domingo, 12 de julho de 2009

NADA MAIS PRÁTICO DO QUE UMA BOA TEORIA [2]


Ideologia, cultura canavieira e a luta contra o feitiço da linguagem

Des-ideologizar quer dizer reverter o encanto que a ideologia opera em nosso psiquismo, cujo fim é engendrar em nós uma falsa consciência acerca da realidade. Ludwig Wittgenstein definiu a função da Filosofia como “a luta contra feitiço da linguagem”. É mais ou menos a mesma coisa que queremos dizer com o neologismo des-ideologização.

Antes, é preciso pontuar com algum cuidado a acepção que queremos dar aqui ao termo ideologia. Em seu sentido neutro, ideologia está referida aos pensamentos e filosofias subjacentes a grupos e indivíduos. É stricto senso o conjunto de idéias que caracteriza a identidade de um grupo. Era com esse sentido neutro que Cazuza cantava “ideologia: eu quero uma pra viver...” Cada grupo humano tem sua ideologia, ainda que ela esteja implícita no comportamento dos seus respectivos membros, sem que estes tenham qualquer formulação teórica e consciente da mesma. Ou, de forma consciente, indivíduos podem assumir certas formas de ideologia nas quais buscam alicerçar seu comportamento.

Não é, portanto, essa a ideologia que queremos desconstruir. Posto que seja impossível viver sem ideologia nesse sentido neutro, quer seja confessa e consciente, quer seja assumida implicitamente pelos condicionamentos sócio-histórico-culturais.

Quero tomar o termo ideologia em seu sentido crítico. E não desejo ocultar que essa acepção está relacionada a uma tradição marxista, pois é justamente em Marx e Engels que a ideologia será tomada em sentido crítico pela primeira vez. Em A ideologia alemã Marx identificará a ideologia com as “idéias das classes dominantes”. Mas não advém exatamente daí a sua confrontação. Ela adviria do fato dessas idéias serem produtoras de relações de dominação, engendrando as possibilidades de falseamento da realidade que legitimam a opressão e a subserviência das classes dominadas. Nesse mesmo sentido crítico John Thompson dizia que “estudar a ideologia é estudar as maneiras como o sentido serve para estabelecer e sustentar relações de dominação”.

Também não posso deixar de dizer que Paulo Freire, embora não tenha utilizado com a mesma freqüência o termo ideologia, insistiu muito nesse aspecto de confrontação à falsa consciência engendrada nas maiorias populares pelos poderes hegemônicos das sociedades. Seu método de alfabetização de adultos não deve ser visto como mero letramento e decodificação mecânica de signos linguísticos. Freire sempre insistiu que “a leitura do mundo precede à leitura da palavra”. Assim, a alfabetização libertadora freireana não somente confere os meios de decodificar letras e sílabas, mas também ajuda na leitura de mundo e na libertação da falsa consciência engendrada ideologicamente nas maiorias populares a fim de manter as estruturas de desigualdade social.

São muitos os vetores pelos quais se engendram os conteúdos ideológicos de dominação e de falseamento da realidade. Não compete discursar sobre eles aqui. A mídia, a religião, a política, a escola/universidade, o universo do trabalho, são exemplos poderosos desse processo. Nesse sentido, o livro Ideologia e cultura moderna, de John Thompson, talvez consista num ótimo referencial para quem deseje enfrentar essa discussão.

Também não cabe nesse diminuto artigo uma discussão prolongada sobre todas as formas com as quais os conteúdos ideológicos se dão a conhecer. Compete somente pensar ligeiramente sobre aquele que talvez seja o mais arraigado no senso comum: a naturalização das estratificações sociais. Com ele voltamos ao caso de nossos trabalhadores do setor canavieiro de Alagoas. E é por ele, penso eu, que devemos iniciar nossa tarefa de des-ideologização dessa classe de trabalhadores. Para tanto, a arma fundamental só poderá ser mesmo a palavra.

Em entrevistas grupais com esses trabalhadores (grupos focais), alguns desses elementos ideológicos ficaram bastante evidentes. Numa das questões, eu lhes perguntava sobre a importância social de uma referida usina canavieira para as comunidades do entorno. Algumas respostas deixam transparecer a relação paternalista e “o sentido servindo para estabelecer e sustentar relações de dominação”:

a) Tem, porque emprega as pessoas. São muitos funcionários ajudados ali. Ela ajuda na moradia do povo [...]. O comércio seria afetado na falta dela. Infelizmente em Alagoas não tem outra renda que sustente as pessoas. São as usinas que mais empregam as pessoas;

b) Muito grande. Se ela fechar as portas afeta muitas comunidades que dependem dela. Se ela fechar abala até a capital do estado. A grande renda de Alagoas é a cana de açúcar;

c) Sem a usina muita coisa desapareceria, incluindo a própria localidade [...]. Isso afetaria o comércio local;

d) Sim, pois se ela falir vai afetar desde União dos Palmares até Maceió”;

e) Ela tem uma grande importância. [...] sobrevive dos encargos dessa usina. Se isso acabar eles vão sentir. [...] e o bairro [...] também têm muitas pessoas que tiram seu sustento daqui. Ela gera emprego e renda para essas comunidades”;

f) O comércio dessas comunidades depende muito daqui. A crise da usina afeta o poder de consumo das pessoas”.

(Todos os grifos são meus.)

Nesses depoimentos – que são somente alguns dentre muitos outros – fica explícito o senso de profundo paternalismo e dependência que caracteriza a relação entre esses trabalhadores e os usineiros. A explicação disso é complexíssima. Envolve o entendimento dos processos psicossociais e ideológicos usados intencionalmente para manter essas representações nos trabalhadores. De todo jeito, o que se deve realçar aqui é a falsa noção de dependência absoluta de uma fração da sociedade alagoana junto à aristocracia agrária da cana. Em termos teológicos chamaríamos isso de “idolatria”, que consiste na elevação de entes relativos e contingenciais ao status de intocabilidade, incondicionalidade e eternidade (Paul Tillich).

Essa relação de dependência quase pueril obscurece para aqueles trabalhadores a realidade de que é dessa aristocracia canavieira que procede uma das piores concentrações de renda do mundo! Também obscurece a eles a realidade de que é dessa aristocracia que procede a terrível estratificação social de Alagoas [Lembro a vocês que somente 27 famílias usineiras possuem 70% das terras agricultáveis do estado. Além disso, metade dos alagoanos é composta por analfabetos funcionais, e 66% vive em estado de precariedade e pobreza.]. Esse paternalismo ainda obscurece para aqueles trabalhadores a realidade de uma relação predatória que a monocultura da cana mantém com o meio-ambiente, exacerbada nas queimadas e suas conseqüências nefastas para a fauna, a flora e para a sociedade humana, e na contaminação das fontes termais e bacias hidrográficas da região.

Há, portanto, naqueles discursos, uma forte naturalização das relações entre o setor canavieiro e a sociedade alagoana. E onde imperam tendências naturalizantes, a mobilização para a transformação fica prejudicada. Não se pode transformar o natural. Não se pode modificar o estático. Não é por acaso que se verifica uma triste inoperância sindical entre esses trabalhadores. Somente agora, quando a situação vai se tornando insuportável quanto aos atrasos salariais, é que se podem ver protestos articulados entre esses trabalhadores. A nota triste é que esses protestos ainda não objetivam uma mudança nessas relações. Eles são somente o grito do desespero da fome e da falta de recurso para sustentar suas famílias. Mas pelo menos agora já se ouvem gritos, graças a Deus!

Aqui entra o nosso trabalho teológico-pastoral identificado com os anseios de libertação do povo. Aqui entra a nossa atividade como intelectuais orgânicos, ou como psicólogos sociais comprometidos com os processos de dignificação das classes populares. Aqui é o lugar da tarefa de des-ideologização que tem na palavra seu instrumento privilegiado.

No entanto, como se percebe, esse artigo já vai ficando grande, o que nos impele a dedicar mais um texto para pensar na mesma temática. Dessa vez, esperando uma conclusão. Espero que já seja o próximo!

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