segunda-feira, 21 de julho de 2014

O QUE APRENDI COM RUBEM ALVES

Pode parecer incrível, mas detestei o meu primeiro contato com a obra do Rubem Alves. Era 1999. Eu estava no primeiro ano da graduação em Teologia. Estava encantado com a “objetividade” da linguagem acadêmica, com o flerte da Teologia com as Ciências Humanas e com a Filosofia. Estava entusiasmado com a linguagem hermética, conceitual, e porque não, pedante, dos teólogos que fui encontrando. Eu estava embriagado com a gravidade e solenidade dos teólogos clássicos, muitos dos quais respondiam a perguntas que ninguém fez.
Quando na minha mão chegou o livro Pai Nosso, do Rubem Alves, eu detestei. Era poético demais. Não parecia científico. Não parecia sério, solene, grave e rotundo, como as Teologias Sistemáticas que já faziam minha cabeça à época. Não parecia Teologia. O resultado foi que não li nada do Rubem Alves por cinco anos, mesmo sabendo que Protestantismo e repressão, por exemplo, satisfaria melhor minhas expectativas de jovem seminarista. Uma antipatia idiota estava formada. Graças a Deus, não consolidada!
Cinco anos depois desse primeiro contato não sei por que decidi ler Protestantismo e repressão (rebatizado posteriormente como Religião e repressão). Por se tratar de uma tese de livre docência, esse livro fora escrito em linguagem acadêmica, repleto de notas de rodapé e de referências a trabalhos científicos. Ah, até que enfim! Apesar da pretensão do título, quem leu a obra percebe que se trata de um estudo de caso relativo à Igreja Presbiteriana do Brasil, matriz religiosa do autor. Curioso é que o próprio Rubem, prefaciando esse livro 30 anos depois, se desculparia com seus leitores por escrever um livro tão chato, e em linguagem erudita.
A partir daí eu fui saltando aleatoriamente por muitos dos seus livros, mas com um foco especial na fase das crônicas. Não consigo enumerar nem recordar todos os títulos. Mas foram dezenas deles, sendo devorados com certo desespero! O que houve? Eu simplesmente fui fisgado pelo sabor do texto alvesiano. Ocorreu que eu quis saber também da vida daquele sujeito. E descobri a complexidade da obra e vida desse autor, desconhecida para muitos dos seus leitores.
Descobri um primeiro Rubem Alves, ou, como chamaria o Leandro Cervantes-Ortiz inspirado em Bachelard, umRubem Alves diurno. É o Rubem Alves das primeiras publicações, a contar de sua tese de doutorado Towards a Liberation Theology, publicada em português como Da esperança. Também dessa fase, Tomorrow’s child, em português A gestação do futuro. Em seguida li O enigma da religiãoDogmatismo e tolerância, O suspiro dos oprimidos, Variações sobre a vida e a morte O que é religião (Coleção “Primeiros Passos”).
O Rubem Alves diurno é um teólogo preocupado com a emancipação humana por meio da atividade política, e um filósofo da religião preocupado com os efeitos do discurso religioso em sua relação com a construção social da realidade. É um teólogo acadêmico. Escreve para esse público. Dialoga com os autores da academia no enquadre de seu tempo.
Depois descobri um segundo Rubem Alves, ocupado com os temas da educação. Conversas com quem gosta de ensinar parece ser crucial para entender essa fase. A alegria de ensinarEstórias de quem gosta de ensinar,Entre a ciência e a sapiência, A educação dos sentidosFomos maus alunos (com Gilberto Dimenstein) e A escola da ponte estão situados nesse momento. De certa forma Filosofia da ciência também. Esse é um dos meus preferidos até hoje!
Aqui vigora um Rubem Alves muito menos preocupado com os rituais da escrita acadêmica. Já se trata de um autor livre dessas amarras. Seu objeto, muito mais que os famosos “processo de aprendizagem”, são os processos de “ensinagem”, como dizia. Fazer do saber algo saboroso é sua obsessão nesses livros todos. Os professores são seus interlocutores fundamentais aqui!
Um terceiro Rubem Alves, esse o mais conhecido, é o cronista do cotidiano e um incansável louvador da beleza que existe em todas as coisas. Aqui eu não consigo enumerar os incontáveis títulos dedicados a essa tarefa. Apenas diria que Tempus fugit parece abrir esse momento de sua carreira literária. Dessa fase, li primeiro O amor que ascende a lua. Depois perdi a conta...
Aqui escreve um Rubem Alves rendido incuravelmente à poesia. E eu não posso negar que quase todos os autores e autoras da literatura estrangeira e nacional que hoje aprecio, eu os tenha conhecido por meio das crônicas do Rubem Alves. Alguns deles são a Adélia Prado, Cecília Meireles, Guimarães Rosa, o próprio Fernando Pessoa, T. S. Eliot, Whalt Whitman, Milan Kundera, Gaston Bachelard, Paul Valery, Herman Hesse, entre outros tantos. Não que eu tenha tomado conhecimento da existência desses autores com o Rubem Alves. Mas foram suas crônicas que me catapultaram para a leitura deles.
Eu devo muito coisa ao Rubem Alves. De longe é o teólogo que mais li, entre brasileiros e estrangeiros. Não vou conseguir traduzir tudo nesse texto. Mas considero fundamental dizer que foi com esse autor que me dei conta dos limites da pretensão do discurso religioso. Com Rubem Alves me dei conta de que o discurso religioso é mais um entre tantos discursos a disputar a subjetividade humana. Reconhecer isso não fez de mim necessariamente um ateu. Mas me ajudou muito a colocar os pés no chão, a relativizar a mim mesmo como uma pessoa religiosa, e a reconhecer o potencial de bondade presente em outras tradições diferentes da minha.
Devo a esse autor a capacidade de percepção da beleza presente em coisas banais. E mais do que isso: a capacidade de ver o divino nelas. Numa tradição que exalta o sofrimento como escada para a bem-aventurança, como o é a tradição cristã, é impossível não se render a um autor que elege a beleza, o prazer, a leveza, o erotismo, o efêmero, como formas de louvor, e como fins em si mesmos. Rubem Alves defendeu uma religião de levezas. Afinal, como amar a um Deus que fica feliz com “cascas de feridas?”, dizia sempre. Por tudo isso devo a esse autor a construção de uma espiritualidade descomplicada. Não imoral. Mas muito mais leve do que essas sustentadas em moralidades de fachada, e portadoras de fardos insuportáveis.
Eu comecei a me exercitar na escrita imitando o Rubem Alves. Logo eu notei que aquele não era o caminho a seguir. A escrita gostosa do Rubem, especialmente essa presente nas crônicas, era fruto de um longo e árduo caminho. Era essencialmente fruto do cansaço com a linguagem hermética da academia, que ele dominou muito bem por muitos anos. Mas Alves queria falar às crianças. E foi esse desejo que produziu um modo de escrever tão peculiar. Eu me dei conta de que esses caminhos não são reproduzíveis. Eles são parte da biografia de cada um. O próprio Rubem Alves cansou de dizer que se tornou escritor porque deu tudo errado em sua vida. Mas no começo eu quis escrever como ele. Nunca consegui. Ainda assim, se escrevo o que escrevo, devo em muito à obra desse autor.
Mas não aprendi apenas lendo seus livros. Sua biografia também me ensinou muito. Especialmente a reconhecer que descaminhos podem ser possibilidades fantásticas. Frustrações podem ser potencialmente enriquecedoras. Fracassos podem ser portas para o sucesso. Rubem Alves foi pastor na juventude. Perseguido por sua própria igreja, exilou-se nos Estados Unidos. De volta ao Brasil, tornou-se professor universitário, depois psicanalista. Sempre andando na contramão dos narcisismos grupais, tornou-se um dos intelectuais mais respeitados do Brasil exatamente porque muita coisa deu errado. Permitiu-se renascer muitas vezes, como uma metamorfose ambulante, diria Raul. Isso me ensina muito.
Guardo com muito carinho um autógrafo concedido pelo Rubem a mim no auditório da Biblioteca Central da UESC (Universidade Estadual de Santa Cruz – Ilhéus-BA). Eu estudava Filosofia por lá nessa época. O Rubem Alves foi dar uma palestra para crianças, e autografou O suspiro dos oprimidos.
Por tudo isso – que expressei muito imprecisamente aqui – um tributo ao mestre Rubem Alves. Que viva para sempre naqueles e naquelas a quem ajudou tanto a ver a vida com mais beleza, leveza e alegria!