas modalidades se constituem em possibilidades de construção do real. Porque o real não nos está dado fora de nossa relação com ele. O real se torna tal desde nossa interação com o mesmo. Pensando assim, não existe, a rigor, conhecimento humano que seja ilegítimo em si mesmo, uma vez que todo ele é produto dessa nossa relação exasperada com o real, querendo conhecê-lo. Todo ser humano aspira naturalmente ao conhecimento, dizia Aristóteles no princípio de sua Metafísica. Hoje já sabemos que essa busca instintiva não quer dizer um desvelamento do que o real é, mas a construção mesma do real por nós.

Portanto, Deus que me livre de ver o mundo (ou de construir o real) com uma lente só. Quero os olhos da aranha. O que não entrar no campo de visão de um olho, entra no do outro. E quanto mais olhos, mais larga em extensão será a visão. Aí o senso comum dialoga com a ciência, que mergulha na fruição da arte – da poesia, da música, da plasticidade –, que medita junto à filosofia, que contempla à luz da religião. E o mundo fica mais colorido. E sem esquecer que o próprio Marx tem um lugar de honra nisso tudo!

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