segunda-feira, 26 de julho de 2010

A DÁDIVA DO PRESENTE: AOS 33




Ontem (25/07) eu ouvi o antropólogo brasileiro Roberto DaMatta, em entrevista à Marília Gabriela, dizer que há quatro anos, quando da morte de seu filho mais velho, encontrou nos livros o alento que lhe ajudou a mitigar a dor da perda. Mais do que o alento psicológico, DaMatta dizia ter experimentado com os livros um sentimento de esperança, e certa convicção de que a morte não teria a última palavra sobre a vida. Teria DaMatta lido a Bíblia? Não sei. Ele mesmo não o disse.

Hoje também eu perco um pedaço da vida. Rubem Alves tem razão quando diz que 76 são os anos que ele não tem mais. Quando nos perguntam nossa idade tendemos a dizer: “tenho 20 anos”, ou “tenho 33 anos”, ou “tenho 60 anos”. Nos equivocamos! Nasci em 26 de julho de 1977. Portanto, 33 são os anos que já não tenho, posto que se foram. Quantos ainda tenho? Não sei! Mas 33 são exatamente aqueles que me escaparam por entre os dedos hoje!

Eu quis fazer como Roberto DaMatta. Fui mitigar minha perda nos livros. E reencontrei um santo e um herege que me ajudaram.

Santo Agostinho é autor de uma belíssima meditação sobre o tempo no seu Confissões [Livro XI, O Homem e o Tempo]. Muito antes de qualquer Psicologia ou de qualquer Teoria da Relatividade, o bispo de Hipona nos persuadiria acerca da relatividade do tempo e da natureza subjetiva de sua produção. O que temos, conforme Agostinho, é um “eterno hoje”. Porque nem o passado nem o futuro existem, exceto como memória e expectação, respectivamente. O que nos sobra é a eternidade de cada momento. Não é curioso que exatamente essas coisas que não existem mais, sejam justamente aquelas que turvam em nossos olhos a dádiva do presente? Não é curioso que o passado seja o demônio de muita gente? Não é curioso que a expectação do futuro torne sem graça a dádiva do presente para muita gente? “Esquecerei as coisas passadas. Preocupar-me-ei sem distração alguma, não com as coisas futuras e transitórias, mas com aquelas que existem no presente”, concluía Agostinho.

A expressão “dádiva do presente” é de Rubem Alves em Towards a Theology of Liberation [no Brasil, Da Esperança]. É dita no contexto de uma advertência a todos os revolucionários, sejam teólogos, políticos, acadêmicos, etc. Porque nos parece que onde quer que um espírito revolucionário aporte, o presente precisa ser sacrificado em nome da construção do futuro. Parece-nos que no caminho para “outro mundo possível”, o presente precisa ser domesticado, negado, sacrificado em prol da luta e da militância. Perde-se assim o sentido erótico da vida, que só pode ser fruído como um Agora dadivoso. Para Alves, ao fruir a dádiva do presente “a pessoa está livre para as coisas simples da vida, coisas que não produzem manchetes nem mudam o mundo. Livre para conversar, para beber e comer, para fazer nada, em pura contemplação, para desfrutar o jogo do sexo, para brincar”. Assim, sem perder a dimensão da utopia que move nosso caminhar, a dádiva do presente, cheia de paixão e de erotismo, nos torna pessoas mais leves e menos ressentidas.

Foi aos 33, segundo os evangelhos, que Jesus de Nazaré morreu na cruz romana. Mas como pôde, consumiu fartamente do eterno hoje. Também não deixou esvair-se a dádiva do presente. Plantou as sementes de um mundo diferente a que nominava Reino de Deus, que é uma imagem arquetípica da sociedade marcada pela humanização plena de todo mundo. Mas enquanto o Reino não chegava, foi às festas do povo e não permitiu que a alegria acabasse junto com o vinho que findou. Foi chamado de comilão e de beberrão e não retrucou. Embrenhou-se entre pobres e prostitutas, que, ao que nos consta, dificilmente conversam sobre política.

Em Tempus Fugit Rubem Alves descreve o medo que lhe dava o relógio de parede na casa de seu avô. “Eu tinha medo. Hoje, acho que sei por quê: ele batia a Morte”, explica. De modo semelhante diz um verso do Pink Floyd: The sun is the same in a relative way, but you’re older / Shorter of breath and one day closer to death”.

Mais próximo da morte, sim. Mas sem medo algum. Trabalhando por outro futuro possível, sim. Mas fruindo o eterno hoje e a dádiva do presente. Aos trinta e três!

quinta-feira, 15 de julho de 2010

RESENHA DE “A PROFECIA NA IGREJA” (JOSÉ COMBLIN)


RESENHA DE “A PROFECIA NA IGREJA” (JOSÉ COMBLIN)


“Não deixe cair a profecia”. Foram essas as últimas palavras de Dom Helder Câmara ditas a Marcelo Barros, num encontro derradeiro entre os dois antes da partida daquele. E é justamente com um relato deste encontro que José Comblin nos introduz ao seu livro A profecia na Igreja. Talvez essa seja a melhor maneira de introduzir uma reflexão sobre a profecia na Igreja. Dom Helder certamente é a figura que melhor encarnou o papel do profeta cristão em nosso tempo. É muito justo que em sua lápide estejam grafadas as palavras: “O profeta do século XX”.

Também é verdade que o nome de José Comblin deve ser associado ao ministério profético de nosso cristianismo latino americano. Seu vigor na produção teológica, assim como sua insistência na mensagem de cuidado dos pobres, nos assusta e nos constrange. A profecia na Igreja, portanto, não deve ser recebido como nenhuma novidade. Antes, deve ser celebrado como expressão de uma visão inquebrantável, e como testemunho de uma fidelidade pouco comum entre as gerações mais recentes de teólogos e teólogas.

Seu livro chega num momento em que necessitamos exercitar a esperança. Ele nos serve perfeitamente nesse propósito. O cristianismo latino americano, no que diz respeito à sua vocação profética, parece viver um tempo de desgaste e de exaustão. Em meio a um momento de aparente hegemonia das forças reacionárias no âmbito católico, os movimentos teológicos e eclesiais ligados à Teologia da Libertação parecem atravessar uma crise e um momento de retomada de seu vigor. No âmbito evangélico, as teologias triunfalistas e o apelo subjetivista da experiência religiosa ganham espaço e se afirmam de forma crescente. Também nesse ambiente os grupos e movimentos identificados com uma proposta progressista e libertadora enfrentam grande dificuldade de articulação e afirmação. Onde estará a profecia no atual cristianismo latino americano? Onde identificá-la? Quais são seus atuais desafios? Quem são os atuais alvos de sua denúncia?

A profecia na Igreja deseja nos situar em face desse contexto, e deseja responder a estes questionamentos. Comblin parte de uma intuição fundamental: o espírito profético sempre esteve presente na vida da Igreja. Certamente, uma das grandes contribuições da presente obra consiste em contrapor-se ao olhar viciado de nossas análises, que a partir de sua ânsia pela crítica, tendem a não dar visibilidade aos focos de resistência e às articulações proféticas sempre presentes em nosso cristianismo.

Seguindo sua veia de biblicista consagrado, o Autor dedica os três primeiros capítulos de seu livro à descrição e análise do profetismo bíblico, desde os profetas do Antigo Testamento (cap. 1), até a uma avaliação da dimensão profética do ministério de Jesus de Nazaré (cap. 2), culminando com a descrição do profetismo cristão no primeiro século, onde a ênfase recai sobre o livro de Atos dos Apóstolos (cap. 3). Em seguida, Comblin nos oferece um capítulo dedicado ao estudo da presença da profecia entre os teólogos patrísticos (cap. 4), e outro dedicado à presença da profecia na Idade Média (cap. 5). Ao período compreendido como o início da Modernidade, o autor dedicará outro capítulo, caracterizado pelo acento conferido à importância do espírito profético durante a conquista das Américas (cap. 6). Dois capítulos desta revisão histórica ocupam-se do mundo contemporâneo. No primeiro deles, Comblin destaca o lugar da profecia na construção da sociedade industrial (cap. 7), e no segundo, procede com a descrição da atuação concreta de alguns padres iminentes da América Latina no século XX (cap. 8).

Os três últimos capítulos são mais construtivos que narrativos. No primeiro deles, o interesse do Autor se volta para refletir sobre os elementos constantes no espírito profético, identificáveis onde quer que a profecia tenha se manifestado no tempo e no espaço (cap. 9). A ênfase aí, obviamente, recai sobre a conversão ao pobre. O penúltimo capítulo dedica-se a uma descrição do papel atual da profecia. Nesse tocante, Comblin nos oferece uma breve avaliação do fenômeno da globalização, assim como as possibilidades de enfrentamento dos seus efeitos nocivos sobre os pobres (cap. 10). Por fim, o último capítulo é dedicado a uma avaliação de quais seriam os futuros desafios que o presente contexto coloca àqueles que se identificam com os anseios de libertação dos pobres e dos demais oprimidos de nossas sociedades (cap. 11).

O critério do Autor para discernir o espírito profético presente em um grupo ou em um indivíduo é muito simples. O profeta é aquele(a) que, a partir da escuta da Palavra de Deus e da vivência do Evangelho de Jesus Cristo, assume a causa do “povo dos pobres”, como se refere o Autor constantemente. Ele(a) é uma pessoa marcada pela liberdade. Seu aparecimento é imprevisível, sendo fruto de uma ação do Espírito Santo em favor dos sem-vez e sem-voz. A palavra do profeta é pontual. Dirige-se sempre a uma situação concreta, historicamente situada, de tal maneira que ultrapassado o desarranjo a que se dirige, esta palavra já não faz sentido. Ao mesmo tempo em que enfrenta as forças opressoras da sociedade, o profeta pede a conversão de toda a Igreja à tarefa de cuidado dos excluídos. Por isso, a profecia não se dá a despeito da Igreja, mas se dá como um carisma em seu interior.

O Autor, já próximo dos seus noventa anos de idade, encerra suas reflexões oferecendo-nos um testemunho de profunda esperança, pois deseja apostar nos jovens como os portadores da profecia atual. “Os profetas estão no meio de nós. Provavelmente são jovens, pois ainda não apareceram publicamente” (p. 286), ele nos diz. E nas últimas linhas de seu livro, conclui: “Eu estou no final da vida. Tive o privilégio de conhecer de perto e de participar da vida de grandes profetas e também de muitos pequenos profetas, homens e mulheres, que não entraram oficialmente na história. Desejo que muitos jovens possam fazer a mesma experiência” (idem).

Os olhos de José Comblin, capazes de notar a presença sempiterna do espírito profético na vida da Igreja, e seu coração, ainda capaz de apostar nos jovens de nossa geração, dão testemunho de que o Espírito Santo de fato continua a soprar entre nós. Mas os profetas, é verdade, são pouco ouvidos. Oxalá A profecia na Igreja ajude a dar audibilidade à voz do Espírito, afinal, “quem tem ouvidos, ouça o que Espírito diz às Igrejas”. E os profetas serão sempre seus portavozes prediletos. José Comblin, sem dúvida, um deles na América Latina neste tempo.

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COMBLIN, José (2008). A profecia na Igreja. São Paulo: Paulus, 287p.

segunda-feira, 5 de julho de 2010

FÉ PARA “SER MAIS”


Sobre a mulher sem nome de

Lucas 8,43-48

Ninguém gosta de ficar doente, não é? Dia desses estive com dengue. A gente fica indisposto, o apetite fica embotado, além de termos que nos afastar momentaneamente das coisas que gostamos e precisamos fazer: trabalho, laser, escola, etc. Mas também é verdade que enfrentar momentos de enfermidade no aconchego do ambiente familiar e à roda de amigos torna tudo menos pesado. Enfrentar esses momentos rodeados de carinho torna o enfrentamento da doença mais leve.

Mas a mulher de nosso texto em foco, por conta do contexto social e cultural de seus dias, não pôde contar com nenhum desses atenuadores. No entanto, mesmo vivendo num contexto diferente do nosso, o texto nos dá pistas para pensar em como aquela mulher se parece com tantas mulheres que ainda hoje lutam por saúde e dignidade.

Padecendo de uma hemorragia durante doze anos, ela havia gasto todos os seus recursos na procura por saúde. É pouco provável que “todos os recursos” seja sinônimo de muitos bens. Tudo indica mesmo que ela era, junto com a maior parte de seus contemporâneos, alguém pobre e de recursos escassos. O texto sequer menciona seu nome, ao contrário das mulheres que patrocinavam o ministério de Jesus com seus bens, mencionadas nominalmente em Lucas 8,1-3. Esse apoio contínuo indica que estas certamente pertenciam a classes mais favorecidas economicamente. Quanto à mulher hemorrágica, parece tratar-se de uma mulher simples do povo, que viu na fé um recurso derradeiro para sua situação.

Se o simples fato de ser mulher em seus dias já não bastasse como um peso e uma limitação na vida social, sua condição de mulher enferma piorava tudo. As leis religiosas vigentes ajudavam a aumentar o seu sofrimento. Afinal, não bastasse o flagelo no corpo, as leis de purificação e de isolamento social dirigidas às mulheres durante o fluxo menstrual confinavam a estas num espécie de apartheid religioso. Portanto, certamente nossa personagem vinha padecendo também por doze anos o estigma do isolamento social. Doze anos sem ir à feira. Sem desfrutar a comunhão nos ambientes religiosos. Sem as conversas de fim de tarde com as vizinhas. Sem o abraço dos familiares. Doze anos sem todos aquelas bênçãos que advém do convívio social, e nos ajudam na construção de nossa felicidade.

A observação do cotidiano nos dá a impressão de que realmente as mulheres cuidam mais da saúde que os homens. Atualmente temos no Brasil até políticas públicas voltadas para o fortalecimento da saúde masculina. Numa sociedade organizada para segregar as mulheres da plenitude das bênçãos da sociabilidade, parece que estas encontram no corpo um lugar de sua afirmação como seres humanos. Cuidar da saúde não somente porque ficar doente é ruim. Cuidar da saúde porque o corpo é um lugar de afirmação e celebração da vida! Como nossas mulheres de hoje, a mulher de nosso texto parece saber disso muito bem. Ter saúde numa sociedade organizada para os homens era o mínimo que ela poderia fazer como meio de afirmação da vida.

“Se eu apenas tocar suas vestes...”. Essa pequena intuição nos indica que não foram apenas seus recursos materiais que haviam se esgotado. Parece-nos que também seus recursos religiosos haviam acabado. Tocar as vestes de um líder religioso, como atitude terapêutica, não fazia parte de nenhum código sagrado. Nem mesmo constava na Lei de Moisés! Aquilo havia sido inventado pela esperança! Se os recursos materiais e religiosos haviam se esgotado, a esperança ainda não.

Nosso povo é assim. Sua fé e sua esperança são sempre maiores que os recursos oficiais para o enfrentamento das crises. A fé e a esperança do povo são sempre arredias, transgressoras, criativas, sobretudo nas situações de encruzilhada. De um ponto de vista da religião organizada, aquela pobre coitada ostentava a vil heresia de que tocar nas vestes de um camponês pudesse fazer aquilo que sacerdotes e médicos não puderam fazer por doze anos.

E o texto nos deixa com a impressão de que médicos e sacerdotes precisam ainda hoje desenvolver a capacidade de se voltar para o ser humano em sua singularidade, em sua pessoalidade, com sua história de vida peculiar. Talvez o problema de nossa mulher em foco tenha sido somente esse: não ter encontrado naqueles doze anos alguém com a sensibilidade de, em meio à multidão, dizer-lhe: “alguém me tocou!”. Isso porque existem momentos em que somos “Povo de Deus”, “Nação Brasileira”, “Classe Social”, etc. Mas há situações na vida em que somos “José dos Santos”, “Maria da Silva”, “Paulo Nascimento”. Como dizia Ortega y Gasset, há momentos em que somos apenas “nós e nossas circunstâncias”.

Médicos e sacerdotes não estão sempre tentados a negligenciar histórias de seres humanos singulares em função das multidões? Mais do que a benção da cura física, Jesus demonstra a benção de ser sensível ao ser humano em sua dor que é intransferível.

“Tem bom ânimo, pois tua fé te salvou!” Tua fé na vida te salvou! Tua fé e tua teimosia em ser feliz te salvaram! Tua força criativa e tua obstinação te salvaram! Volta a gozar a saúde em teu corpo! Volta a fazer as coisas que gostas! Goza a benção do convívio com os outros! Volta a freqüentar os espaços que a religião te arrancou! Goza a benção da vida, do corpo, da dança, do abraço, dos encontros, dos olhares sem condenação, da vida em abundância! Tua fé te salvou de toda condenação: daquelas impostas pelos limites estabelecidos pela doença, e daquelas impostas pelos limites de uma sociedade machista e desumana!

Nós, teólogos e teólogas, temos nossas explicações e definições para a fé. Quase sempre nosso jeito sofisticado de pensar define a fé como concordância com as definições dogmáticas, sistemáticas, doutrinárias e confessionais. No máximo, fé é a concordância cega com o conteúdo literal das escrituras e sua interpretação oficial. O povo quase não reclama disso. O povo diz muito amém, e consome, às vezes com entusiasmo, o capital simbólico que as oficialidades produzem. Mas por vezes a vida reclama por um pouco mais. Aí o povo se torna protagonista. Homens e mulheres, em situações de encruzilhada, vêem-se com a oportunidade de serem criativos. A vida lhes exige que assim o seja. Ser criativo, nessas circunstâncias, é explorar o potencial de vida que resiste como chama de vela dentro de nós.

A gente chama isso de fé. Fé é uma chama de vela que quer ser fogueira. É a potência humana que incendeia o corpo e a alma. Que resiste contra as imposições e limitações da vida, seja em sua dimensão natural, seja em sua dimensão cultural. É por isso que a fé é salvífica! Porque somente por meio dela os seres humanos podem escapar da perdição de “serem menos”, quando foram criados por Deus para “serem mais”!