segunda-feira, 27 de julho de 2009

METAFÍSICA DA VIDA COTIDIANA


Metafísica da vida cotidiana
(sobre a estética do insaciável)

Rodrigo de Barros

À força de almejar o Belo,
Não encontrei senão torturas: Imagens retorcidas das angústias do mundo. Focos de incêndio criminoso nas fronteiras do amor. E uma sombra fugidia do inefável, Que é antes castigo do que bênção.

À força de almejar o Belo,
Não encontrei senão tonturas. Dei passos de bêbado à beira d’um abismo Onde o inominável cantava como sereia, E com sua face de sátiro, Ria de minhas pretensões.

À força de buscar o Belo,
Encontrei apenas o vazio dos anseios; Projetos caducos de uma perfeição longínqua; Miragens sedentas e impérios claudicantes.

À força de buscar o Belo,
Lutei contra o monstro da descrença E contra o delírio da fé. Bradei na noite escura como quem descobrisse luz, Mas era tão somente minha esperança doentia Desenhando estrelas onde havia apenas breu e solidão. ... me vi monstruoso, e delirante.

Calei em alta voz o mais profundo silêncio.
Nutri silêncio profundo em meio à multidão. Rasguei num único ímpeto as vestes rotas de Deus. Enamorei-me da loucura. Fiquei só.

Cheguei a descrer que a beleza existisse. Entreguei-me ao torpor dos ideais. Abracei vanguardas em nome da modernidade E mais tarde... me vi qual vitrine de antiquário: Exposto ao olhar ávido das novidades, Sedentas d’alguma ficção de origem.

À força de muito querer o Belo,
Vi meus sonhos incharem qual fígado de alcoólatra. Vi meu corpo definhar, Anoréxico de mim mesmo, Viciado na linha do horizonte.

À força de querer o Belo
Quase perdi a beleza da simplicidade: O aperto de mão dado com gosto; Um gesto de amparo sem pretensões; Um tropeço que se revela um encontro; Um descaminho que abre uma porta. (Ou mesmo a porta que se fecha na cara E a cara que ainda assim desafia a porta)

À força de almejar o Belo,
Quase fui soterrado por técnicas e procedimentos; Quase afoguei em teorias. Quase morri para a beleza que escapa às fotografias, Que não pertence aos estetas ou moralistas, Mas se abre qual rosa impertinente n’um campo de urtigas, E provoca o abraço onde se esperava um murro.

Que espécie de insanidade nos fez crer
Que a engenharia de um foguete Seria mais complexa do que um gesto de afeto? Ou que a origem do Universo seria algo mais esplêndido Do que a espontaneidade d’um sorriso de criança?

A Beleza é fugidia. Arredia. Rebelde.
Não se entrega simplesmente a quem a busca, Embora possa ser colhida, Embora esteja ao alcance da mão.

Rodrigo de Barros é graduado e mestre em Psicologia, professor da Universidade Federal de Alagoas, e atualmente faz doutorado em Paris.

domingo, 19 de julho de 2009

APERITIVO DE “O DISCIPULADO E O INDIVÍDUO” (D. BONHOEFFER)




Segue outro aperitivo de Discipulado, do Dietrich Bonhoeffer (1906-1945). Trata-se da seção O discipulado e o indivíduo (p. 49-55).

Aqui discernimos os seguintes tópicos:

a) O acesso ao discipulado como um ato solitário, onde o indivíduo enxerga apenas aquele que lhe fez o chamado:

“O chamado de Jesus ao discipulado faz do discípulo um ser solitário. Quer queira quer não, tem que se decidir, tem que tomar sua decisão sozinho. Não é solitário espontaneamente; Cristo é que faz do homem chamado um ser solitário. Cada qual é chamado individualmente, e tem que ser discípulo sozinho. (...) Cristo quer que o homem fique só, que nada mais enxergue senão aquele que o chamou (p. 49)”.

b) Cristo é apresentado como Mediador não somente entre Deus e o homem, mas entre o homem e o homem, e entre o homem e toda a realidade:

“Com sua encarnação, Cristo colocou-se entre mim e as relações com o mundo. Já não posso recuar; ele está de permeio. Privou àquele que foi chamado da relação imediata com tais circunstâncias. Ele quer ser o mediador e tudo há que se processar através dele. Não se coloca apenas entre mim e Deus, mas está igualmente entre mim e o mundo, entre mim e os outros homens e coisas. Ele é o Mediador, e isso não somente entre Deus e os homens, mas também entre homem e homem, e entre o homem e a realidade” (p. 50).

c) No discipulado dá-se o fim de todas as relações imediatas, principalmente em relação às pessoas, desde as mais próximas até as menos próximas:

“Agora, porém, sabe que já não podes ter relações imediatas nem nos laços mais estreitos das relações humanas, nos laços de sangue com pai e mãe, com os filhos, irmãos e irmãs, no amor conjugal, nas responsabilidades históricas. Desde Jesus, já não existem para os seus discípulos quaisquer relações imediatas naturais, históricas ou empíricas. Entre pai e filho, marido e mulher, entre o indivíduo e o povo, ergue-se Cristo, o Mediador, quer consigam reconhecê-lo quer não. (...) A relação imediata é uma ilusão. (...) Cada relação imediata, consciente ou inconsciente, é ódio a Cristo, ao Mediador, até mesmo e em especial quando quer ser considerada cristã” (p. 51).

d) Toda relação imediata, toda ação de graças e todo conhecimento sobre os dons de Deus sem a mediação de Jesus Cristo são ilusórios:

“A mais amável tentativa de compreensão, a psicologia mais sofisticada, a franqueza mais natural, não conduzem ao outro; não há qualquer relação imediatas entre as almas. Cristo é Mediador, e somente através dele é que há caminho para o próximo. (...) Não há qualquer conhecimento verdadeiro dos dons de Deus sem o conhecimento do Mediador, por amor do qual tão-somente eles nos são dados. Não há nenhuma ação de graças genuína por povo, família, história e natureza sem profundo arrependimento que dá a Cristo exclusivamente a honra suprema” (p. 52).

e) O exemplo de como tudo isso se deu em Abraão, no episódio do quase-sacrifício de seu filho Isaque:

“Abraão volta da montanha na companhia de Isaque, tal como subira; tudo, porém, estava mudado. Cristo se colocara entre pai e filho. Abraão tinha abandonado tudo e seguira a Cristo. E, a meio do discipulado, se lhe permite tornar a viver no mundo em que antes vivera. Exteriormente, tudo ficara como dantes. Porém, as coisas antigas já passaram e tudo se fez novo. Tudo tivera que passar através de Cristo (p. 53)”.

f) Todos entram no discipulado sozinhos, mas ninguém permanece nele solitário:

“O mesmo Mediador, porém, que nos fez indivíduos solitários, constitui também o fundamento de uma comunhão totalmente nova. Ele está entre mim e os outros. Separa, mas une também. É certo que, assim, fica cortado todo e qualquer caminho imediato de mim para qualquer outro; o discípulo, porém, aprende o novo e verdadeiro acesso ao semelhante, que, a partir de agora, passará através do Mediador. (...) Todos entram sozinhos no discipulado, mas ninguém fica sozinho nele” (p. 54).



terça-feira, 14 de julho de 2009

UM APERITIVO DE “A GRAÇA PRECIOSA” (DIETRICH BONHOEFFER)


É comum que toda boa refeição, quer na casa de amigos quer num restaurante, seja precedida por um bom “tira-gosto”. Melhor ainda quando esse “tira-gosto” é parte da própria refeição da qual nos serviremos, pois funciona como uma espécie de prévia. Provamos aquilo como aperitivo e somos fisgados pela coisa. Não nos contentamos até que comamos o prato inteiro!

O pessoal da literatura plagiou esse processo do mundo culinário. É pra isso que servem as “orelhas” dos livros. Na impossibilidade de ler cem ou duzentas páginas num fôlego, eles servem ali, nas “orelhas”, um aperitivo do conteúdo da obra. Provamos. Aquilo é suficiente para nos fisgar ou para nos fazer refugar. Os/as mais ávidos/as, insatisfeitos/as com o “tira-gosto” servido nas orelhas dos livros, vão ao índice, ao glossário de temas, à bibliografia, além daqueles/as ainda mais ávidos/as que precisam ler o primeiro capítulo como forma de aperitivo.

Nunca fui garçom, mas foi o que eu resolvi fazer com uma porção de Discipulado, do Dietrich Bonhoeffer. Resolvi servi-la a vocês com um “tira-gosto” desse “prato”. Prove-o. Deguste-o. Se lhe agradar, coma o prato todo depois.

Bom apetite!

BONHOEFFER, Dietrich. A graça preciosa. In: Discipulado. 7ª edição, tradução de Ilson Kayser, São Leopoldo: Sinodal, 2002, p. 9-19.

Discernimos nessa seção do livro os seguintes temas:

a) Distinções entre os conceitos de “graça barata” e de “graça preciosa”:

A graça barata é inimiga mortal de nossa igreja. Nossa luta trava-se hoje em torno da graça preciosa (p. 9). A graça barata é a pregação do perdão sem arrependimento, é o batismo sem a disciplina de uma congregação, é a Ceia do Senhor sem confissão de pecados, é a absolvição sem a confissão pessoal. A graça barata é a graça sem discipulado, a graça sem a cruz, a graça sem Jesus Cristo vivo, encarnado. A graça preciosa é o tesouro oculto no campo, por amor do qual o homem sai e vende com alegria tudo quanto tem (...); é o chamado de Jesus Cristo, ao ouvir do qual o discípulo larga as suas redes e o segue (idem).

b) Exposição de como a graça preciosa se manifestou nas vidas de Pedro e Martim Lutero:

A graça é preciosa por obrigar o indivíduo a sujeitar-se ao jugo do discipulado de Jesus Cristo. As palavras de Jesus: ‘O meu jugo é suave e o meu fardo é leve’ são expressões da graça. Por duas vezes ouviu Pedro o chamado: ‘Segue-me!’. Foi esta a primeira e a última palavra de Jesus ao seu discípulo (Mc 1,17; Jo 21,22). (...) A graça e o discipulado permanecem indissoluvelmente ligados na vida de Pedro. Ele havia recebido graça preciosa (p. 11). (...) Quando, por intermédio do seu servo Martim Lutero, na Reforma, Deus avivou uma vez mais o Evangelho da graça pura e preciosa, fez com que Lutero passasse primeiro pelo convento. [Mas Deus] lhe mostrou, através das Escrituras, que o discipulado de Jesus não era a meritória realização de alguns, mas um mandamento divino a todos os cristãos (p. 12). (...) Lutero recebera a graça preciosa. Graça, por ser água sobre a terra sedenta, consolo na angústia, libertação no caminho auto-escolhido, perdão de todos os pecados. Graça preciosa por não isentar ninguém da obra, antes chamando com insistência ainda maior ao discipulado (p. 13).

c) A exposição de como o movimento monástico representou um restolho da graça preciosa na cristandade medieval, seguida da corrupção daquele movimento em função da pretensão de “exclusivismo” enquanto ambiente de manifestação desta graça:

Com a expansão do cristianismo e a secularização crescente da Igreja, a consciência dessa graça preciosa perdeu-se gradualmente. (...) No entanto, a Igreja Romana conservava um último resto dessa consciência. Foi de significado decisivo o fato de o monasticismo se não ter separado da Igreja, e de esta ter sido suficientemente sábia para o tolerar. Ali, na periferia da Igreja, estava o lugar no qual se mantinha viva a consciência da preciosidade da graça, e de que esta encerra em si o discipulado (p. 11). [Todavia] o monasticismo distanciou-se essencialmente do cristianismo por se deixar transformar ele próprio na realização excepcional, voluntária, de uns poucos, reivindicando, assim, mérito especial para si (p. 12).

d) Relações entre graça preciosa e discipulado, e a explicação do sentido correto da sentença de Lutero “Pecca fortiter, sed fortius fide es gaude in Christo” (“Peca ousadamente, mas crê com ousadia ainda maior e alegra-te em Cristo”):

Somente quem se encontra no discipulado de Jesus, renunciando a tudo quanto possui, pode dizer que é justificado pela graça. Esse vê o próprio discipulado como sendo graça, e a graça como sendo o chamado. Engana-se, porém, a si próprio quem se julga por ela dispensado do discipulado (p. 15). Mas como entender a frase de Lutero “peca ousadamente, mas crê com ousadia ainda maior e alegra-te em Cristo”? Estaríamos diante do convite blasfemo de pecar à vontade, confiados na graça? Haverá afronta mais diabólica para a graça do que pecar confiado nessa mesma graça que Deus nos concede? (...) A verdadeira compreensão da frase de Lutero é esta: confessa corajosamente o teu pecado; não procures fugir dele, porém, ‘crê com ousadia ainda maior’. És pecador, e, portanto, continua sendo-o. Não queiras ser qualquer outra coisa senão aquilo que és; sim, sê pecador todos os dias e, não obstante, sê corajoso. Mas, a quem se poderá dizer isso senão àquele que, diariamente, renuncia a tudo que lhe serve de empecilho no discipulado de Jesus, e que, no entanto, permanece inconsolável por causa da sua infidelidade e pecados cotidianos? (p. 16)

e) Algumas lamentações acerca dos frutos da graça barata na Igreja Evangélica de seus dias:

Cristianizara-se, luteranizara-se um povo inteiro, porém, às expensas do discipulado, a um preço demasiadamente barato. Triunfara a graça barata. (...) Tornaram-se baratos a mensagem e os sacramentos; batizou-se, confirmou-se, absolveu-se todo um povo sem perguntas nem condições; por humanitarismo, deram-se as coisas santas aos zombadores e incrédulos, despenderam-se rios sem fim de graça, mas o chamado ao discipulado de Cristo ouvia-se com raridade cada vez maior. (...) Quando foi o mundo mais cruelmente e mais desapiedadamente cristianizado do que aqui? Que são os três mil saxões assassinados segundo o corpo por Carlos Magno, comparados com as milhares de almas mortas na atualidade? A graça barata foi muito cruel à Igreja Evangélica (p. 17). (...) A mensagem da graça barata tem arruinado mais crentes do que qualquer outro mandamento de obras (p. 18).

f) Uma convocação à restauração das relações entre graça e discipulado para a vida cristã:

Simplesmente por não queremos negar que já não estamos no verdadeiro discipulado de Cristo, que somos, é certo, membros de uma igreja ortodoxamente crente na doutrina da graça pura, mas não membros de uma igreja do discipulado, há que se fazer a tentativa de compreender de novo a graça e o discipulado em sua verdadeira relação mútua. Não ousamos mais fugir ao problema. Cada vez se torna mais evidente que o problema da Igreja se cifra nisso: como viver hoje uma vida cristã (p. 18).

domingo, 12 de julho de 2009

NADA MAIS PRÁTICO DO QUE UMA BOA TEORIA [2]


Ideologia, cultura canavieira e a luta contra o feitiço da linguagem

Des-ideologizar quer dizer reverter o encanto que a ideologia opera em nosso psiquismo, cujo fim é engendrar em nós uma falsa consciência acerca da realidade. Ludwig Wittgenstein definiu a função da Filosofia como “a luta contra feitiço da linguagem”. É mais ou menos a mesma coisa que queremos dizer com o neologismo des-ideologização.

Antes, é preciso pontuar com algum cuidado a acepção que queremos dar aqui ao termo ideologia. Em seu sentido neutro, ideologia está referida aos pensamentos e filosofias subjacentes a grupos e indivíduos. É stricto senso o conjunto de idéias que caracteriza a identidade de um grupo. Era com esse sentido neutro que Cazuza cantava “ideologia: eu quero uma pra viver...” Cada grupo humano tem sua ideologia, ainda que ela esteja implícita no comportamento dos seus respectivos membros, sem que estes tenham qualquer formulação teórica e consciente da mesma. Ou, de forma consciente, indivíduos podem assumir certas formas de ideologia nas quais buscam alicerçar seu comportamento.

Não é, portanto, essa a ideologia que queremos desconstruir. Posto que seja impossível viver sem ideologia nesse sentido neutro, quer seja confessa e consciente, quer seja assumida implicitamente pelos condicionamentos sócio-histórico-culturais.

Quero tomar o termo ideologia em seu sentido crítico. E não desejo ocultar que essa acepção está relacionada a uma tradição marxista, pois é justamente em Marx e Engels que a ideologia será tomada em sentido crítico pela primeira vez. Em A ideologia alemã Marx identificará a ideologia com as “idéias das classes dominantes”. Mas não advém exatamente daí a sua confrontação. Ela adviria do fato dessas idéias serem produtoras de relações de dominação, engendrando as possibilidades de falseamento da realidade que legitimam a opressão e a subserviência das classes dominadas. Nesse mesmo sentido crítico John Thompson dizia que “estudar a ideologia é estudar as maneiras como o sentido serve para estabelecer e sustentar relações de dominação”.

Também não posso deixar de dizer que Paulo Freire, embora não tenha utilizado com a mesma freqüência o termo ideologia, insistiu muito nesse aspecto de confrontação à falsa consciência engendrada nas maiorias populares pelos poderes hegemônicos das sociedades. Seu método de alfabetização de adultos não deve ser visto como mero letramento e decodificação mecânica de signos linguísticos. Freire sempre insistiu que “a leitura do mundo precede à leitura da palavra”. Assim, a alfabetização libertadora freireana não somente confere os meios de decodificar letras e sílabas, mas também ajuda na leitura de mundo e na libertação da falsa consciência engendrada ideologicamente nas maiorias populares a fim de manter as estruturas de desigualdade social.

São muitos os vetores pelos quais se engendram os conteúdos ideológicos de dominação e de falseamento da realidade. Não compete discursar sobre eles aqui. A mídia, a religião, a política, a escola/universidade, o universo do trabalho, são exemplos poderosos desse processo. Nesse sentido, o livro Ideologia e cultura moderna, de John Thompson, talvez consista num ótimo referencial para quem deseje enfrentar essa discussão.

Também não cabe nesse diminuto artigo uma discussão prolongada sobre todas as formas com as quais os conteúdos ideológicos se dão a conhecer. Compete somente pensar ligeiramente sobre aquele que talvez seja o mais arraigado no senso comum: a naturalização das estratificações sociais. Com ele voltamos ao caso de nossos trabalhadores do setor canavieiro de Alagoas. E é por ele, penso eu, que devemos iniciar nossa tarefa de des-ideologização dessa classe de trabalhadores. Para tanto, a arma fundamental só poderá ser mesmo a palavra.

Em entrevistas grupais com esses trabalhadores (grupos focais), alguns desses elementos ideológicos ficaram bastante evidentes. Numa das questões, eu lhes perguntava sobre a importância social de uma referida usina canavieira para as comunidades do entorno. Algumas respostas deixam transparecer a relação paternalista e “o sentido servindo para estabelecer e sustentar relações de dominação”:

a) Tem, porque emprega as pessoas. São muitos funcionários ajudados ali. Ela ajuda na moradia do povo [...]. O comércio seria afetado na falta dela. Infelizmente em Alagoas não tem outra renda que sustente as pessoas. São as usinas que mais empregam as pessoas;

b) Muito grande. Se ela fechar as portas afeta muitas comunidades que dependem dela. Se ela fechar abala até a capital do estado. A grande renda de Alagoas é a cana de açúcar;

c) Sem a usina muita coisa desapareceria, incluindo a própria localidade [...]. Isso afetaria o comércio local;

d) Sim, pois se ela falir vai afetar desde União dos Palmares até Maceió”;

e) Ela tem uma grande importância. [...] sobrevive dos encargos dessa usina. Se isso acabar eles vão sentir. [...] e o bairro [...] também têm muitas pessoas que tiram seu sustento daqui. Ela gera emprego e renda para essas comunidades”;

f) O comércio dessas comunidades depende muito daqui. A crise da usina afeta o poder de consumo das pessoas”.

(Todos os grifos são meus.)

Nesses depoimentos – que são somente alguns dentre muitos outros – fica explícito o senso de profundo paternalismo e dependência que caracteriza a relação entre esses trabalhadores e os usineiros. A explicação disso é complexíssima. Envolve o entendimento dos processos psicossociais e ideológicos usados intencionalmente para manter essas representações nos trabalhadores. De todo jeito, o que se deve realçar aqui é a falsa noção de dependência absoluta de uma fração da sociedade alagoana junto à aristocracia agrária da cana. Em termos teológicos chamaríamos isso de “idolatria”, que consiste na elevação de entes relativos e contingenciais ao status de intocabilidade, incondicionalidade e eternidade (Paul Tillich).

Essa relação de dependência quase pueril obscurece para aqueles trabalhadores a realidade de que é dessa aristocracia canavieira que procede uma das piores concentrações de renda do mundo! Também obscurece a eles a realidade de que é dessa aristocracia que procede a terrível estratificação social de Alagoas [Lembro a vocês que somente 27 famílias usineiras possuem 70% das terras agricultáveis do estado. Além disso, metade dos alagoanos é composta por analfabetos funcionais, e 66% vive em estado de precariedade e pobreza.]. Esse paternalismo ainda obscurece para aqueles trabalhadores a realidade de uma relação predatória que a monocultura da cana mantém com o meio-ambiente, exacerbada nas queimadas e suas conseqüências nefastas para a fauna, a flora e para a sociedade humana, e na contaminação das fontes termais e bacias hidrográficas da região.

Há, portanto, naqueles discursos, uma forte naturalização das relações entre o setor canavieiro e a sociedade alagoana. E onde imperam tendências naturalizantes, a mobilização para a transformação fica prejudicada. Não se pode transformar o natural. Não se pode modificar o estático. Não é por acaso que se verifica uma triste inoperância sindical entre esses trabalhadores. Somente agora, quando a situação vai se tornando insuportável quanto aos atrasos salariais, é que se podem ver protestos articulados entre esses trabalhadores. A nota triste é que esses protestos ainda não objetivam uma mudança nessas relações. Eles são somente o grito do desespero da fome e da falta de recurso para sustentar suas famílias. Mas pelo menos agora já se ouvem gritos, graças a Deus!

Aqui entra o nosso trabalho teológico-pastoral identificado com os anseios de libertação do povo. Aqui entra a nossa atividade como intelectuais orgânicos, ou como psicólogos sociais comprometidos com os processos de dignificação das classes populares. Aqui é o lugar da tarefa de des-ideologização que tem na palavra seu instrumento privilegiado.

No entanto, como se percebe, esse artigo já vai ficando grande, o que nos impele a dedicar mais um texto para pensar na mesma temática. Dessa vez, esperando uma conclusão. Espero que já seja o próximo!

terça-feira, 7 de julho de 2009

NADA MAIS PRÁTICO DO QUE UMA BOA TEORIA


Para uma relativização da falsa dicotomia “teoria versus prática”

Em toda atividade humana – seja religiosa, acadêmica, política, e etc. –, aqueles e aquelas que se identificam ideologicamente com uma postura progressista e libertadora serão frequentemente confrontados com a questão da praticidade de seus discursos. Em outras palavras, quem tem um discurso libertário a todo tempo nos lábios logo-logo será argüido acerca da praticidade de tais declarações. “Onde estão os teus frutos?”, ouvirá com certeza. E nada mais justo.

Nós não podemos desprezar a possibilidade de um blá-blá-blá estéril em nossos lábios, nem de um intelectualismo vazio ou de uma teorização descolada do mundo concreto. Sim, vez por outra nossa fala contestadora, quando submetida ao crivo de uma crítica séria e sóbria, revela-se como abstração estéril, sem nenhuma correspondência com o real e sem qualquer possibilidade de factibilidade. Floreio puro e simples feito em torre de marfim.

Mas não nos enganemos: o exercício de teorização não é estéril em si mesmo! A teoria não é vazia por si própria! Esforcemos-nos sempre por ultrapassar a falsa dicotomia “teoria versus prática”, porque teorizar também é uma práxis! Essa falsa dicotomia, em seu radicalismo acrítico, se predica a esterilizar toda prática que tem a palavra como instrumento. E a palavra, tal como a pá empunhada pelo trabalhador braçal, é para o teórico o instrumento de intervenção no mundo. Eu e você, por exemplo, somos em certa medida o produto da intervenção que certos educadores fizeram em nossas biografias tendo a palavra como instrumento. Talvez essa seja a razão pela qual o psicólogo alemão Kurt Lewin tenha dito que “nada mais prático do que uma boa teoria”. A sabedoria do Evangelho também já sabia que “o destino da palavra é se fazer carne”.

E eu afirmaria ousadamente, pelo menos em relação à nossa situação aqui em Alagoas, que as intervenções populares e estruturais mais importantes de que necessitamos hoje estão no plano do simbólico – isto é, só podem ser iniciadas com a palavra.

Esqueçamos então todo blá-blá-blá e tentemos entender isso um pouco melhor com um exemplo extraído da prática!

Antes, preciso dizer que não destaco esse extraído da prática à revelia. Me oriento pelo postulado marxista de que as condições concretas da existência têm anterioridade sobre nossa reflexão acerca delas. Nos termos do barbudo, “a infraestrutura (condições materiais, econômicas, sociais) determinam a superestrutura (aspectos abstratos, leis, moral, religião)” em determinada sociedade. E aqui temos uma pista importante para discernir a validade de qualquer teorização: ela precisa necessariamente partir de uma realidade concreta e suas proposições precisam ser factíveis dentro dessa mesma realidade. O que disso passar, é blá-blá-blá!

E o exemplo concreto que eu gostaria de evocar, enfim, é a situação dos trabalhadores do setor canavieiro aqui da região dos Tabuleiros Alagoanos.

Eu acabo de finalizar uma pesquisa de estágio em Psicologia cujo título foi Trabalho e subjetividade: Um estudo de caso entre trabalhadores efetivos do setor sucroalcooleiro alagoano. Meu interesse consistiu em saber como o trabalho nesse setor influencia os processos de subjetivação desses funcionários. Afinal, Wanderley Codo parece ter razão ao afirmar que “as relações de trabalho [também] determinam o comportamento do homem, suas expectativas, seus projetos para o futuro, sua linguagem, seu afeto”, enfim, sua identidade.

É um fato indubitável que o mundo do trabalho represente em nossos dias um dos ambientes que mais favorecem os processos de exploração, humilhação e opressão dos seres humanos. No setor canavieiro de Alagoas isso é crônico.

Primeiro, porque a oligarquia agrária ainda se interpõe à diversificação da atividade agroindustrial e econômica como um todo no estado. Segundo, porque aqui, como em todo canto, a exigência sempre crescente do mercado de trabalho quanto à sofisticação profissional do trabalhador cria um exército de reserva (desempregados) incontável que se entrega com avidez à informalidade para sobreviver. Terceiro, porque a necessidade que esses trabalhadores (os formais) têm quanto ao sustento de suas famílias gera uma exploração que se traduz desde os baixíssimos salários até a negação de direitos trabalhistas fundamentais como recebimentos de horas-extras, férias e outros encargos sociais. Esse último aspecto, tão presente na dinâmica das usinas locais, se radicaliza hoje quando alguns usineiros decidiram pegar carona no discurso da crise econômica mundial e negar aos funcionários o seu sustento cotidiano, com atrasos que já chegam a mais de três meses em alguns casos.

Diante desse quadro, minhas principais inquietações se resumem a três ou quatro:

a) Uma vez que somos seres eminentemente sociais, de que maneira esses fatos todos reverberam nos processos de subjetivação desses homens e mulheres? Como isso tudo incide sobre a identidade desse povo sofrido? Essas questões me faço como pastor e como futuro psicólogo;

b) Como esse quadro triste se relaciona com as “saídas ilegais” às quais a população lança mão para dar conta de sua sobrevivência? Essa pergunta me faço como cidadão ordinário;

c) Por quais meios e sutilezas ideológicas as classes dominantes conseguem manter certa “estabilidade” e conter os ímpetos revolucionários das classes subalternas e trabalhadoras? Essa questão me faço como cidadão ordinário, pastor e futuro psicólogo indignado.

Pensemos um pouco nesta última pergunta para voltarmos ao problema central da relação dialética entre teoria e prática, e encerrarmos esse texto.

A revolução armada e a tomada dos meios de produção por parte das classes desprivilegiadas é um recurso factível hoje em dia? É verdade que os detentores do poder político-econômico em Alagoas jamais declinarão de sua posição reunidos com os trabalhadores comendo uma pizza no bar da esquina. Não! A libertação desses jamais será produto de concessões patronais. Ela deverá ser inevitavelmente uma conquista, produto de luta persistente e de enfrentamentos nem sempre pacíficos.

Mas tudo indica que os custos humanos dessa primeira via – a de uma revolução armada – não valem à pena. Particularmente, como teólogo cristão, considero-os incoerentes com meu entendimento das relações humanas e do enfrentamento dos conflitos que dela advém. “Quem fere com a espada, com a espada será ferido...”

Volta então aqui aquela “batalha no plano simbólico” à qual me referi anteriormente. E ela inicia naquilo que podemos chamar de desideologização da classe trabalhadora, seguida da potencialização das virtudes dessa classe, isto é, de seu empoderamento. Essa é uma batalha que só pode ser feita com a palavra, no plano teórico mesmo. Além disso, é uma batalha que pode arregimentar desde indivíduos, até as diversas instituições sociais como as inseridas na função educativa e também as próprias igrejas com seu poder de persuasão. Trata-se de um caminho muito mais longo e árduo que a luta armada. No entanto, bem mais compatível com nossas inclinações morais.

Mas o que quer dizer desideologização das classes populares? No que consiste a potencialização de suas virtudes, isto é, seu empoderamento? Essas são questões que merecem uma discussão mais específica. Por isso, fico por aqui e volto ao tema posteriormente.