sexta-feira, 14 de março de 2014

ANJOS, DEMÔNIOS E PSICÓLOGOS

— “Há algum fundo espiritual nos chamados ‘problemas psicológicos’?”, me perguntou um aluno, ao término da defesa de mestrado da minha amiga Camila Teixeira.
— “A que você se refere?”, eu retruquei.
— “A essas coisas, tipo depressão, esquizofrenia, etc. Você acha que há algum fundo espiritual nisso tudo?”, ele completou.
Me acostumei a ouvir esse tipo de pergunta desde o início da graduação em Psicologia. Elas iam ficando mais frequentes, na medida em que meus colegas iam descobrindo que além de postulante a psicólogo, eu também era pastor e teólogo. Quase óbvio, por assim dizer! Agora como professor, elas continuam a aparecer, vindas de alunos que se dão conta de minhas atividades fora da universidade – embora eu não esteja atuando como pastor no momento.
O perfil desse pessoal é sempre o mesmo: jovens crentes chocados com um novo universo simbólico, onde a ciência dita a “ordem do discurso”. Jovens crentes assustados frente a professores e professoras arrogantes. Tenho identificado duas posturas preponderantes que resultam desse conflito: ou uma nova conversão à mentalidade científica, e o abandono do legado da experiência religiosa, ou a reclusão e o fortalecimento de posturas religiosas reacionárias, como fuga e compensação para os “absurdos” da mentalidade ilustrada.
— “Vamos ter essa conversa. Não agora, pois não é possível. Mas teremos essa conversa”, eu o prometi.
Mas a pergunta do rapaz, penso eu, é menos simples do que poderíamos supor. É o tipo de dúvida honesta, para quem baliza sua vida por convicções religiosas. É muito comum, sobretudo nas igrejas cristãs, que as pessoas sejam ensinadas a adotar a visão de mundo do Novo Testamento. Algumas até do Antigo Testamento, embora isso exija uma desonestidade intelectual enorme! Quem primeiro apontou para isso como um problema foi Rudolf Bultmann.
Para Bultmann, que era estudioso do Novo Testamento, adotar a fé cristã não deveria implicar na adoção da visão de mundo do Novo Testamento. Segundo esse exegeta, o Novo Testamento era portador de um kerygma, que em grego quer dizer “mensagem”. E essa “mensagem” a ser apreendida consistia fundamentalmente num chamado à conversão do indivíduo, ou seja, consistia num apelo à subjetividade. Nada mais! Em resumo, a visão de mundo presente no Novo Testamento, marcada pela mentalidade mítica e pré-científica deveria ser peneirada. No interior de cada narrativa mítica, o crente deveria encontrar a “mensagem”, sempre dirigida ao coração e à subjetividade.
Bem, o que sabemos é que para a maioria das pessoas que creem hoje, as coisas não são assim. Além da adesão à “mensagem”, a maior parte das pessoas que creem hoje acaba adotando também a visão de mundo do Novo Testamento. Na verdade, para a maioria dessas pessoas não há qualquer separação entre uma coisa e a outra. O mundo habitado por humanos, anjos e demônios do Novo Testamento continua vigente. E é isto que fundamenta a ideia de um “fundo espiritual” para problemas psicológicos. Afinal, a crença central aí consiste na certeza não apenas da existência de entes supranaturais, mas principalmente na capacidade e na regularidade interventora desses entes na presente ordem de coisas.
O Novo Testamento, e sobretudo os Evangelhos, são prolixos em narrativas de possessão por demônios, cuja fenomenologia estaria muito próxima de sintomatologias próprias de certos transtornos mentais. Uma conclusão apressada, mas muito corriqueira, consiste em dizer que essa maneira de encarar as coisas tais como temos no Novo Testamento – isto é, atribuir a origem de enfermidades físicas e mentais à influência de entes supranaturais – era própria de uma mentalidade mítica, e deveria ser superada pelas descobertas de uma mentalidade científica. A mentalidade científica, por se referir à etiologia orgânica (portanto “natural”) desses fenômenos, seria desmistificadora. Não foi a toa que Bultmann deu o título de Demitologização a um de seus ensaios mais famosos.
Dessa perspectiva, a resposta ao meu aluno estaria pronta:
— “Não, não há nenhum ‘fundo espiritual’ nos problemas psicológicos atuais, visto que nossas disciplinas científicas demonstraram o caráter orgânico e natural de sua etiologia”.
Não há problema algum na assunção de tal postura. No entanto, ao assumi-la, precisamos reconhecer que nos inscrevemos num certo de regime de discursividade onde a ciência possui o status de saber régio. E inscrever-se num certo regime de discursividade, e não em outro, tem implicações importantes no que tange a questões bem práticas de nossa vida. Por exemplo, assumir o regime de discursividade do Novo Testamento relativo às questões de saúde mental dificilmente me proporcionaria o ingresso como docente em um curso universitário de Psicologia. A Universidade, enquanto instituição social, funciona a partir de uma ordem do discurso muito precisa. A ciência, neste caso, constitui-se como regime discursivo no qual é preciso transitar. E isso, do ponto de vista da organização social, é bastante idiossincrático no Ocidente.
Mas além dessas questões, que são da ordem da relação entre saber e poder, nosso problema também se filia a dificuldades de ordem epistemológica. Será que realmente “nossas disciplinas científicas demonstraram o caráter orgânico e natural da etiologia dos transtornos mentais”? Como diria o filósofo norte-americano Richard Rorty, as palavras da ciência são de fato um “espelho da natureza”? Ou, como diria o filósofo francês Michel Foucault, as palavras – todas elas – não seriam uma “forma de violência que fazemos às coisas”?
Bom, não resta dúvida que as explicações científicas, em todos os campos, e também no campo dos fenômenos ligados à saúde mental, gozam de um status privilegiado em nosso tempo. Mas se filiarmos epistemologia e política, como fizemos ligeiramente acima, teremos que admitir que as explicações científicas, muito mais do que serem um reflexo objetivo da realidade, são formas discursivas que produzem mundos. O caso dos fenômenos ligados à saúde mental é farto de exemplos. A própria noção de “loucura” seria um deles. Muito recentemente na história do Ocidente a loucura tornou-se uma “patologia mental”. Atualmente, fala-se cientificamente da loucura com categorias diferentes das presentes na psicopatologia.
Portanto, eu diria ao meu caro aluno:
 — “O problema não diz respeito apenas às diferentes possibilidades de dar sentido a um fato. As diferentes possibilidades de dar sentido a um fato estão ligadas a diferentes regimes de discursividade. E cada regime de discursividade se relaciona de modo diferente com cada contexto histórico e social. O lugar que ocupamos aí tem implicações práticas e imediatas na nossa vida. O regime discursivo dos psicólogos e psicólogas acerca do tema tem nuances e efeitos concretos diferentes daquele dos sacerdotes. E esse é um cálculo que cada um precisa fazer por si mesmo. Mas eu concordo que na atualidade, anjos e demônios ajudem a angariar fama e dinheiro, talvez muito mais que teorias científicas”. 

terça-feira, 4 de março de 2014

NA EPIDERME DO COTIDIANO


Encontros e desencontros. A vida da gente bem que poderia ser resumida assim. Completamente sem querer eu encontrei Antonio Marcos – que é um pseudônimo – guardando carros à noite, num estacionamento da orla de Jatiúca. Antonio Marcos tem 34 anos de idade, é do interior de Alagoas, mas vive sozinho, segundo ele, em um barraco na favela do Brejal, aqui em Maceió. É solteiro, mas vive um romance de quase dez anos com uma mulher dez anos mais velha. É que segundo Antonio Marcos, “menina nova não sabe de nada!”.

Voz mansa e bem articulada, Antonio Marcos me disse que não gosta de drogas, mas curte uma cachacinha de tempos em tempos. Ninguém é de ferro! É que é preciso trabalhar pra dar conta da vida. E Antonio Marcos vende cerveja na praia. Mas para tanto, ele primeiro cata as latinhas usadas deixadas no chão e as vende. Um quilograma, segundo me contou, custa em média R$ 2,50, ou na melhor das hipóteses R$ 3,00. Com o dinheiro, compra cerveja em lata e as vende em dia de sol. Depois cata as latas de novo... E assim a vida vai caminhando, não em círculos, mas sempre pra frente.

Eu encontrei Antonio Marcos sentado em seu carro de mão, feito de madeira e pneus de verdade, usados. Na verdade, não era dele propriamente. Ele havia tomado emprestado de um amigo. Antonio marcos me dizia que bom pra guardar carros mesmo é durante o dia. E me explicou. No carro havia várias folhas de papelão, que eu julguei que também tivessem sido catadas para a venda. Nada disso. As folhas de papelão cobrem os parabrisas dos carros, pra diminuir o calor dos motoristas. Com o papelão, me dizia Antonio Marcos, o trocadinho é garantido. Mas a noite, sem calor e sem papelão, me confessava ele, poucos querem deixar o trocadinho.

Antonio Marcos precisava de R$ 100,00 pra terminar seu barraco no Brejal. Foi por isso que ele decidiu esticar o expediente até a noite. De fato, eu não sei ao certo a distância que separa o Brejal da Jatiúca. Mas suponho, bem por baixo, que devam ser uns 10 km. É esse o seu percurso, empurrando o carro de mão emprestado do amigo, catando as latinhas de cerveja do caminho, para guardar carros à noite, à espera de trocados possíveis, mas não certos. E sem “moral da história”. Porque o que a vida tem a ensinar está na superfície dos fatos, na epiderme do cotidiano, e não oculto nas profundezas de nossas quase sempre hipócritas “morais da história”.