sábado, 1 de novembro de 2008

UMA REFORMA PROTESTANTE ÀS AVESSAS


Na oportunidade dos 491 anos da Reforma Protestante, aconteceu no SETBAL (30/10) uma mesa redonda onde me coube a provocação inicial. Disponibilizo a todos e todas o conteúdo transcrito de minha fala ali. Espero que a exemplo do momento da fala, o texto agora também possa provocar inquietações e quem sabe uma boa discussão.

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Se a Reforma do século 16 consistiu num afastamento das práticas da Igreja Católica, uma Reforma em nossos dias deveria consistir numa aproximação a outras práticas dessa mesma Igreja. Que quer dizer essa tese estranha?

O Protestantismo se sedimenta no Brasil a partir do século 19, com uma primeira frente a que chamamos de protestantismo de imigração, mas ganha status majoritário no protestantismo de missão: batistas, presbiterianos, episcopais, metodistas, etc.

Mais do que as intenções missionárias, esses grupos protestantes aqui chegados, em maior parte dos EUA, estão imbuídos do ideal político liberal-modernizante. No que ele consiste? Primeiro, numa avaliação do “atraso” da sociedade brasileira como relacionado à hegemonia católica, e, segundo, na pressuposição de que o modelo político liberal-moderno representaria uma oportunidade para vencer o atraso dessa sociedade (daí muitos desses grupos apostarem forte na educação). Missão, para esse protestantismo recém importado, consiste no proselitismo, na luta anticatólica e na construção de uma sociedade que reproduza as condições norte-atlânticas de onde vem esse protestantismo.

E a Igreja Católica? Bem, essa ainda está presa à formatação tridentina, ou seja, a uma auto-percepção de uma Igreja superposta à sociedade, tutora espiritual hegemônica das comunidades, preocupada mais em preservar seu tesouro simbólico do que em servir à sociedade. Missão, para essa Igreja Católica, consiste em preservar sua hegemonia e sua influência social.

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Em meados do século 20 no Brasil fatores de ordem social, política e econômica, exigiriam uma revisão de todos os pressupostos missiológicos tanto de católicos quanto de protestantes. Quais fatores são esses?

O Brasil, país que até a década de 1950 permanecia sendo de base social eminentemente agrária (grande exportador de café, fumo, borracha, açúcar), por ocasião dos governos populistas (com especial acento no governo Kubistcheck), entra no circuito dos países capitalistas tentando sair da mísera condição de exportador de bens primários e inicia seu processo de industrialização. Esse projeto recebeu a alcunha de desenvolvimentista (teoria crítica que teve inclusive como co-criador Fernando Henrique Cardoso).

Muito cedo as contradições desse projeto desenvolvimentista vieram à tona. No lugar do desenvolvimento, o subdesenvolvimento; no lugar da autonomia econômica, a dependência total dos países ricos; no lugar da superação da situação colonial, o neocolonialismo; no lugar do bem-estar social, o acirramento da desigualdade e do fosso entre ricos e miseráveis. E as Igrejas, como reagiram a isso tudo?

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Em nível mundial, eu destacaria o Concílio Vaticano II (1962-1965) como a maior tentativa de reforma eclesial do catolicismo no século passado. Trata-se do concílio de abertura, que, definido rapidamente, representou o desejo de abrir a Igreja para o mundo, ouvir seus clamores e respondê-los pertinentemente. Pressupõe-se que uma estrutura velha não pode dar respostas a desafios novos. Dizia Pablo Richard num artigo recente dedicado à memória de Dom Helder: “o futuro da Igreja não está na aliança com o poder político, mas na encarnação da Igreja na sociedade civil. (...) A promoção humana é o terreno privilegiado da evangelização”. Menciono a seguir uma série de novas estruturas eclesiais alimentadas por esse espírito e surgidas depois do Vaticano II:

A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), fundada por Dom Helder Câmara, que hoje é responsável pelas anuais Campanhas da Fraternidade; a Conferência do episcopado latino-americano em Puebla (1968), cujas decisões mais importantes inflamaram os anseios da Teologia da Libertação por voltarem-se todas para a realidade de opressão e miséria das maiorias nesses países; o Movimento Bíblico, cuja grande contribuição fora recolocar a Bíblia na mão do povo (embora a liberdade interpretativa esteja sempre sob os rigores do Magistério); as milhares de Comunidades Eclesiais de Base (CEB’s) espalhadas pelo Brasil e cujos anseios, de acordo com Leonardo Boff, refletiam uma nova maneira de ser Igreja (Católica) no Brasil – uma eclesiogênese –, mais descentralizada em termos de poder, mais afeita à participação efetiva dos leigos e mais engajada nos problemas concretos das maiorias pobres; as diversas Pastorais Civis, como a Pastoral da Terra, Carcerária, Universitária e da Criança, que representam a encarnação da igreja nos dilemas mais profundos da sociedade civil; além dos muitos grupos sem vínculo institucional, porém imbuídos do mesmo espírito e amparados pela participação de representantes oficias da Igreja, como as Comissões Justiça e Paz e o Conselho Indigenista Missionário.

Vejam, há algumas questões aí a serem ponderadas. Duas delas são: primeiro, a vantagem católica de ter um centro unificador do pensamento e do comportamento, que é o Vaticano; segundo, boa parte dessas conquistas é produto da “esquerda católica” e dos movimentos marginais. Tenho isso em mente.

Por mais surpreendente que seja, nós, protestantes, também reagimos muito bem a esses novos desafios. As décadas de 1950 e 1960 são, a meu ver, as mais ricas da história de nosso protestantismo brasileiro. Nasceram aí entre batistas, presbiterianos, luteranos, e outros, movimentos marcados pela preocupação com a realidade sócio-política do país.

Mas pergunto: quantos de nós ouviu falar em Richard Shaull e em sua obra? Ou do Setor de Responsabilidade Social da Igreja (SRSI), órgão da Confederação Evangélica Brasileira (CEB)? Ou da União de Estudantes Cristãos do Brasil (UCEB)? Quantos batistas aqui ouviram falar no Manifesto de Ministros Batistas de 1962? Quantos de nós ouviu falar na Conferência do Nordeste de 1963, cujo tema foi Cristo e o processo revolucionário brasileiro, contado com a participação de Paul Singer, Celso Furtado e Gilberto Freyre? Entre 1955 e 1962 o SRSI organizou quatro grandes conferências nacionais. Eis os temas: A responsabilidade social da Igreja (1955); A Igreja e as Rápidas Transformações Sociais no Brasil (1957); A Presença da Igreja na Evolução da Nacionalidade (1960); Cristo e o processo revolucionário no Brasil (1963). Quem entre nós tinha conhecimento disso?

Infelizmente, as forças conservadoras dessas igrejas todas venceram esse espírito. De mãos dadas com o regime militar, identificaram esses ideais como “comunistas”, e baniram o espírito profético do nosso protestantismo brasileiro. Diferentemente de nossos irmãos católicos, não temos hoje em dia muitos frutos perenes dessa época. Infelizmente.

Encurtando o papo: qual nossa tara hoje, e quais as Reformas das quais nos orgulhamos? Quais são os temas de nossos encontros e congressos? Eu digo: Igreja com Propósitos, Igreja em Células, G 12, G 5, e os demais genéricos... Isso porque estou falando do protestantismo de missão e não do neopentecostalismo e suas variantes. Por que não voltar a semear a mesma reforma daquele nosso protestantismo? Não seria essa uma grande Reforma para o nosso tempo?

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Termino mudando um pouco a minha tese inicial: Se a Reforma do século 16 consistiu num afastamento das práticas da Igreja Católica, uma Reforma em nossos dias deveria consistir numa aproximação a outras práticas dessa mesma Igreja e num reavivamento do nosso espírito profético das décadas de 50 e 60. Deixe eu citar pra vocês ainda um trechinho do maior profeta brasileiro do século 20, Dom Helder Câmara:

“Nunca se deve temer a utopia. Agrada-me dizer e repetir: quando se sonha só, é um simples sonho, quando muitos sonham o mesmo sonho, é já a realidade. A utopia partilhada é a mola da história”.

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