domingo, 23 de novembro de 2008

APOCALIPSE 17 E 18: UMA RELEITURA


Eu acabei de reler os capítulos 17 e 18 do livro bíblico do Apocalipse. Eles descrevem a ruína de Babilônia. Um primeiro pensamento que me ocorreu após esse exercício devocional, confesso, foi uma sensação de estupidez ligada à interpretação clássica desses textos pelo imaginário das Igrejas Evangélicas. Eu aprendi desde as primeiras lições na EBD (Escola Bíblica Dominical) que a Babilônia ali é uma figura da Igreja Católica. E que o texto era um prognóstico de sua destruição.

Babilônia, a antiga capital da Suméria e Acádia, de fato já não existia no tempo em que o Apocalipse foi escrito, por volta de 96 d.C. Portanto, sua menção nominal ali de fato é um artifício de linguagem. É a expressão velada de uma revolta. Mais ou menos como fez o Chico Buarque de Holanda com o ...Pai, afasta de mim esse cálice... no período da ditadura militar no Brasil. É a exploração inteligente das amplas possibilidades da linguagem em meio à censura e à castração da liberdade de expressão.

Mas não podemos cometer a infâmia de pensar que o próprio texto da Escritura tenha sido escrito à imagem e semelhança do Protestantismo Brasileiro, isto é, que ele seja anticatólicoo.

Aqui, uma denúncia: esses textos não respaldam aquilo que construímos historicamente, ou seja, a nossa condição de inimizade declarada com a Igreja Católica. Pelo contrário, esses textos respaldam aquilo que nunca quisemos ser historicamente, isto é, inimigos dos ídolos reais que oprimem os povos! Porque o texto é escancaradamente anti-imperial!!!

Sim, o texto é anti-romano. Mas não é o prognóstico do declínio de nenhuma Instituição Religiosa de agora. Antes, é o testemunho de um desejo ardente de que o opressor Império Romano feneça. E esses textos só ganham caracteres prognósticos na medida em que sua força espiritual nos impulsione a uma fé anti-imperial hoje.

Nessa leitura também me dei conta de quão anacrônica é a nossa fé e a nossa postura cristã-protestante no mundo. Sem os instrumentais analíticos das Ciências Sociais dos quais dispomos hoje, os textos bíblicos em destaque falam da opressão imperial por via da economia. Sem análise conjuntural, sem marxismo, sem estatísticas e sem diagnose social, os textos ainda assim entendem que o Império e a estrutura econômica que lhe sustenta, em sua influência oni-abrangente, vitima os miseráveis da terra, e, portanto, merece a sentença divina.

Não posso compreender como em nome dos textos das Escrituras ainda sejamos empurrados para fora do mundo. Dispomos hoje de todo um aparato intelectual de excelência – Sociologia, Economia, Ciências Políticas, Psicologia Social, por exemplo – para decifrarmos os meios pelos quais se dão os novos modos de dominação e as novas violências imperiais. Mas surpreendentemente nada disso nos interessa.

Os versículos do capítulo 18,11-20 dizem respeito ao pranto dos mercadores diante da destruição de Babilônia. E ao final consta a conclamação à exultação evangélica diante da coisa toda (18,20). Algumas perguntas a serem feitas são: por que aqueles cristãos desejavam exultar ante a derrocada de um sistema de relações comerciais? O que havia nesse sistema de relações comerciais que suscitasse o desejo de seu desaparecimento por parte do povo de Deus? Por que aquele sistema de relações comerciais fazia parte do discurso evangélico daqueles cristãos? Se o que importava era a salvação pessoal dos eleitos, o discurso de negação de um sistema de relações comerciais não compareceria com uma digressão esquisita? O mundo das relações comerciais não faz parte daquele vil destino à condição laboral que nos foi imputado após a transgressão do Éden?

Só posso pensar que as intuições do autor (ou “dos autores”) dos textos em questão tenham sido germinadas em profunda comunhão com o Espírito de Deus. Sim, porque já esse autor saca com maestria e perspicácia que o mundo do trabalho e das relações comerciais, por sua amplitude oni-abrangente, tem maior poder para oprimir que qualquer outro artifício humano. A riqueza econômica humana, toda ela, é produto de nossa atividade laboral. E é justamente por aí que passam as formas mais recorrentes de pecado que o homem inventou. Porque a guerra, em toda sua monstruosidade, é sempre uma calamidade transitória. Ademais, sua crueldade exige lapsos de tempo bem mais exíguos. Mata-se velozmente. Porque ali o tempo é um fator decisivo.

Com o mundo do trabalho a coisa é diferente. Sua crueldade por vezes exige que as vítimas míngüem e vertam até a última gota de sangue ou de suor. A ele pertence uma dialética tão em voga em nossos dias: a da exclusão/inclusão. E também nós já estamos nessa corrida desenfreada para garantir nossa inclusão nesse arranjo sistemático. Estamos nas universidades, nos cursos técnicos, nas pós-graduações. E nem nos damos conta de que esse processo é dialético, ou seja, que a minha inclusão não existe sem o seu revés: a exclusão de outrem. As dessimetrias classistas também são filhas do mundo do trabalho e das relações de comércio. Porque nunca houve produção de riqueza seguida da equitativa distribuição das mesmas entre os humanos. E aqui também o processo é dialético: toda produção de riquezas implica na produção de dominação. Toda concentração de riquezas num lado implica na exploração do outro.

Engraçado que Lutero, com toda sua ambigüidade, ainda ultrapasse amplamente a maioria de nós. Não podia suportar a usura dos comerciantes cristãos de seu tempo. Via no mundo do trabalho e das relações de comércio de seus dias uma terrível profanação, assim como os primeiros cristãos viram no Império e na Babilônia essa mesma profanação e a relataram no Apocalipse. Lutero escreveu de forma virulenta contra aqueles que haviam tornado a necessidade do outro uma fonte de lucro.

Portanto, não tenho dúvidas de que se trata mesmo, no caso do Apocalipse, de um texto inspirado. E pelo que me lembro, entrou bastante tardiamente no Canon oficial das Escrituras. Foi o último na composição do Novo Testamento. Mas entrou a tempo de nos fazer perceber que não existe pertinência evangélica sem o paradoxal movimento de negação e de amor ao mundo. Amo o mundo na medida em que penetro em suas entranhas para compreender-lhe a partir de si mesmo. Nego-o na medida em que ao invadir suas entranhas, me deparo com criações e artificialidades anti-evangélicas, desumanizantes e pecadoras. O reconstruo em amor, a partir do Evangelho, que é paz, alegria e justiça no Espírito Santo!

O autor de Apocalipse sabia disso tudo antes de mim. Se convidou a todos a que jubilassem a queda de Babilônia, é porque estava embevecido desse paradoxo de negação do mundo e de amor ao mundo – negação da opressão que se dá por meio do mundo do trabalho e das relações de comércio – amor pelos seres humanos espoliados por isso.

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