domingo, 21 de fevereiro de 2010

TEOLOGIAS ESTRANHAS PARA REVOLVER AS ENTRANHAS


Uma meditação sobre a opção do Evangelho pelos pobres


Para o Sr. Expedito

e D. Carmelita

Pra começo de conversa...

Como é estranha a afirmação de que Deus tenha predileções quando se trata de seu amor pelos seres humanos. Faz pouco tempo que o pessoal da Teologia da Libertação apareceu falando sobre uma tal “opção preferencial do Evangelho pelos pobres”. Foi um mundo de estranhamentos. Aquilo aparecia como uma das grandes heresias de nosso tempo. Afinal, afirmar que Deus tem predileções em seu amor pelos seres humanos é afirmar sua rejeição por outros tanto seres humanos. Assim, aquilo parecia a nova versão de um calvinismo moderno e sua idéia de predestinação radical. A diferença estaria somente em que agora a predileção de Deus pelos seres humanos estaria condicionada à posição sócio-econômica que estes ocupassem no mundo, bastando-lhes a pobreza como garantia do favor divino.

Engrossando o caldo dessas teologias estranhas está a forma como o pastor Marcos Monteiro intitula uma das seções do seu livro Um jumentinho na avenida, afirmando ali que “o Deus do rico não é o Deus do pobre”! Como assim? Afinal, Deus é um só. Como, portanto, se pode dizer que um é o Deus do rico e outro o Deus do pobre?

E para não me estender muito na citação dessas teologias esquisitas, retomo uma das ênfases do trabalho teológico de Jon Sobrino, que repetidamente vem nos chamando à atenção para o fato de que o grande desafio para a teologia em nossos dias não é o ateísmo, mas a idolatria. Dito de outra forma, o grande problema de nossos tempos não é a descrença em Deus, mas a superabundância deles, que produz como efeito colateral a negação da vida para milhares de seres humanos.

Temos assim três heresias diferentes:

a) Uma no campo da “moral da divindade”, supondo que Deus tem predileções em seu amor pelos seres humanos, e essa predileção está direcionada aos pobres;

b) Outra no campo da “ontologia do sagrado”, que diferencia o Deus do rico do Deus do pobre;

c) E mais outra no campo da “epifania do sagrado”, que admite não somente a existência de muitos deuses, mas também julga como nefasto o culto que se oferece à maioria deles.

Eu diria que esses estranhamentos todos são filhos dos nossos entranhamentos!

Entre estranhamentos e entranhamentos, não nos damos conta de que as heresias a que fizemos menção acima são de fato repetições do discurso bíblico acerca de Deus. A Bíblia, frente aos nossos entranhamentos religiosos, é uma enorme heresia. Os entranhamentos de nossa cultura cristã, católica, protestante, grega e ocidental, produzem em nós esse estranhamento diante destes fatos: quando estamos falando do Deus da Bíblia estamos falando de um Deus que:

a) Tem predileção pelos pobres e por todas as vítimas das injustiças e opressões humanas;

b) Se diferencia daquilo que os ricos e abonados desse mundo pensam e dizem sobre Ele;

c) Reconhece a possibilidade de que os homens tenham outros deuses, e convoca aqueles a lhe servirem unicamente, sobretudo com a prática da justiça e do amor verdadeiros dedicados aos seus semelhantes.

O Deus da Bíblia tem predileção pelos oprimidos do mundo

Na Bíblia, a relação de Deus com os pobres é algo parecido com aquilo que os poetas dizem ocorrer durante o processo de criação literária. Um dia desses ouvi a Adélia Prado dizer numa palestra que a poesia é uma forma de transcendência. O poeta vê a pedra, mas em seu olhar ela está transcendida de sua condição ontológica de pedra. Portanto, ao olhar a pedra, vê outra coisa. O Milan Kundera dizia que sabemos que amamos uma pessoa quando ao seu rosto se junta uma metáfora poética. Então, o processo de criação poética se dá quando as coisas são transcendidas dessa forma. A flor do poeta é diferente da flor do botânico. O corpo feminino que o poeta vê é diferente daquele que vê o anatomista.

Na Bíblia ocorre o mesmo no que diz respeito à relação de Deus com os pobres e oprimidos de toda sorte. Esses que representam uma forma de “lixo humano” (Z. Bauman), esses que ocupam as últimas categorias nas tipologias sócio-econômicas mais comuns, esses que são a ralé, a escória, os vira-latas, os párias, esses sem vez e sem voz, vitimados pela História e excluídos das benesses de um tempo tão pródigo em maravilhas tecnológicas, esses todos têm sua condição miserável transcendida (porém não negada). Eles são, em primeiro lugar, os destinatários privilegiados dos segredos mais íntimos de Deus. Jesus de Nazaré estava tão certo da preferência de Deus por esses que numa oração deu graças da seguinte forma: “Eu te louvo, Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondeste essas coisas dos sábios e inteligentes e as revelaste aos pequeninos” (Mt 11,25).

E aqui, nós, teólogos da libertação, temos que prestar muita atenção:

Nenhuma teologia será verdadeiramente libertadora se quiser apenas “libertar os pobres” de seu cativeiro sócio-econômico, mas será plenamente libertadora se, além disso, se deixar entranhar pela cultura dos pobres, uma vez que, conforme Jesus, a mesma está entranhada dos mistérios mais íntimos de Deus.

Estranho, não?

Mas em segundo lugar, a preferência de Deus por estes desgraçados e desgraçadas da terra chega ao estranho absurdo de identificar ontologicamente aqueles e aquelas com o próprio Cristo (veja Mt 25,31-40). E eu ainda sonho com o dia em que nossas campanhas missionárias proponham o desafio de, em lugar de levar Cristo aos miseráveis do mundo, discernirmos o Cristo que já está com eles e neles.

“O Deus do rico não é o Deus do pobre”

Dito de uma perspectiva bem pragmática, o rico nem precisaria de Deus. No máximo o rico seria deísta, crendo num Deus que permanece distante e sem qualquer tipo de relação com o mundo. Isso porque as necessidades primárias do rico estão satisfatoriamente resolvidas por sua riqueza. Deus, portanto, seria uma hipótese de trabalho da qual ele poderia prescindir sem prejuízo para as questões práticas da vida. Mas, a despeito dessa lógica, o rico também é crente. Só que, via de regra, seu Deus precisa ser diferente do Deus do pobre. E para dizer o quanto é verdadeira a afirmação de que “o Deus do rico não é o Deus do pobre”, vou citar um caso contado pelo próprio pastor Marcos Monteiro. Dizia ele:

Numa visita a um irmão, recém-convertido, morador de um das favelas próximas a nossa igreja, ouvimos esta história exemplar:

Ao entregar um quilo de carne na casa de um deputado, um açougueiro avistou a mesa posta para o café da manhã, com tudo que podia imaginar.

__ Mesa farta, doutor! – disse o açougueiro.

__ Graças a Deus! – exclamou o deputado.

__ É, doutor – replicou o açougueiro –, o Deus do rico não é o mesmo Deus do pobre. Na minha casa, quando tem pão não tem manteiga e quando tem manteiga, falta pão. Por isso, doutor, o Deus do rico não pode ser o Deus do pobre.

Como o caso acima deixa ver, o Deus do rico nada tem a ver com as dissimetrias sociais. Como os próprios ricos fingem pensar, o seu Deus não vê qualquer relação dialética entre a riqueza de uns poucos e a miséria das maiores populares. Nesse instante eu recordo as missas e os cultos em ação de graças a cada início de safra do setor canavieiro de Alagoas. É uma prática historicamente arraigada aqui – e suponho que também o seja em outros lugares onde vige a monocultura da cana – que os grandes latifundiários comecem a safra anual pedindo ao seu Deus que lhes abençoe e lhes dêem a melhor das safras possíveis. E nessa intenção se agregam patrões, empregados e sacerdotes num clamor ao Deus do rico, para quem a exploração do trabalho dos bóias-frias cortadores de cana pouco importa. Mesmo esmagando uma legião de homens e mulheres com jornadas de trabalho extenuantes a custos baixíssimos, e negligenciando a estes os direitos trabalhistas mais fundamentais, é possível orar a este Deus pedindo-lhe sucesso na safra da cana. Afinal, para o Deus do rico e seus adoradores, o culto e a ética estão totalmente divorciados.

O Deus do rico sequer cogita acerca da transformação da sociedade. Seu mundo é estático, fragmentário e a-histórico. Portanto, o culto é um momento de alento, de narcótico, de fuga momentânea do mundo, com pouca relação com os dilemas reais que estreitam a vida das pessoas. No máximo, nesse culto busca-se um alento para suportar as agruras desse mundo, mas de forma resignada. No culto ao Deus do rico as esperanças escapistas e apocalípticas têm destaque. No lugar da transformação da sociedade, vigora aí a legitimação de suas estruturas.

Mas o maior incômodo ainda não é este. O pior de tudo é saber o quanto o Deus do rico é assimilado pelos próprios pobres. A estes é comum que se ofereçam as consolações que não condizem com o Deus da Bíblia, que é parceiro dos humilhados. Em linguagem secular, Paulo Freire dizia que é comum que o pobre internalize os valores de mundo que não pertencem à sua classe. Para citar literalmente sua expressão, Freire dizia que “o oprimido tende a hospedar o opressor dentro de si”. E não é difícil encontrar entre os pobres gente que replicaria a atitude desumana dos opressores na primeira oportunidade que lhe surgisse. Assim como não é difícil encontrar entre os pobres gente que em suas relações cotidianas replica uma visão de mundo tacitamente burguesa e opressora.

Nossas religiões deveriam atentar para que tipo de discurso elas ajudam a reificar entre os pobres. Por vezes, elas têm sido o instrumento mais eficaz na produção dessa contradição: fazer o povo pobre e oprimido pensar burguesamente, incutindo-lhe uma visão de mundo muito mais afeita ao Deus do rico que ao Deus da Bíblia, parceiro do pobre em sua situação de humilhado da História.

A idolatria como grande desafio teológico

Jon Sobrino, Franz Hinkelammert, Juan Luis Segundo, Hugo Assmann, Elsa Tamez, Jung Mo Sung, Ignácio Ellacuria, são os principais representantes de uma denúncia esclarecedora: o grande problema de nossas sociedades não é o ateísmo, mas a idolatria; não é a afirmação da inexistência de Deus, mas o serviço aos muitos falsos deuses (ídolos) de nossa cultura ocidental.

Mas o que é um ídolo? Primeiro, a idolatria não é um fenômeno do passado, e muito menos está circunscrita somente ao universo religioso. Os ídolos são realidades históricas, bem presentes na configuração de nossas sociedades. Ele é qualquer ente condicionado, relativo, temporal, efêmero, passageiro, transitório, histórico, elevado à condição de incondicional, absoluto, atemporal, eterno, a-histórico. Bem na contramão do senso comum da religião, o ídolo pode ser uma pessoa, mas também pode ser um modelo político, um arranjo econômico, uma ideologia de tipo científico, e até uma ideologia de tipo religioso.

A idolatria é um fenômeno com certas peculiaridades e regularidades, qualquer que seja sua espécie. Nietzsche dizia, por exemplo, que a idolatria apaga certas idiossincrasias inerentes ao ídolo dos olhos do idólatra. Sobretudo aquelas feições demoníacas próprias de todo ídolo, passam sempre despercebidas aos olhos do idólatra, enfeitiçado que se encontra com seu deus. Com efeito, pior do que isso, é o fato de que todo ídolo se alimenta da vitimização dos idólatras. As relações idólatras exigem vítimas a todo custo, a fim de que o ídolo possa sobreviver.

Numa crítica ao mercado mundial globalizado elevado à condição de ídolo em nossos dias, a pastora Elsa Tamez nos oferece uma ilustração esclarecedora nesse tocante:

Há dois tipos de deuses, uns que dão sua vida para salvar a humanidade e outros que exigem a vida dos humanos para salvar-se a si mesmos. Nas tradições mexicanas, os deuses da cultura náuatle, junto com Quetzalcóatl, decidiram sacrificar-se para que a humanidade alcançasse o movimento, ou seja, a vida; mas o deus do império asteca, Huitziloposshtli, exigia sacrifícios humanos para ele poder sobreviver com o sol de cada dia. Metaforicamente, isto quer dizer que o “Deus” do mercado [entre os demais ídolos modernos] exige vidas humanas. Este seria o “Deus” de hoje que mata para viver. A soteriologia cristã, pelo contrário, mostra um Deus que dá a vida, sua própria vida, para salvar a humanidade. Fixemos o olhar no Deus cristão e em sua proposta de salvação.

O tema da idolatria esteve muito presente no discurso anticatólico de nossas igrejas evangélicas no Brasil. Mas, estaria esse discurso afinado com o tratamento que aqueles autores citados acima deram a este problema? De maneira alguma! Dissertando sobre esse tema, eu mesmo dizia em outro lugar:

O protestantismo histórico brasileiro, em sua ânsia por perpetuar a identidade anticatólica, tem preservado uma concepção paupérrima do fenômeno da idolatria, identificando-a com as imagens dos santos adotadas na religiosidade católica. Até então não se desenvolveu no seu interior uma concepção da idolatria como a deificação de certas estruturas criadas pelo homem que oprimem e exigem o sacrifício diário de milhares de vítimas, às quais as imagens dos santos católicos não devem sequer ser comparadas em poder de influência.

Fim de papo...

Agora eu já não tenho dúvidas acerca de como Deus e seu Espírito se encontram de fato entranhados entre os pobres. Mas não digo isso como resultado das muitas leituras nem dos muitos debates entre teólogos e teólogas. Não digo isso de um ponto de vista meramente teórico. Digo isso como produto de uma experiência concreta, cheia de sabor e de vida, experimentada entre gente simples. Digo isso como produto da convivência com o Sr. Expedito e D. Carmelita, pais da minha amiga prª Odja Barros. Um acolhimento de apenas um dia na casa de Sr. Expedito e D. Carmelita me foi suficiente para ratificar a bem-aventurança de que “felizes são os pobres de espírito, pois dos tais é o Reino dos Céus” (Mt 5,3). O sabor da vida como dádiva a ser fruída permanece ainda na boca dias após aquela visita. O riso, o violão, o bom e velho vinho que alegra o coração, a nostalgia musical, a mesa comum, e as aulas de “boa convivência marital” só podem ser vistas por quem esteve ali como experiências do sagrado, porque fizeram a vida vibrar numa sintonia gostosíssima, sem explicação.

E se por um lado é verdade que não se pode infantilizar a figura do pobre, também é verdade que pessoas como o Sr. Expedito e D. Carmelita ajudam-nos a entender essa predileção de Deus e do Evangelho pelos “pequeninos”.

Tendo pouco, o pobre está pronto para acolher em si mesmo o dom de Deus e se alegrar verdadeiramente em Deus e no próximo. Está pronto a depender de Deus em tudo. Tendo pouco, o pobre pode tratar as pessoas como pessoas e as coisas como coisas. Tendo pouco, o pobre sabe acolher em sua casa como uma galinha acolhe debaixo de suas asas os seus pintainhos. Tendo pouco, e sabendo o que é padecer em sua própria carne, o pobre pode se compadecer dos outros mesmo em meio às suas necessidades. O salmista chega a dizer que o pouco do pobre vale mais que o muito dos ricos (Sl 37,16). Por que seria? Exatamente porque o muito do rico é capitalizado egoisticamente em função de si mesmo, enquanto o pobre consegue capitalizar o seu pouco ainda em função dos outros. Por isso vale mais!

Estranho?


Trabalhos citados

BAUMAN, Zygmunt. Tempos líquidos. São Paulo: Jorge Zahar, 2003

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 2005

KUNDERA, Milan. A insustentável leveza do ser. São Paulo: Companhia das Letras, 2004

MONTEIRO, Marcos. Um jumentinho na avenida – A missão da igreja e as cidades. Viçosa: Ultimato, 2007

NASCIMENTO, Paulo. Rumo à “comunidade Messiânico-profética”: Perspectivas eclesiológicas para o protestantismo histórico no Brasil. In: Epistêmê. Ano 05-11, vol. 11, Feira de Santana: Seminário Teológico Batista do Nordeste, 2009

NIETZSCHE, Fredrich. O anticristo – A maldição do Cristianismo. São Paulo: Escala, 2005

SOBRINO, Jon. Ateísmo e idolatria. In: SOARES, Afonso Maria Ligorio (org.). Juan Luis Segundo: uma teologia com sabor de vida. Tradução de Afonso Maria Ligorio, São Paulo: Paulinas, 1997

TAMEZ, Elsa. O Deus da graça versus o “Deus” do mercado – Dádivas inesperadas. In: Concilium – A face luminosa da fé. Tradução de Lúcia M. E. Orth, Petrópolis: Vozes, nº 287, 2000, p. 112-120, vol. 4

sábado, 6 de fevereiro de 2010

HELDER, O DOM


Pelos 101 anos do nascimento de Dom Helder Câmara


Se Dom Helder Câmara estivesse vivo, completaria nesse domingo (07/02) 101 anos de vida. Sem dúvida, sua existência significou enorme avanço nas dinâmicas eclesiais da Igreja Católica no Brasil, tendo encarnado em seu presbiterato os anseios do Concílio Vaticano II antes mesmo da realização deste. Trata-se, portanto, de um autêntico profeta. Como diria Yves Congar a seu respeito, Dom Helder possuía justo aquilo que faltava à sua igreja [e, por que não dizer, à boa parte delas], que era visão.

Desejo transcrever aqui quatro testemunhos que servem como micro-demonstrações de uma vida encharcada do Evangelho de Jesus Cristo. Todos esses testemunhos pertencem à coletânea Helder, o Dom, organizada por Zildo Rocha e publicada pela editora Vozes como derradeira homenagem literária.

Os dois primeiros testemunhos são de Frei Betto:

Em certa ocasião, a polícia federal bateu à sua porta:

__ Viemos oferecer-lhe uma equipe de segurança. Se o Sr. morrer em acidente ou for assassinado por um louco, a culpa recairá sobre o regime militar.

Dom Helder achou graça com tamanho cuidado com sua segurança. De fato, preocupação com a imagem do Brasil no exterior:

__ Não carece. Já tenho três pessoas que cuidam muito bem da minha segurança.

Os delegados ficaram surpresos:

__ Mas não consta dos nossos registros. Ninguém pode ter segurança privada, sem autorização oficial. Dê-nos os nomes deles.

O arcebispo aquiesceu:

__ Pois não: são o Pai, o Filho e o Espírito Santo.

*

Uma noite, uma família pobre recorreu a ele:

Seu bispo, a polícia levou nosso pai confundido com um bandido. Estão batendo muito nele. Dom Helder compareceu à delegacia:

__ Seu bispo – exclamou o delegado perplexo –, o Sr. por aqui?

__ Sim – respondeu Dom Helder –, vim em busca do meu irmão.

__ Seu irmão?!

__ Está preso aqui. É o fulano!

O delegado ordenou a imediata libertação do preso.

Mas os Srs. são tão diferentes – observou o delegado – na cor e no nome!

Dom Helder não titubeou, disse a verdade que, talvez, o delegado não tenha captado:

__ É que somos filhos do mesmo Pai.

***

O terceiro testemunho é de Marcelo Cavalheira:

(...) Naquela fase de progresso e otimismo do Brasil, era intenso o relacionamento de Dom Helder com o então presidente da república, Juscelino Kubitschek. Freqüentemente, os dois se encontravam para discutir sobre problemas nacionais e seus grandes desafios. Certo dia, já quase às vésperas da inauguração de Brasília, Dom Helder recebeu um recado vindo do Palácio Presidencial, ainda no Catete (Rio de Janeiro), comunicando que o Presidente estava enfermo e queria falar urgente com ele. Chegando ao palácio, Dom Helder foi logo recebido no apartamento pessoal do Presidente, que não estava enfermo coisa nenhuma. Mas o que pretendia mesmo era falar a sós com Dom Helder por largo tempo, sem ser incomodado.

A conversa toda, por mais de uma hora, girou em torno de um insistente convite do Presidente para que Dom Helder aceitasse ser prefeito da nova Capital Federal. Dizia Juscelino que todos os líderes de partido estavam de acordo e isso contribuiria para um grande congraçamento nacional e para o fortalecimento da autoridade do Governo. Dom Helder discorreu com convicção e sagacidade sobre a proposta presidencial, mostrando que sua vocação era ser padre, era estar presente na vida do país sem jamais sair da sua posição de pastor. Queria sempre agir em nome de Deus, sem sair do seu campo, sem invadir o Estado, nem jamais voltar à união oficial da Igreja com o Estado, o que, na prática, prejudicava a ambos. Juscelino não se convencia, voltava cada vez com mais veemência e arrazoados. Ao final, Dom Helder, de sua parte, depois de todos os argumentos da fé e da razão, partiu para golpear o Presidente com um exemplo prático, irretorquível: “Hoje, Sr. Presidente, eu estou aqui, frente a frente, diante do senhor, debatendo pontos de vista com absoluta liberdade e sem condicionamentos de qualquer ordem. No dia em que eu me incorporar a seu grupo de comando, dentro das injunções concretas da prática política, eu estarei amarrado, balançando a cabeça para concordar com o que o senhor disser, deixando de lhe trazer a colaboração original e independente da Igreja. Eu quero ter sempre um canal para o diálogo livre e respeitoso com o Estado para cobrar o seu dever. Quero fazê-lo em nome de Deus e do povo. Quero ser a boca dos que não têm vez nem voz.

Diante desse argumento que apelava para a sabedoria da prática, o Presidente Juscelino se ergueu, deu uma de suas grandes gargalhadas e proferiu com especial ênfase a famosa frase de Juliano, quando vencido na batalha contra os cristãos: “Venceste, Galileu!”.

***

O quarto testemunho é de Marcelo Barros:

(...) No Recife, Dom Helder encontrou um clero no qual havia padres conhecidos por suas posições conservadoras. Nunca, ninguém pôde dizer que foi preterido ou marginalizado pelo arcebispo. Ele gostava de repetir:

__ Se você concorda comigo, me confirma. Mas, se discorda, me ajuda mais porque me obriga a aprofundar o meu ponto de vista.

Um bom exemplo de como ele praticava isso aconteceu em 1969. Dom Helder denunciou torturas praticadas contra prisioneiros. O “Jornal do Comércio” publicou uma entrevista com o vigário de uma paróquia central da cidade. O tal monsenhor dizia que o arcebispo defendia bandidos porque nunca foi vítima dos seus atos delinqüentes. E concluía: “Seria bom que fosse assaltado e torturado para não defender mais a bandidos”.

Dizer aquilo era quase sugerir o crime aos inimigos. Havia poucos meses, o Padre Antonio Henrique, um dos auxiliares do arcebispo, aparecera morto, com o corpo terrivelmente torturado. Os irmãos e irmãs da coordenação de pastoral exigiram do arcebispo um pronunciamento claro. O padre deveria ser advertido e o artigo precisava de uma resposta. Dom Helder negou-se a tomar qualquer atitude. Defendeu o direito do padre de dizer o que pensava e concluiu o assunto com a lembrança de um episódio bíblico:

“Um dia, o rei David marchava com seu exército e Simei, descendente de Saul, seguiu a comitiva, atirando pedras no rei. Insultava-o chamando David de sanguinário e dizendo que Deus o entregaria nas mãos de Absalão, o seu filho revoltoso. Um general pediu ao rei para matar aquele homem e David respondeu: ‘Deixem que ele me amaldiçoe. Se Deus permitiu, o que adianta vocês proibirem? Deixem-no, talvez o Senhor olhe a minha humilhação e me restitua a paz’” (cf. 2Sm 16,5-14).

Dom Helder concluía: “Isso do qual me acusam não é justo, mas tenho outros pecados. Aceito a acusação do que não fiz para que Deus me perdoe de algum mal que fiz”.

***

A falta de memória histórica parece ser um mal tanto em nível da sociedade brasileira em geral, quanto de nossas instituições cristãs em particular. Portanto, esses testemunhos, além de serem singelíssimas homenagens póstumas, são pequenas tentativas de conservar memórias edificantes de nosso Cristianismo brasileiro, tão carente de pessoas-símbolo que animem uma visão progressista e engajada da relação fé-mundo.

Assim, termino com uma citação da Ivone Gebara à mesma coletânea, como reforço a essa memória animadora:

“A vida de Dom Helder é um sinal da glória de Deus porque aponta para direções precisas, porque assumiu causas precisas, tentando fazer os seus mesmos valores de Jesus de Nazaré e dos profetas e profetizas que o precederam ou que foram seus contemporâneos”.



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* Testemunhos extraídos de ROCHA, Zildo (org.). Helder, o Dom Uma vida que mudou os rumos da Igreja no Brasil. 2ª edição, Petrópolis: Vozes, 1999