terça-feira, 24 de maio de 2016

PARA QUE SERVE A BÍBLIA ?



Tenha calma... Se você se dispuser a seguir esse longo argumento, você vai constatar que a pergunta que lhe dá título é feita com seriedade, e com vontade sincera de discernimento. No mais, isso aqui é só um argumento mesmo, e nada mais. Eu sou teólogo por formação, e não consigo não meter o bedelho nessas coisas, especialmente nesses dias de “muita fé”, em que a Bíblia tem tido milhares de utilizações diferentes. A maioria desastrosa... para mim.
Na verdade, eu estou entre aquelas pessoas que pensam que a sociedade inteira deveria levar a Teologia como algo muito sério. Por quais razões? Porque diferentemente da Modernidade, que confinou a influência da Religião à dimensão privada da vida das pessoas, atualmente assistimos à reocupação do espaço público-político por representantes de instituições religiosas, que a partir dessas tradições de fé tentam pautar certas políticas públicas. O caráter laico dos Estados atuais nunca esteve tão relativizado quanto agora. E eu vejo nisso um risco à Democracia.
A Bíblia é o documento central para uma grande parte dos cristãos no mundo todo. Os protestantes, por exemplo, dizem não reconhecer outra autoridade normativa para a sua fé e prática além da Bíblia (na prática não é bem assim, mas abafemos esse caso...). Para os católicos, a Bíblia tem o mesmo peso normativo que a Tradição Eclesial e o Magistério Hierárquico. Assim, a autoridade de fé e prática dos católicos está assentada num tripé. Os protestantes nunca aceitaram isso (ou nunca entenderam!). Enfim...
Mas a Bíblia mesma, o que é?
Os cristãos mais fervorosos dirão: ‘é a Palavra de Deus’ – inerrante, infalível, atemporal e deve ser o mapa a nortear a existência humana. Outros ponderarão e dirão: ‘ela contém a Palavra de Deus’. O verbo ‘conter’ ajudaria a contemporizar essa noção, situando a Palavra de Deus em porções muito especiais da Bíblia, o que, obviamente, exclui muita coisa ali presente. Ela conteria a Palavra de Deus, mas conteria também muita palavra humana, falível, errante e cultural.
De fato, a Bíblia é uma coletânea de tradições religiosas muito antigas e muito diferentes, que por meio de longos processos históricos e acirradas disputas de poder, foram reunidas na forma de um ‘cânon’. Isso vale para o Antigo Testamento e para o Novo também. Esse longo processo histórico e essas acirradas disputas de poder deixaram de fora conteúdos tais que, se reunidos, produziriam outras três ou quatro Bíblias. Deus mesmo, segundo penso, esteve ausente o tempo todo dessas disputas de poder. A seleção, portanto, foi um processo bem profano...
O produto final – essas Bíblias que carregamos hoje em dia – reúne narrativas religiosas que vão desde a sacralização da guerra (culto ao Deus da morte) até a proposta de universalização do amor e da misericórdia (culto ao Deus da vida). Ela reúne tradições que vão desde a meditação sapiencial para qualificar a vida, até a religião dos profetas, que era marcada pela denúncia dos diversos tipos opressão. Há muitas imagens de Deus ali presentes, muitas delas bastante contraditórias, e porque não, excludentes. Jack Miles dizia que se os ministros religiosos dissessem publicamente tudo o que se atribui a Deus na Bíblia, eles seriam imediatamente demitidos de seus cargos. Eu concordo!
É por isso que nós precisamos de Teologia e de Hermenêutica. Porque ler a Bíblia não é simples. O fundamentalismo religioso e seu irmão siamês, o literalismo bíblico, só se sustentam à base de muita desonestidade intelectual. O fundamentalismo afirma que Deus inspirou cada letra do texto bíblico, e, portanto, o mesmo tem validade integral e atemporal. Onde está a desonestidade intelectual aí? Está no fato de que, na prática, o que o fundamentalista faz é selecionar passagens bíblicas que sirvam de pretexto para condenar os outros, enquanto faz vistas grossas a tantas outras passagens nas quais ele mesmo estaria implicado. Ele literaliza para os outros, e relativiza para si. Por exemplo, ele condena o homossexual ao inferno com base na interpretação literal de um texto bíblico, e faz vistas grossas para dez outros textos que condenam o julgamento precipitado, o acúmulo de riquezas, a omissão perante a miséria alheia, a prepotência, e por aí vai...
As pessoas de mentalidade mais secular, que por alguma razão se distanciaram da Religião, e hoje são marcadas por uma suposta cultura ilustrada, tendem a considerar a Bíblia um livro anacrônico e imprestável. Para algumas dessas pessoas, a Bíblia se reduz à narrativa religiosa que se tornou hegemônica na cultura Ocidental (porque sempre instrumentalizada pelo Poder). Esse modo de ver, no meu entendimento, está parcialmente correto. Mas a Bíblia pode ser mais que isso!
Há hermenêuticas subversivas. Há maneiras alternativas de ler o mesmo texto. A Bíblia é polifônica, como qualquer outra narrativa textual. Tudo depende do coração de quem a lê. Eu tenho a impressão de que o fundamentalismo bíblico consiste no seguinte: numa forma com que a pessoa justifica seus preconceitos com o texto da Bíblia na mão. O sujeito já é homofóbico, classista, racista, misógino, angustiado, neurótico, antissocial, e outras coisas. Na Bíblia ele encontra uma forma de dar legitimidade a tudo isso. E nada mais eficaz para legitimar um comportamento que fundamentá-lo a partir da ideia do ‘sagrado’.
Mas como eu ia dizendo, há maneiras alternativas que buscam dar outra utilidade à Bíblia. Há leituras que partem do pressuposto de que o amor é a grande vocação a que todos os seres humanos foram chamados por Deus. Assim, o amor passa a ser um tipo de “óculos” ou de “filtro” a partir do qual lemos a Bíblia. Em Teologia chamaríamos a isso de “princípio hermenêutico”. O amor, portanto, seria o princípio hermenêutico pelo qual a Bíblia deveria ser lida e interpretada.
Nessa perspectiva a Bíblia não seria nem anacrônica nem imprestável. Pelo contrário, ela teria muita coisa a dizer à cultura contemporânea. Ainda que ela não servisse para explicar todos os aspectos e pormenores da vida (esse nunca foi mesmo o seu propósito!), ela serviria para criar relações humanas muito melhores e muito mais qualificadas que essas que temos. Para mim, a Bíblia não tem muita serventia se não for para isso: humanizar as relações entre as pessoas. E isso, penso eu, todos os Cristianismos devem ao mundo até agora...

sábado, 2 de abril de 2016

SOBRE A ARTE DE DESVINCULAR-SE


Você já parou pra pensar na qualidade dos seus vínculos humanos? Me refiro aos vínculos familiares, profissionais, e principalmente aos vínculos afetivos. Você já avaliou alguma vez a qualidade emocional desses seus vínculos?
O grande filósofo judeu Martin Buber (1878-1965) escreveu uma obra seminal, intitulada Eu e Tu (1923). Nela, Buber avalia esses vínculos humanos, e denuncia uma mania muito comum entre nós, que é a de estabelecer relações do tipo eu-isso. Nessas relações o outro é um "isso", um objeto, um fetiche, uma projeção do nosso desejo. O outro é tudo, menos um "tu". Essas são as relações sem alteridade.
Zygmunt Bauman (1925-), por sua vez, também nos ajudou a entender os vínculos humanos mais recentemente, com um livro gostoso chamado Amor líquido (2013). Segundo o autor, esse é um livro sobre a fragilidade dos laços humanos nesses dias atuais. Bauman explica que o fascínio das redes sociais não está nas conexões que elas possibilitam. O fascínio das novas redes está justamente na facilidade de desfazer vínculos, tamanha a fragilidade deles. Um clique e tudo resolvido! Já na vida off-line...
Hoje (02/04) eu realizei uma visita a uma pessoa querida, internada no hospital psiquiátrico José Lopes, aqui em Maceió. Lá, conheci outra pessoa, em profundo quadro depressivo, e descobri que o seu quadro havia se instalado após uma separação afetiva. Eu não sou especialista em nada, muito menos em saúde mental. Mas estou me especializando cada vez mais em fazer perguntas a partir das experiências que vivencio.
Para além de possíveis predisposições genéticas a certos transtornos mentais, que tipo de vínculo é esse que leva uma pessoa a afundar-se num quadro semi-catatônico, em função do fim de uma relação amorosa? Qual era a qualidade emocional desse vínculo afetivo? O outro dessa relação era um "tu" ou um "isso"?
Há um investimento cultural pesado sobre o estabelecimento de vínculos afetivos saudáveis. Isso é salutar e necessário. Mas acho que necessitaríamos do mesmo investimento na arte de desvincular-se. Desvincular, desapegar, superar separações, é algo que nunca se faz sem certo sofrimento e pesar. Flávio Gikovate explica que nossa dificuldade com as separações afetivas vem do fato de que toda ruptura desse nível tem cheiro de morte.
Em Mal-estar na civilização (1930) Freud chega a afirmar que "nunca nos encontramos tão indefesos contra o sofrimento como quando amamos, nunca tão desamparadamente infelizes como quando perdemos o nosso objeto amado ou o seu amor".
Mas, se criar vínculos afetivos saudáveis é necessário e urgente, talvez mais urgente seja aprendermos a arte de desvincular-se do modo mais digno, menos traumático, e menos violento do ponto de vista de nossa saúde mental e emocional. Nos relacionarmos com o outro como um "tu", e não como um "isso" parece ser um início interessante para o aprendizado da difícil arte de desvincular-se.

sábado, 12 de março de 2016

BREVE EXERCÍCIO DE EXEGESE SOBRE OS "EFEMINADOS" DO NOVO TESTAMENTO (1Co 6,9-10)

O grande teólogo suíço Karl Barth (1886-1968) dizia que "uma comunidade de fé verdadeiramente interessada na verdade do Evangelho deve ser uma comunidade interessada em Teologia". Eu estou entre os que acreditam nisso. Pensar a fé teologicamente não tem nada a ver com pedantismo. Antes, é um ato mais que necessário, especialmente em nossos dias, marcados por um pluralismo religioso cada vez mais irrefreável.
Escrevo essas notas tendo em mente as turbulências causadas pela decisão da minha comunidade de fé -- a Igreja Batista do Pinheiro --, relativa ao recebimento de pessoas LGBTs em seu rol de membros. Como explicou o Pr. Wellington Santos em texto amplamente divulgado, a decisão da comunidade foi a culminação de dez anos de debates, estudos, pesquisa séria, e muita oração. Graças a Deus prevaleceu o entendimento de que o amor, mais que a doutrina sem coração, é o maior dos imperativos cristãos!
Como sei que o povo evangélico, em especial, tem um apego grande ao texto bíblico, eu gostaria de escrever umas poucas e simples linhas acerca de um dos textos no Novo Testamento utilizado nessas polêmicas sobre a homossexualidade. Vou usar algumas ferramentas da exegese bíblica, especialmente as vinculadas com questões de linguagem, a partir do texto grego no qual o Novo Testamento foi escrito. Repito: não há nenhum pedantismo nesses exercícios. E vou tentar simplificar ao máximo.
O texto de São Paulo, de 1Co 6,9-10, diz o seguinte:
"Então não sabeis que os injustos não herdarão o Reino de Deus? Não vos iludais! Nem os devassos, nem os idólatras, nem os adúlteros, nem os depravados, nem as pessoas com costumes infames, nem os ladrões, nem os avarentos, nem os bêbados, nem os injuriosos herdarão o Reino de Deus" (Tradução da Bíblia de Jerusalém).
A primeira coisa que faremos é destacar duas palavras, ambas no versículo 9: malakoi e arsenokoitai. Na tradução que citei, essas palavras gregas foram traduzidas por "devassos" e "pessoas com costumes infames" respectivamente. Outras traduções optam por "imorais" e "efeminados". A Nova Versão Internacional (NVI) fez opção por traduzir essas palavras gregas por "homossexuais passivos e ativos".
Note um primeiro grupo de questões a serem ponderadas:
- Quais critérios são utilizados na tradução de um texto como a Bíblia?
- Por que há tantas traduções diferentes dos mesmos textos?
- O que leva um tradutor a fazer opção por um termo, e não por outro?
- Os termos usados pela língua receptora (a atual) conseguem dar conta do significado literal dos termos originais?
Precisamos pensar um pouco nisso!
Mas agora vamos pensar um pouco sobre as palavras malakoi e arsenokoitai, presentes no texto grego original do NT. Em primeiro lugar, elas não podem ser traduzidas por "homossexuais ativos e passivos", por uma razão muito simples: o mundo antigo e o contexto do Novo Testamento não conheciam essa palavra, que só veio a ser cunhada no século 19, por Richard von Krafft-Ebing, no contexto do saber psiquiátrico. A tradução da NVI, portanto, é um ato muito mais teológico que filológico (linguístico), porque escolhe deliberadamente os termos em questão. Toda tradução, nesse caso, é uma forma de teologização!
Muitas traduções, especialmente as mais utilizadas entre os evangélicos, têm optado por traduzir malakoi por "efeminados", o que remeteria a uma condenação da homossexualidade. Malakoi, contudo, em termos muito literais, era uma palavra cujo significado queria dizer "mole", "macio", "suave". Algumas correntes filológicas sugerem que se tratasse de uma referência à moleza nas relações afetivas, própria dos "mulherengos", que não se firmavam em laços afetivos sólidos. Os malakoi seria uma referência ao homem dedicado a muitas mulheres de uma vez.
O caso de arsenokoitai é mais difícil, pois se trata de uma palavra quase nunca utilizada no Novo Testamento. Tudo aponta para o fato de que temos aqui um neologismo cunhado por Paulo, oriundo de duas outras palavras gregas: arsen (homem) e koiten (cama). Nesse difícil campo de decisão acerca de qual palavra utilizar como um equivalente próximo do termo original, uma corrente de tradução tem optado pela expressão "prostituição cultual", em função do contexto religioso que dá origem a estes escritos. A prostituição sagrada foi uma prática muito comum no contexto tanto do Antigo quanto do Novo Testamento, e não há contradição em relacionar a condenação paulina a essas práticas cultuais, muito presentes em Corinto.
Traduzir é colocar em movimento uma Teologia. Essas notas aqui escritas em função do texto de 1Co 6,9-10 valem para todos os textos bíblicos. Toda tradução bíblica é feita em função da tradição onde o tradutor se situa. Ela é quase sempre um instrumento teológico para fortalecer o ponto de vista da respectiva tradição. O texto de 1Co 6,9-10 é um dos que tem sido traduzidos para discriminar e fechar a porta a uma comunidade enorme de pessoas, diferentes em sua orientação sexual, mas igualmente valiosas em sua humanidade. Entretanto, tudo indica que não há qualquer referência à homossexualidade no texto que estamos destacando.
Mas, e agora: devem todas as pessoas que fazem parte das comunidades religiosas atuais aprenderem grego, e aprenderem exegese ??? Obviamente que não! Mas isso não reforçaria um tipo de intelectualismo, que põe aqueles que tiveram acesso a essas ferramentas numa posição de poder privilegiada ??? Também não!
Isso simplesmente nos chama a sentar, juntos, em comunidade, e tentarmos pensar nossa fé teologicamente. Cada pessoa pode trazer a contribuição do seu olhar. O povo tem sua sabedoria, e ela também vale nessa história de "pensar a fé teologicamente". Quem estudou e possui as ferramentas da exegese, dá a sua contribuição. Será apenas mais uma, nessa importante tarefa de compreender melhor aquilo que cremos.
Não estou falando de uma tarefa fácil. Mas complicado mesmo é continuar usando a Bíblia para justificar os preconceitos que já existem em nós. Esse é um caminho mais cômodo e mais fácil. Mas além de burro, nos afasta da maturidade que se espera dos cristãos.

quinta-feira, 10 de setembro de 2015

A IDEIA DE DEUS EM FREUD E JUNG

Professor do Instituto de Psicologia (UFAL) tem obra difundida entre profissionais franceses


Rodrigo Barros Gewehr debate a ideia de Deus, de acordo com Jung e Freud
Jhonathan Pino - jornalista
Com livro lançado em maio deste ano, na França, pela editora L'Harmattan, o professor do Instituto de Psicologia da Universidade Federal de Alagoas, Rodrigo Barros Gewehr, recentemente soube que sua obra L’Idée de Dieu chez Freud et Jung [A ideia de Deus em Freud e Jung] será tema de discussão na publicação francesa Cadernos Junguianos de Psicanálise. O ensaio está sendo escrito por Mariette Mignet, doutora em psicanálise e membro da Sociedade Francesa de Psicologia Analítica (SFPA) e deve sair neste segundo semestre.
Rodrigo relata que está aguardando a publicação para repensar a obra. “É importante, porque a partir da análise dela eu vou poder também repensar os argumentos que estão no livro. Ela é uma especialista na área, sobretudo no que diz respeito ao Jung. A partir da leitura que ela fizer e do que ela propuser nos estudos dela, eu vou poder também ampliar a discussão do meu texto, rever os argumentos e escrever a partir do que ela vai propor”, frisou o professor.
Fruto de seu doutorado, realizado entre 2008 e 2012, na Universidade Denis Diderot - Paris VII, o livro é “uma análise das teorias de Freud e Jung por meio da noção de Deus, da forma como eles usam esse conceito, com que propósito e que lugar essa ideia ocupa em suas teorias. A hipótese de fundo é que com esse conceito é possível entender como os dois autores pensavam a estrutura e funcionamento do aparelho psíquico, bem como a noção que tinham de ciência e de religião”, resumiu o pesquisador.
Rodrigo ressalta que o texto é de interface entre várias áreas das ciências humanas, como Filosofia, História, Teologia e, principalmente, Psicologia. Ele foi retrabalhado para que não ficasse em formato de tese acadêmica. “Penso que, embora técnico e, por vezes, minucioso, o texto pode ser lido por qualquer pessoa. Penso que o tema desperta grande interesse, e como se trata de um estudo comparado, com certo viés histórico, não são necessários grandes conhecimentos prévios para acompanhar o argumento”, ressaltou.
O autor diz que na França a obra tem encontrado boa receptividade entre psicólogos clínicos, “que não estão necessariamente ligados à universidade, mas que se interessam pela fundamentação teórica de suas práticas”, salientou Rodrigo
O docente lembra como é mais fácil publicar naquele país. “Os incentivos à publicação na França são muito maiores que aqui no Brasil. Aqui a gente sofre e muitas vezes as editoras cobram dos autores. Não é o caso na França. Por certo que quero publicar no Brasil, mas isso ainda depende de vários fatores”, lamentou.
A falta de tempo para traduzi-lo, além das dificuldades editorias impostas pelo mercado brasileiro colocam o projeto de traduzi-lo mais à frente, bem diferente da agilidade com que a editora parisiense teve, ao demonstrar interesse pela obra em 2014. “O contato foi feito por meio de uma amiga que também está com trabalho em vias de ser publicado, então eu enviei a proposta em texto para a editora, passou pela comissão editorial da coleção em estudos psicanalíticos. Daí então começou o período de revisão dos textos, que durou cerca de um ano”, detalhou.
Como está em língua estrangeira, Rodrigo disse que ainda não aplica a obra em suas disciplinas, embora alguns de seus alunos compreendam o francês. Mas o docente relata que parte das discussões são direcionadas pelas pesquisas ali presentes. “As reflexões contidas no trabalho fazem parte do que venho trabalhando com os estudantes, tanto nas disciplinas regulares, quanto no grupo de estudos que coordeno”, lembrou.
Outro detalhe da obra é o prefácio, que foi assinado por Christian Gaillard, psicanalista, membro didata da SFPA, que carrega em seu currículo a presidência desta instituição e da Associação Internacional de Psicologia Analítica (IAAP), além de anos de atuação como professor da Escola Nacional de Belas Artes de Paris.
O livro pode ser encontrado na página virtual da editora L'Harmattan, na Amazon.fr, na Fnac francesa e na Chapitre.

Fonte: http://www.ufal.edu.br/noticias/2015/08/professor-do-instituto-de-psicologia-tem-obra-difundida-entre-profissionais-franceses

terça-feira, 8 de setembro de 2015

QUEM TEM OUVIDOS, VEJA!

 Resenha de Vendo vozes: uma viagem ao mundo dos surdos 
(Oliver Sacks)
Vendo vozes: uma viagem ao mundo surdos é a tradução de Seeing voices: a journey into the world of the deaf, publicado originalmente no ano de 1989 pelo famoso neurologista Oliver Sacks, recentemente falecido. No Brasil, o livro tem sido publicado pela Companhia das Letras, e esta resenha foi escrita com base na edição de 2010, presente na série Companhia de Bolso. São 191 páginas de texto (com as notas de fim), e a tradução é de Laura Teixeira Motta. 


Em termos gerais, o livro apresenta algumas discussões relacionadas a um conjunto de pesquisas que tomam as surdezes pré-linguística e pós-linguística como objetos de estudo. A surdez pré-linguística, que pode ser congênita ou adquirida, é a estabelecida antes da fase de aquisição da linguagem oral, por volta dos dois anos. A surdez pós-linguística é a adquirida depois da fase em que os sujeitos já possuem fluência oral. Segundo Sacks, o título do livro foi sugerido por uma sobrinha, e deriva das palavras de Píramo a Tisbe: “Vejo uma voz [...]”.
O livro está organizado em três capítulos não intitulados.
No primeiro capítulo, o autor busca desenvolver uma espécie de genealogia das relações entre nossa cultura e a surdez. A força central nesse argumento de base histórica consiste em mostrar como a condição de surdez esteve relacionada a formas muito cruéis de exclusão. A história da surdez, especialmente da surdez pré-linguística, é uma história de exclusão e de calamidade, tanto no espaço público das interações sociais, quanto no espaço privado das relações familiares. Sacks chega a comparar os flagelos advindos da surdez com a condição de cegueira. A valorização da visão, enquanto um dos mais importantes sistemas sensoriais de contato com a realidade, faz pensar que sua privação seja o que há de pior no campo dos problemas perceptuais.
Segundo nosso autor, a surdez pré-linguística impõe ao sujeito uma condição muito mais severa e comprometedora que a cegueira, pois priva o sujeito, em parte, do mundo da linguagem, que é o que nos torna humanos.
A partir de relatos de casos clínicos, o autor discute os efeitos de diagnósticos tardios de surdez pré-linguística para as crianças. E não foram poucos, historicamente falando, os casos em que diagnósticos tardios de surdez pré-linguística induziram a diagnósticos equivocados de retardo mental. Excluídos do campo da linguagem verbal, e sem acesso à língua de sinais, muitas crianças foram consideradas retardadas sem o serem. Sacks também coloca em discussão as querelas entre aqueles que ele chama de “oralistas” e os defensores de uma educação na linguagem dos sinais para os surdos. Os oralistas partiam da crença na possibilidade do desenvolvimento da linguagem verbal nos surdos. Atrelados a uma visão normalizadora da ciência, pretendiam promover inclusão a partir da adaptação radical dos surdos ao mundo dos ouvintes. Negavam, portanto, a surdez como uma possibilidade de experiência sensorial peculiar. Toda a narrativa dá a entender que o autor do livro posiciona-se desfavoravelmente em relação à tendência oralista, e isso por razões que o resto do texto apresenta tacitamente.
O segundo capítulo, que de acordo com o autor é “o cerne do livro”, no meu modo de entender é o mais “neurológico” de todos. Isso porque é nele que Oliver Sacks apresenta um dos argumentos mais instigantes do livro: o de que a surdez proporciona uma compreensão muito interessante sobre as potencialidades do sistema nervoso humano. Na verdade, aqui o autor segue uma tendência peculiar em toda sua obra como escritor: a de que as patologias têm seu aspecto positivo, por revelar importantes elementos acerca do funcionamento da mente. Mais do que isso: elas podem ser expressões legítimas de outros modos de relação com a realidade, sem que necessitem ser “normalizadas”.
Em diálogo com a literatura médica e científica do momento, Sacks discute as implicações que as surdezes pré-linguística e pós-linguística têm para o reordenamento das funções dos hemisférios direito e esquerdo do cérebro. Seu argumento é o de que a surdez impõe uma forma de reordenamento das funções do sistema nervoso central, potencializando nos surdos certas sutilezas no processamento cortical de estímulos visuais que os ouvintes não possuem. É no contexto dessa discussão que o autor defende entusiasticamente o caráter da língua de sinais como uma língua sui generis, com estrutura gramatical e sintática próprias, e que exige processos neuronais muito peculiares. Isso coloca em cheque, segundo o autor, as visões simplistas que encaram as muitas línguas de sinais presentes no mundo como meras pantomimas relacionadas às línguas faladas.
O terceiro e último capítulo é o mais contemporâneo do livro, pois trata dos avanços políticos relacionados à surdez, especialmente no campo da Educação. Curiosamente, Oliver Sacks entende que as instituições religiosas estão entre aquelas poucas em que a linguagem dos sinais recebe a devida valorização. Há, inclusive, um relato de sua participação em um culto cristão todo realizado na Língua Americana de Sinais. Do ponto de vista das políticas públicas, a Venezuela e o Uruguai são descritos como os países latinoamericanos mais avançados nesse tocante, por apresentarem políticas voltadas para o ensino realizado na língua dos sinais para surdos.
Este último capítulo, entretanto, consiste quase que em sua totalidade em um diário de campo de um dos eventos paradigmáticos para as transformações políticas mais importantes em relação aos surdos na atualidade. Trata-se dos protestos ocorridos no ano de 1988 na instituição mais tradicional de formação universitária para os surdos nos Estados Unidos: a Gallaudet University, fundada por Edward Gallaudet ainda em 1817. Em síntese, os protestos giraram em torno da reinvindicação de um reitor surdo para a Gallaudet, o que nunca havia ocorrido em toda sua história. Os relatos coletados por Sacks, provindos das fontes à sua disposição, comparam esse evento ao Movimento pelos Direitos Civis, relacionados às políticas raciais nos Estados Unidos, na década de 1960.
Entretanto, a narrativa do protesto dos surdos na Gallaudet University, feita por Oliver Sacks, não é a exaltação da mera transformação nas relações hierárquicas de uma instituição. Com efeito, a eleição do primeiro reitor surdo na instituição universitária mais importante para surdos nos Estados Unidos remete à uma nova tomada de consciência, que consiste fundamentalmente na recusa da visão subserviente dos surdos em relação aos ouvintes e suas propostas de “inclusão”. Na compreensão de um surdo, relatada no livro por Oliver Sacks, estes devem ser considerados como “um único povo, com cultura própria, com língua própria, que os distingue das pessoas ouvintes”. O próprio Oliver Sacks, bem ao modo de um neurologista, vai falar dos surdos em todo o mundo como “um povo adaptado a outro modo sensorial”. Esse “outro modo”, tão legítimo quanto o modo-ouvinte, deve ser respeitado, e, porque não, celebrado.
Por razões óbvias o livro se dirige, em primeiro lugar, a todas as pessoas que lidam com surdos: profissionais da saúde, educadores, familiares etc. Mas eu acredito que a grande mensagem desse livro não é técnica, mas política. Isso faz com que seu público se amplie consideravelmente. Creio que precisamos lê-lo de olho em nosso próprio tempo. Desde que o livro foi escrito (1989), muita coisa mudou em relação a esse assunto, especialmente no campo das políticas públicas no Brasil. Desse modo, o livro nos ajuda a colocar em questão as formas de “inclusão” com as quais queremos nos engajar. Como se diz hoje com certa profusão, algumas inclusões são perversas. Não estão atentas à singularidade de certas experiências humanas. Incluem com base na norma, o que no fundo acirra a exclusão.
Conforme essa leitura, foi muito importante saber da existência de uma “cultura surda”, ou de uma “cultura dos surdos”. Há intelectuais surdos, escritores surdos, artistas surdos de um modo geral, e em demasia. Há comunidades exclusivamente surdas no mundo. Reconhecer a legitimidade desses outros modos de existência é fundamental para a criação de um tipo de sociedade em que ninguém seja invisível. Se o escritor sagrado dizia “quem tem ouvidos, ouça”, aqui precisaríamos dizer: “quem tem ouvidos, veja!”.
Uma última questão de caráter técnico. O livro possui ao todo 166 notas, organizadas separadamente como notas de fim. As notas do livro, em sua maioria, são explicativas, e quase sempre se alongam mais do que as próprias orações e parágrafos de onde partem no corpo no texto. A impressão que se tem é a de estar lendo dois livros. Isso pode tornar a leitura enfadonha e cansativa. Pessoalmente, eu incluiria essas notas no corpo do texto, por considerar que o conteúdo delas é fundamental às discussões apresentadas. Como é amplamente sabido, as notas de rodapé de um livro devem ser escritas de uma maneira que sejam dispensáveis. No caso de Vendo vozes, eu entendo que não são.

quinta-feira, 27 de agosto de 2015

PSICOLOGIA E ESTADO LAICO

No dia 26 de agosto de 2015 o Conselho Federal de Psicologia (CFP) realizou um debate on line com o tema A atuação da Psicologia no Estado Laico. Você pode acompnhar todo o seminário no link abaixo.


segunda-feira, 30 de março de 2015

HOLOCAUSTO BRASILEIRO - Resenha

Para a maior parte das pessoas interessadas em Ciência, um livro vale pelo seu potencial de aproximação da Verdade. Mesmo que a ideia de Verdade, em Ciência, tenha sido profundamente questionada pelas perspectivas pós-modernas como um produto de lutas pelo poder – “a verdade é deste mundo”, dizia Foucault –, Ciência e Verdade continuam formando um binômio forte. Para Karl Popper, por exemplo, não é outro o ideal da Ciência, senão o de nos aproximar sempre mais da verdade acerca das coisas. A tarefa é eterna, sem dúvida.
No meu caso, estou numa fase da vida em que um livro vale não necessariamente pelo seu potencial de aproximação da Verdade, mas pelo seu potencial de fissurar o mundo! Era Foucault também quem dizia que o pensamento serve para rachar as coisas. Trata-se de uma metáfora, obviamente. Rachar as coisas com o pensamento é desnaturalizar aquilo que, muitas vezes em nome da Verdade, foi postulado como normal, natural, essencial, imutável, ahistórico, estrutural. Rachar as coisas com o pensamento é reconstruir o roteiro histórico onde os conceitos foram forjados. Fissurar o mundo com o pensamento é denunciar os jogos de poder pelos quais a Verdade chegou ao seu trono.
Em adição a isso, minha fase também é aquela em que um livro vale muito mais pelo seu potencial estético. É necessário ser prazeroso, ser leve, ser direto, e, sem exigir demais, ter um quê de beleza e sensibilidade. Há coisas assim na Ciência! Já na cultura acadêmica e universitária... Bem, na Universidade escrevemos para os pares e para pontuar no Lattes. E todo mudo sabe que sem hermetismo não há salvação no mundo da produção científica universitária. Uma lástima e uma pena!
É por todas essas razões que eu tenho dito que o livro Holocausto brasileiro, da jornalista Daniela Arbex, foi uma das melhores experiências literárias que tive nos últimos meses.
Lançado em novembro de 2013, Holocausto brasileiro foi prêmio Jabuti – a maior condecoração literária no Brasil. Lançado pela Geração Editorial, são 255 páginas entre fotos e uma narrativa que prende como visgo de jaca dura. Li praticamente em dois fôlegos.
Daniela Arbex nos reconduz por uma página nefasta da história do Brasil, ligada à psiquiatria mineira, e especialmente ao hospital psiquiátrico Colônia, em Barbacena-MG. Ela nos conta como num lapso de 50 anos (1930-1980), 60 mil pessoas morreram no interior do Colônia. Daí a alusão a um holocausto.
Contudo, mais do que o escândalo de um número tão grande de mortes, era o modo como os pacientes eram ali tratados que justifica a referência a um holocausto. O sequestro da identidade, a submissão a tratamentos científicos arcaicos e letais (como a eletroconvulsoterapia), a exploração do trabalho forçado e gratuito, e a exposição às mais degradantes condições sanitárias e alimentares fizeram do Colônia a reprodução de Auschwitz em solo brasileiro. No auge da matança, eram 16 óbitos a cada dia. Uma parte desses cadáveres alimentava as Faculdades de Medicina da região. Com o excesso de cadáveres, os corpos eram dissolvidos em ácido no pátio central do hospício, à vista dos pacientes, para que os esqueletos pudessem ser comercializados junto às mesmas instituições acadêmicas.
A força dessas denúncias, entretanto, não é maior que a beleza das narrativas de superação de pacientes do Colônia, presentes no livro. Talvez a grande proeza do trabalho de Daniela Arbex tenha consistido em dar a palavra aos protagonistas dessa história horrível. Todo o livro é composto pela voz dessas pessoas que um dia tiveram suas vidas alijadas em nome de certas convicções científicas, terapêuticas, e em nome de uma certa visão de sociedade. Segundo a autora, mais da metade dos pacientes do Colônia não tinha diagnóstico psiquiátrico. Eram simplesmente pessoas excêntricas: meninas que engravidaram antes de casar, bêbados contumazes, esposas rejeitadas para o que os maridos pudessem usufruir de suas amantes, homossexuais, ou simplesmente alguém com uma tristeza profunda. Incrível imaginar que algumas dessas pessoas passaram a vida inteira no hospício por essas razões.
Em Holocausto brasileiro algumas delas falam. Contam sua história. Reinventam sua identidade. Falam também funcionários do Colônia: médicos psiquiatras e funcionários encarregados das tarefas diárias. Falam especialmente funcionários indignados, e que antes do movimento de Reforma Psiquiátrica tentaram resistir a uma estrutura de poder arcaica e desumanizante. Falam aqueles e aquelas que, de algum modo, tentaram enfrentar a estrutura de dentro dela, seja com ações minúsculas e capilares (micropolítica), seja no âmbito maior da política institucional (macropolítica).
Por razões óbvias, o livro interessa bastante às pessoas envolvidas com a Saúde Pública e àquelas que se ocupam do “campo psi”. Para nós, ocupados com esse campo, o livro reedita a seu modo uma pergunta suscitada pelo Conselho Federal de Psicologia, no contexto da epidemia das internações compulsórias no Brasil: “que práticas estamos endossando em nome do cuidado que queremos exercer?” Mas minha convicção é de que o livro tem uma pertinência muito maior. Como afirma a Eliane Brum no prefácio, atrocidades como a do Colônia, levadas a cabo por tanto tempo, não são possíveis sem certo consentimento social. Isso serve para todas as violações de direitos humanos!
Indico a leitura de Holocausto brasileiro com entusiasmo. Ele nos faz pensar que a loucura dos normais é muito mais perigosa e nefasta que a loucura dos loucos.
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ARBEX, Daniela. Holocausto brasileiro. São Paulo: Geração Editorial, 2013, 255p.