sábado, 20 de setembro de 2014

FÉ E CULTURA UNIVERSITÁRIA

Na semana que se passou, por meio de um processo de orientação de trabalho de conclusão de curso, o tema das relações entre religião e ciência reapareceu para mim. Duas estudantes do nono período de Psicologia da UFAL decidiram enfrentar o preconceito de tomar a religião como um objeto de estudos em seu TCC.

Sim, falo em preconceito porque na minha forma de entender, há uma obsessão tão arraigada na cultura universitária por distanciar-se da religião, que mesmo como um objeto de investigação científica ela se tornou maldita. Maldita como matriz cultural da conduta e do pensamento dos sujeitos, e maldita como objeto de investigação.

Mas atenção! Uma ressalva a ser feita é que tal maldição parece ter a ver especialmente com o Cristianismo, uma vez que outras matrizes religiosas – a africana, por exemplo – gozam de certo flerte por parte da Universidade Pública.

Mas justiça seja feita. Tudo isso é justificado com a explicação de que o Cristianismo, enquanto religião ocidental hegemônica, estaria associado a subjetivações e a formas de exercício de poder opressoras. Há muita verdade nisso, embora essa percepção continue simplista e reducionista na forma de conceituar o potencial ambivalente de qualquer religião. Joga-se fora a água suja da bacia, junto com o bebê.

Alguém informou às duas concluintes acerca do meu caso com a religião, e elas vieram a mim em busca de orientação para o seu trabalho. Elas querem compreender um fenômeno que também já fisgou a minha atenção, mas que nunca cheguei a investigar: a presença de grupos de oração no campus, e seus efeitos na formação acadêmica dos seus frequentadores. Querem realizar uma pesquisa qualitativa, utilizando grupos focais como uma ferramenta de produção de dados.

Como deve ser de conhecimento geral, esse tipo de presença religiosa nos diversos campi universitários não se trata em hipótese alguma de um fenômeno novo. Há muitos anos diferentes grupos, oriundos de diferentes confissões religiosas e voltados para diferentes objetivos, marcam presença nas universidades. Alguns exemplos famosos são a ABU (Aliança Bíblica Universitária) e o grupo Alfa & Ômega, ambos voltados para a evangelização e aproximação de estudantes que compartilham a mesma fé. No meu modo de entender, esses grupos acabam funcionando também como um reforço contra as “investidas” da mentalidade acadêmica sobre a fé dos estudantes crentes. Afinal, a ciência também é um tipo de discurso a constituir subjetividades!

Mas ainda que não se trate de um fenômeno absolutamente novo, o momento atual traz certas peculiaridades. Parece-me que um fato dessa natureza deve ser compreendido em referência com coisas maiores. Refiro-me ao que Jürgen Habermas chamava de “ressignificação política da religião”, que ocorre em todo mundo de diferentes formas. Essa retomada da potência política do discurso religioso é, a meu ver, um dos vetores da crise público/privado em todo mundo. Um número considerável de estudos das ciências humanas e sociais tem investido esforços para a compreensão dessa crise, promovida pela religião, no âmbito das políticas de Estado. Falo da crise atual do Estado Laico. Meu trabalho de mestrado, entre outras coisas, flertou com esse debate.

O trabalho das formandas pode trazer contribuições interessantes a esse papo, pois se posiciona em um ângulo diferente, até então pouco explorado. O que significa o aumento de grupos religiosos para a Universidade? Que papel eles exercem nesse contexto? Eles servem apenas como defesas coletivas contra as “tentações” da academia? Que relações instituídas eles contestam? Que implicações têm para a formação acadêmica e profissional? O que o fortalecimento dessa presença significa para a compreensão de nossa cultura contemporânea?  
  

Andam dizendo ultimamente que “Deus não está morto”. Além das tribunas legislativas, ele decidiu fortalecer sua presença também em um dos templos da ciência contemporânea? 

domingo, 31 de agosto de 2014

FÉ VERSUS CIÊNCIA HOJE



Não se pode dizer de jeito nenhum que o assunto “fé versus ciência” seja algo desgastado e ultrapassado. Em minha opinião, é um dos debates mais importantes da agenda contemporânea.

Há alguns anos, esse assunto era discutido a partir do cruzamento frontal das ideias religiosas e científicas, quando se tratava de um mesmo objeto. Por exemplo, o objeto “vida no planeta” foi alvo de intensas querelas entre ideias criacionistas, vindas da religião, e evolucionistas, vindas da ciência.


A importância contemporânea desse debate, contudo, tem outras configurações. No lugar do cruzamento direto entre ideias divergentes acerca dos mesmos objetos, esse debate se dá pela mediação da arena político-estatal. E então um aspecto pragmático se impõe, pois não se trata mais de discutir ideias apenas.


Trata-se agora de utilizar ideias dentro de certas estratégicas políticas, e assim modular a vida social. A forte presença de atores religiosos nos parlamentos atuais produz um jogo intenso de forças, em que tanto a religião quanto a ciência servem como estratégias discursivas para a produção de certas políticas públicas. Tomando novamente o exemplo do objeto “vida no planeta”, hoje essas disputas se traduzem no conteúdo a ser ensinado nas escolas.


Aquilo que era considerado como um domínio relativamente pacífico da ciência, passa a ser disputado também por discursos religiosos na arena política. Ou seja, o objeto “vida no planeta”, antes pautado pelo conhecimento científico nas escolas, passa a ser disputado pela religião, através da mediação parlamentar. Como o Estado é laico, um mundo de enfrentamentos se produz.


E dentre a pluralidade que marca o campo religioso, especialmente no Brasil de hoje, quem disputa esses terrenos com a ciência por meio da política são atores ligados aos Cristianismos.


Mas essa é só mais uma perspectiva para se encarar a atualidade do assunto “fé versus ciência”. Na verdade, essa é só uma das muitas possibilidades de se enunciar a relação entre esses dois conceitos. Obviamente, o versus não é a única forma de ligar esses domínios.


A partir da atividade docente, meu olhar tem estado atento a como o assunto “fé versus ciência” modula os processos de ensino-aprendizagem na educação de nível superior. As alterações nas configurações religiosas do país têm produzido fenômenos muito interessantes, pelo menos a meu ver. Essas alterações não têm a ver apenas com o notável crescimento dos grupos evangélicos. Me parece que esse crescimento produz outros fenômenos a ele ligados, e ainda pouco refletidos. Um deles, pensado a partir do contexto da educação de nível superior, é a necessidade da demarcação da identidade religiosa dos estudantes.


Os grupos evangélicos têm como uma de suas características a necessidade de profissão pública de sua identidade religiosa, exposta discursivamente de diversos modos: nas falas cotidianas, na musicalidade consumida, em objetos de mercado como roupas, adesivos em carros etc. Por tabela, isso produz a reação e o fortalecimento da identidade de outros grupos religiosos, como os católicos ou as religiões de matriz africana. É parte da paisagem urbana na atualidade frases do tipo “Sou feliz por ser católico”, por exemplo, presente nos carros e nas roupas. Tive vizinhos que estampavam adesivos nas portas de seus apartamentos com os dizeres: “Aqui mora uma família de missionários católicos”.


Parto da hipótese de que essas alterações todas têm produzido efeitos diretos nos processos educativos com os quais convivo, alusivos ao ensino superior. Mas, como o problema se configura nesse contexto?


Dispensável dizer que a Universidade – públicas e privadas – está entre as principais instituições modernas responsáveis pela massificação da chamada “cultura científica”. Nos Estados modernos, outra de suas funções é formar a expertise relativa às demandas profissionais da sociedade. Há toda uma discussão de como a Universidade funciona como aparelho ideológico do Estado, reproduzindo as assimetrias sociais e funcionando como agente mantenedor das mesmas. Passo ao largo desse importante tópico, assumindo apenas o fato de que elas são espaços importantes de massificação da cultura científica.


É oportuno deixar claro que essas observações têm estreita relação com o ocorre no campo das ciências humanas e sociais, embora eu não duvide que tais problemas surjam em outros domínios da vida universitária.


Refiro-me especialmente aos conflitos epistemológicos que surgem quando um mesmo objeto faz convergir diferentes abordagens, oriundas do campo científico e da filiação religiosa dos estudantes. Não acho que os processos de ensino-aprendizagem devam ser isentos de tensões. Mas esse é um tipo de tensionamento diferente, que vai se tornando cada vez mais recorrente, à medida que as identidades religiosas vão se empoderando no interior da academia.


Tema instigante, que mereceria um pouco mais de foco, e que buscarei refletir nos próximos textos.

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

COMUNIDADES DA RESISTÊNCIA E DA ESPERANÇA

Sermão pregado na Igreja Bastista do Pinheiro (Maceió-AL), em 27 de agosto de 2014, pelo meu amigo Pr. Peter Jb Carman, pastor na igreja Emmanuel Friedens, na cidade de Schenectady, estado de Nova Your (EUA). A tradução é minha.

***

Leiamos Êxodo 3,1-15

Amados irmãos e irmãs, desde nosso último encontro há um ano e alguns meses atrás, muita coisa mudou em minha vida. Muito recentemente eu questionei um chamado para ir a uma pequena e desafiadora igreja no norte dos EUA, na pequena cidade de Schenectady, estado de Nova York. Isso significava deixar a igreja Batista de Binkley, na Carolina do Norte: não foi uma decisão fácil. Eu trago a vocês as saudações da minha nova igreja, a igreja Emmanuel Friedens, uma igreja localizada na periferia da cidade, de um lado, e uma vizinhança desafiadora, do outro lado. Desejo que vocês orem pela minha ex-congregação, a Igreja Batista de Binkley, já que eles começaram o processo de transição em busca de um novo pastor. Eu sou muito grato por ter servido à igreja de Binkley, e oro para que a relação entre Binkley e a IBP continue a crescer e a florescer nos próximos dias.

Assim como antes, estou extremamente grato pelo fato de que a minha aliança com os pastores Wellington e Odja continua pessoalmente, como seguimos peregrinando na fé, cada um em seu próprio contexto. A amizade e o Evangelho conhecem poucos limites. E vocês são liderados nessa congregação por um notável pregador e uma notável educadora, dois distintos pastores.

Há algumas poucas semanas atrás eu tenho refletido no grande pacto que nos mantem ligados como companheiros de Jesus, no Pinheiro, na Carolina do Norte e em Schenectady em Nova York. Dirigindo por muitos quilômetros com os pastores Wellington e Odja, visitando com a Aliança de Batistas igrejas no Rio de Janeiro e a família Santos/Barros na bela cidade de Aracajú – tudo isso tem me dado a possibilidade de refletir sobre o que somos chamados a fazer e ser na igreja de Jesus.

Numa das conversas que eu tive com o irmão da Prª Odja, o Cícero, ele me questionou sobre o que eu faço e sobre o que eu tenho feito. Por um lado eu disse a ele: “Eu sou apenas um pastor”. Nessa hora, Prª Odja deixou de ser uma boa intérprete e acrescentou alguns comentários... palavras amáveis, eu acho. Mas, naquele momento, me ocorreu que o que fazemos sendo “apenas pastores”, em igrejas como essa e como a minha, é um enorme privilégio. E naquele minuto, sentado na varanda dos fundos da casa dos pais de Odja, minha mente viajou pensando naquilo que ela e seu irmão tinham falado. Igrejas como a de vocês e a minha são uma das coisas mais belas nesta vida. Eu tenho muito prazer em ser apenas um pastor – compartilhar o trabalho duro e encantador de criar comunidades intencionais – comunidades que criam uma alternativa ao status quo, comunidades cheias de amor. Comunidades que dão testemunho! Para nós que seguimos nesse caminho árduo, dar testemunho não apenas com palavras, mas com a maneira com que tratamos todas as pessoas à nossa volta.

Semana passada, um pastor muito bom – apenas um pastor – morreu na cidade onde moro, no estado de Nova York. Padre Michael Hogan, um sacerdote católico, foi o pastor da igreja na rua onde moro. Desde que eu cheguei ali recentemente, ele e eu tínhamos nos visitado apenas duas vezes, cada visita de uma hora, mas ambas foram conversas memoráveis. A segunda visita foi uma semana antes de eu vir para o Brasil, quando ele me contou sobre sua morte iminente por causa de um câncer – um assunto que ele tratou de forma aberta e com humor.

Por que eu estou mencionando esse homem agora? Porque nos últimos 15 anos ele organizou, orou e cuidou de pessoas em nossa cidade. Ele fez amizade com pessoas com transtornos mentais, trabalhou com adultos viciados em drogas, adotou jovens desabrigados, e abriu um centro que ajudava as pessoas pobres da vizinhança. Ele se engajou no trabalho ecumênico com Metodistas e Batistas. Oh, e para o pior ou para o melhor, ele me convenceu a ir para aquela cidade. Foi isso que ele fez. Ele me contou uma história de como as pessoas da comunidade viam os policiais pegando dinheiro dos traficantes de drogas. Agora nossa comunidade tem muito medo, pois não há mais nenhum pastor para assumir essa situação.

Então o Padre Hogan, que não tinha medo de nada, reuniu pastores de todo tipo em nossa área. Eles foram falar com o delegado. Na cidade de Schenectady, Nova York, todo mundo já sabia que o departamento de polícia era corrupto – naquele tempo. O delegado começou a gritar quando os pastores foram a ele dando nomes aos bois. Então o Padre Hogan e os demais foram ao prefeito. O prefeito não faria nada. Então o Padre Hogan e os outros pastores, Negros, Latinos e Européio-americanos foram ao governo do Estado de Nova York. Agora me deixem lhes dizer: eu não quero fazer generalizações sobre o governo do nosso Estado, mas o Estado também se recusou a agir. Então finalmente o Padre Hogan e outros ministros chamaram as autoridades federais.

O delegado da nossa cidade foi levado a uma prisão federal, acusado de corrupção. Aparentemente, ele também tinha aproximações com os traficantes de drogas. Hoje as coisas não estão completamente melhores em Schenectady, mas o departamento de polícia não está mais recebendo qualquer tipo de suborno. Eu não tenho um grande amor pelas autoridades legislativas federais dos EUA. Mas eu estou grato pelo fato de que o Padre Hogan tenha colocado um mau delegado fora de circulação, insistindo em trazer a corrupção à luz, sem se preocupar com a sua própria segurança pessoal. Eu creio que ele não fez isso por causa de justiça própria, mas porque ele via muitas vidas arruinadas e ceifadas pelo tráfico de drogas.

Vocês e eu vivemos em diferentes situações, mas nós estamos tentando fazer as mesmas coisas. Nós estamos tentando criar comunidades de resistência: nós resistimos à ascensão de uma ordem mundial construída sobre o lucro, a ganância, que usa pessoas como meros meios para certos fins. Nós resistimos a um tipo falso de fé que fala do céu enquanto ignora o pobre sobre a Terra. Jesus de Nazaré chamou seus seguidores para um caminho diferente, tal como ele disse na história do homem rico e do pobre Lázaro. O único “evangelho da prosperidade” que Jesus quis foi aquele que compartilha, cada um dentro da sua possibilidade, de acordo com as necessidades de todos.

Por muito tempo, nós ministros Batistas temos ensinado que a fé é apenas um compromisso individual com Jesus. Eu concordo que um compromisso individual de seguir a Jesus como estilo de vida, o caminho da cruz, o caminho do amor revolucionário – deve nos levar a ser uma comunidade alternativa, uma comunidade que resiste ao mal institucional e vive a esperança. Você crê em um novo jeito de fazer negócios, um novo jeito de sermos humanos, homens e mulheres de várias raças, tamanhos, formas e orientações, todos ligados pelo amor. Em Cristo, Paulo nos lembra em Gálatas, nós somos uma nova criação, nem judeus nem gentios, escravo ou livre, macho ou fêmea. No corpo de Cristo não há distinção entre Católicos e Batistas, homens e mulheres, rico e pobre, nem qualquer outro status social arbitrário.

Nós conhecemos em nossos ossos o que significa seguir a Jesus. Sabemos que isso significa partilhar uma mensagem de amor libertador, com nossas mentes, colocando nossos corpos à disposição, e com nossas ações e testemunhos coletivos.

Eu lamento profundamente que um dos meus melhores novos amigos, Padre Hogan, tenha morrido antes dele e eu trabalharmos juntos. Mas, algo maravilhoso do Corpo de Cristo é que nosso testemunho é comunitário, e que não importa o que aconteça, em Cristo ele terá êxito. Um sacerdote católico morre, outro ministro Batista que partilha de suas preocupações segue em frente. Para nossas igrejas locais isso é bom. Um membro da igreja é chamado pra casa, um outro toma a frente. E depois de dois mil anos a revolução de Deus está apenas começando.

Sua congregação é uma lâmpada elétrica, onde a tomada foi acessa. Não subestime o impacto de uma pequena luz na escuridão. O amor libertador de Deus brilha em sua vontade de ser solidário com seus vizinhos, e com as pessoas nas comunidades rurais e nas favelas. Sua vontade de discutir temas difíceis abertamente e de estar aberto para mudar na fé – essas coisas brilham. Essa luz, essa resistência, esse testemunho, essa oração, essa esperança – é isso que nós partilhamos. Uma pequena luz pode não parecer muita coisa. Mas, uma vez que a tomada de Jesus foi ligada, ela não pode ser desligada. Ela pode ser vista, mesmo quando nós achamos que ninguém está prestando atenção.

Graças a Deus por essa congregação aqui em Maceió e por sua presença em Alagoas. Graças a Deus pela chama sagrada que queima incessantemente no deserto, sinais de Deus para a libertação das pessoas.

Amem!

segunda-feira, 21 de julho de 2014

O QUE APRENDI COM RUBEM ALVES

Pode parecer incrível, mas detestei o meu primeiro contato com a obra do Rubem Alves. Era 1999. Eu estava no primeiro ano da graduação em Teologia. Estava encantado com a “objetividade” da linguagem acadêmica, com o flerte da Teologia com as Ciências Humanas e com a Filosofia. Estava entusiasmado com a linguagem hermética, conceitual, e porque não, pedante, dos teólogos que fui encontrando. Eu estava embriagado com a gravidade e solenidade dos teólogos clássicos, muitos dos quais respondiam a perguntas que ninguém fez.
Quando na minha mão chegou o livro Pai Nosso, do Rubem Alves, eu detestei. Era poético demais. Não parecia científico. Não parecia sério, solene, grave e rotundo, como as Teologias Sistemáticas que já faziam minha cabeça à época. Não parecia Teologia. O resultado foi que não li nada do Rubem Alves por cinco anos, mesmo sabendo que Protestantismo e repressão, por exemplo, satisfaria melhor minhas expectativas de jovem seminarista. Uma antipatia idiota estava formada. Graças a Deus, não consolidada!
Cinco anos depois desse primeiro contato não sei por que decidi ler Protestantismo e repressão (rebatizado posteriormente como Religião e repressão). Por se tratar de uma tese de livre docência, esse livro fora escrito em linguagem acadêmica, repleto de notas de rodapé e de referências a trabalhos científicos. Ah, até que enfim! Apesar da pretensão do título, quem leu a obra percebe que se trata de um estudo de caso relativo à Igreja Presbiteriana do Brasil, matriz religiosa do autor. Curioso é que o próprio Rubem, prefaciando esse livro 30 anos depois, se desculparia com seus leitores por escrever um livro tão chato, e em linguagem erudita.
A partir daí eu fui saltando aleatoriamente por muitos dos seus livros, mas com um foco especial na fase das crônicas. Não consigo enumerar nem recordar todos os títulos. Mas foram dezenas deles, sendo devorados com certo desespero! O que houve? Eu simplesmente fui fisgado pelo sabor do texto alvesiano. Ocorreu que eu quis saber também da vida daquele sujeito. E descobri a complexidade da obra e vida desse autor, desconhecida para muitos dos seus leitores.
Descobri um primeiro Rubem Alves, ou, como chamaria o Leandro Cervantes-Ortiz inspirado em Bachelard, umRubem Alves diurno. É o Rubem Alves das primeiras publicações, a contar de sua tese de doutorado Towards a Liberation Theology, publicada em português como Da esperança. Também dessa fase, Tomorrow’s child, em português A gestação do futuro. Em seguida li O enigma da religiãoDogmatismo e tolerância, O suspiro dos oprimidos, Variações sobre a vida e a morte O que é religião (Coleção “Primeiros Passos”).
O Rubem Alves diurno é um teólogo preocupado com a emancipação humana por meio da atividade política, e um filósofo da religião preocupado com os efeitos do discurso religioso em sua relação com a construção social da realidade. É um teólogo acadêmico. Escreve para esse público. Dialoga com os autores da academia no enquadre de seu tempo.
Depois descobri um segundo Rubem Alves, ocupado com os temas da educação. Conversas com quem gosta de ensinar parece ser crucial para entender essa fase. A alegria de ensinarEstórias de quem gosta de ensinar,Entre a ciência e a sapiência, A educação dos sentidosFomos maus alunos (com Gilberto Dimenstein) e A escola da ponte estão situados nesse momento. De certa forma Filosofia da ciência também. Esse é um dos meus preferidos até hoje!
Aqui vigora um Rubem Alves muito menos preocupado com os rituais da escrita acadêmica. Já se trata de um autor livre dessas amarras. Seu objeto, muito mais que os famosos “processo de aprendizagem”, são os processos de “ensinagem”, como dizia. Fazer do saber algo saboroso é sua obsessão nesses livros todos. Os professores são seus interlocutores fundamentais aqui!
Um terceiro Rubem Alves, esse o mais conhecido, é o cronista do cotidiano e um incansável louvador da beleza que existe em todas as coisas. Aqui eu não consigo enumerar os incontáveis títulos dedicados a essa tarefa. Apenas diria que Tempus fugit parece abrir esse momento de sua carreira literária. Dessa fase, li primeiro O amor que ascende a lua. Depois perdi a conta...
Aqui escreve um Rubem Alves rendido incuravelmente à poesia. E eu não posso negar que quase todos os autores e autoras da literatura estrangeira e nacional que hoje aprecio, eu os tenha conhecido por meio das crônicas do Rubem Alves. Alguns deles são a Adélia Prado, Cecília Meireles, Guimarães Rosa, o próprio Fernando Pessoa, T. S. Eliot, Whalt Whitman, Milan Kundera, Gaston Bachelard, Paul Valery, Herman Hesse, entre outros tantos. Não que eu tenha tomado conhecimento da existência desses autores com o Rubem Alves. Mas foram suas crônicas que me catapultaram para a leitura deles.
Eu devo muito coisa ao Rubem Alves. De longe é o teólogo que mais li, entre brasileiros e estrangeiros. Não vou conseguir traduzir tudo nesse texto. Mas considero fundamental dizer que foi com esse autor que me dei conta dos limites da pretensão do discurso religioso. Com Rubem Alves me dei conta de que o discurso religioso é mais um entre tantos discursos a disputar a subjetividade humana. Reconhecer isso não fez de mim necessariamente um ateu. Mas me ajudou muito a colocar os pés no chão, a relativizar a mim mesmo como uma pessoa religiosa, e a reconhecer o potencial de bondade presente em outras tradições diferentes da minha.
Devo a esse autor a capacidade de percepção da beleza presente em coisas banais. E mais do que isso: a capacidade de ver o divino nelas. Numa tradição que exalta o sofrimento como escada para a bem-aventurança, como o é a tradição cristã, é impossível não se render a um autor que elege a beleza, o prazer, a leveza, o erotismo, o efêmero, como formas de louvor, e como fins em si mesmos. Rubem Alves defendeu uma religião de levezas. Afinal, como amar a um Deus que fica feliz com “cascas de feridas?”, dizia sempre. Por tudo isso devo a esse autor a construção de uma espiritualidade descomplicada. Não imoral. Mas muito mais leve do que essas sustentadas em moralidades de fachada, e portadoras de fardos insuportáveis.
Eu comecei a me exercitar na escrita imitando o Rubem Alves. Logo eu notei que aquele não era o caminho a seguir. A escrita gostosa do Rubem, especialmente essa presente nas crônicas, era fruto de um longo e árduo caminho. Era essencialmente fruto do cansaço com a linguagem hermética da academia, que ele dominou muito bem por muitos anos. Mas Alves queria falar às crianças. E foi esse desejo que produziu um modo de escrever tão peculiar. Eu me dei conta de que esses caminhos não são reproduzíveis. Eles são parte da biografia de cada um. O próprio Rubem Alves cansou de dizer que se tornou escritor porque deu tudo errado em sua vida. Mas no começo eu quis escrever como ele. Nunca consegui. Ainda assim, se escrevo o que escrevo, devo em muito à obra desse autor.
Mas não aprendi apenas lendo seus livros. Sua biografia também me ensinou muito. Especialmente a reconhecer que descaminhos podem ser possibilidades fantásticas. Frustrações podem ser potencialmente enriquecedoras. Fracassos podem ser portas para o sucesso. Rubem Alves foi pastor na juventude. Perseguido por sua própria igreja, exilou-se nos Estados Unidos. De volta ao Brasil, tornou-se professor universitário, depois psicanalista. Sempre andando na contramão dos narcisismos grupais, tornou-se um dos intelectuais mais respeitados do Brasil exatamente porque muita coisa deu errado. Permitiu-se renascer muitas vezes, como uma metamorfose ambulante, diria Raul. Isso me ensina muito.
Guardo com muito carinho um autógrafo concedido pelo Rubem a mim no auditório da Biblioteca Central da UESC (Universidade Estadual de Santa Cruz – Ilhéus-BA). Eu estudava Filosofia por lá nessa época. O Rubem Alves foi dar uma palestra para crianças, e autografou O suspiro dos oprimidos.
Por tudo isso – que expressei muito imprecisamente aqui – um tributo ao mestre Rubem Alves. Que viva para sempre naqueles e naquelas a quem ajudou tanto a ver a vida com mais beleza, leveza e alegria!

sábado, 24 de maio de 2014

MARISA E OS LOBOS

O processo corria em sigilo, mas graças à defesa pública feita pelo senador Magno Malta em relação à psicóloga Marisa Lobo, o tema da cura psicológica dos homossexuais ocupou outra vez uma parte da mídia nacional. Marisa teve seu registro profissional caçado pelo Conselho Regional de Psicologia do Paraná. Pesa sobre ela as acusações de infração de dois artigos da resolução 001/1999, do Conselho Federal de Psicologia (CFP). Os artigos vedam aos psicólogos e psicólogas quaisquer ações profissionais que estigmatizem os gays, lésbicas, transexuais etc., tais como terapias de reversão da orientação sexual.
Marisa é protestante, e em seu site apresenta-se como “psicóloga cristã”. Defende a possibilidade de reversão de certas orientações sexuais como um “direito humano”, semelhante àquele ligado aos direitos da chamada democracia sexual. O núcleo de seu argumento consiste em que se os sujeitos desejam deixar a condição homossexual, lésbica, transexual, etc., por “livre vontade” e porque isso lhes acarreta sofrimento psíquico, o profissional de Psicologia deve auxiliá-los nesse processo. Esse seria um direito da pessoa, adjetivado por Marisa como um “direito humano”. Não haveria, segundo a psicóloga, um processo de cura propriamente dita, uma vez que as expressões de uma sexualidade heterodivergente não constituem doenças, ainda que ocasionem profundo sofrimento psíquico a um número considerável de sujeitos.
Marisa entende que o processo impetrado contra ela é a expressão de um preconceito religioso, que ela descreve com o neologismo “cristofobia”. Ao pronunciar-se assim, ela assume que sua prática profissional está eivada por elementos de sua religião. Me parece que o que temos nesse caso, são motivações religiosas levadas à cabo por um campo de ação profissional, o que não é nada raro. É enorme o número de profissionais nos mais variados campos de atuação e motivados por orientação religiosa, especialmente no campo da saúde. A meu ver, até aí nenhum problema.
O problema, assim como o vejo, se instala quando há um conflito de nível epistemológico entre a motivação religiosa e o campo de conhecimentos que embasam as práticas profissionais. Aliás, essa é uma discussão que ainda não vi ser feita desde que esses embates foram ficando cada vez mais frequentes no Brasil.
Cada campo de atuação profissional regulamentado é embasado teórica e epistemologicamente por um corpo de conhecimentos mais ou menos consensuais, dentro de certo espaço-tempo. Esses conhecimentos, como se sabe, estão sempre sob vigilância crítica e em constante movimento. Para isso servem as pesquisas, os congressos, os encontros, os simpósios etc. Nesses espaços, a comunidade científica vai se atualizando acerca do que está ocorrendo em cada área, no nível da produção e da renovação do conhecimento. Compete ao profissional acompanhar esse movimento, dentro de suas possibilidades. Contudo, o que se nota é uma importância dada a isto no tempo da formação universitária, sucedida por um certo acomodamento depois do ingresso na prática profissional.
Não obstante essa renovação constante no campo teórico e epistemológico, cada área de atuação profissional regulamentada está embasada por um conjunto de saberes normativos cuja função é organizar a atuação profissional em certo espaço-tempo. Sem isso, nenhuma atuação consistente seria possível, em função do caráter cambiante do conhecimento.
A Psicologia, por seu vínculo ao campo da saúde, adota os parâmetros estabelecidos pelas convenções da Organização Mundial de Saúde (OMS). A despatologização de certas orientações sexuais está expressa nos dois grandes documentos normativos, um generalizante, e o outro ligado ao campo da saúde mental, que são a CID-10 e o DSM-V, respectivamente. A CID-10 é décima versão do Catálogo Internacional de Doenças, e o DSM-V é a quinta versão do manual diagnóstico dos transtornos mentais. Em síntese, esses dois documentos normativos expressam o consenso atual de despatologização de condutas sexuais consideradas anteriormente como patológicas, como a homossexualidade, por exemplo.
A aludida resolução de 001/1999 do Conselho Federal de Psicologia busca alinhar as diretrizes profissionais da Psicologia no Brasil a esses consensos internacionais. É claro que há intensa movimentação política por trás de todo esse processo. A despatologização de tais condutas é tanto um movimento de caráter epistemológico quanto político. Ingênuo é pensar que não seja assim que as coisas acontecem no campo da ciência.
O resultado disso é o seguinte: não há qualquer fundamentação teórica e epistemológica válidas na atualidade que sustentem a reversão de quaisquer condutas sexuais. Do ponto de vista da saúde mental, essa possibilidade só pode ser acionada de dois modos: (1) ou o profissional opera uma bricolagem grosseira entre elementos da ciência e da religião; (2) ou ele aciona conhecimentos que já não são válidos dentro dos consensos epistemológicos que embasam sua atuação. Nos dois casos ele comete equívocos graves de natureza ética e epistemológica. O caso da psicóloga Marisa Lobo me parece ser o da primeira opção.
Não se nega o fato de que os sujeitos apresentem sofrimento psíquico decorrente de uma condição sexual contrária à norma socialmente hegemônica. Neste caso, como o(a) psicólogo(a) clínico(a) poderá oferecer seu serviço a este sujeito, sem infringir as disposições normativas e epistemológicas de sua categoria?
A honestidade profissional levará o psicólogo e a psicóloga a negar qualquer possibilidade de reversão da orientação sexual com base em conhecimentos científicos atuais, ainda que o sujeito lhe procure no desejo de mudar sua sexualidade. Não havendo parâmetros epistemológicos válidos na atualidade para tal investida, essa possibilidade lhe está vedada na prática. Um profissional honesto e atualizado saberá dialogar com seu paciente, no sentido de lhe ajudar a perceber a raiz social de seu sofrimento psíquico, ou de sua egodistonia. Saberá ajudar o seu paciente a perceber que seu sofrimento psíquico é a manifestação do desespero de adequação à norma. Em consequência, em lugar de conduzir seu paciente à fantasia da reversão sexual, ele trabalhará na construção de uma autopercepção equilibrada, saudável, alegre, ainda que diferente e destoante de um padrão normativo e hegemônico.
Em resumo, em lugar de curar o sujeito de sua homossexualidade, ou de qualquer outra orientação sexual sofrente, o(a) psicólogo(a) auxiliará o sujeito a superar os estigmas que o próprio sujeito internalizou, e que lhe causam tanto sofrimento. Desse modo, o profissional não se furta da queixa que lhe chega, e atua conforme as possibilidades epistemológicas, éticas e profissionais válidas para a sua categoria neste espaço-tempo. Esses são os seus limites de atuação.
Marisa Lobo, contudo, habita dois mundos diferentes: o da ciência e o da religião. Ela crê firmemente numa certa alquimia da alma, já não assumida pelo horizonte de atuação profissional e epistemológica onde ela mesma se insere. Ao operar uma bricolagem grosseira entre esses campos, Marisa estende os limites profissionais e epistemológicos aos quais aludimos. Invade territórios habitados por muita gente boa, bem intencionada, pura de coração. Mas habitado também por lobos vorazes, predadores de vidas humanas, cujo discurso de cura de certas sexualidades nada mais é do que o papel carbono do ódio à diferença.

domingo, 11 de maio de 2014

CAPITAL DA FÉ - O FILME

Produzido com a finalidade de levantar um debate sobre a temática neopentecostal, o documentário “Capital da Fé” é ilustrado com imagens da espetacularização do culto religioso praticado por uma nova igreja evangélica e a cristianização de eventos de entretenimento e esportivos, como micaretas e esportes de combate corpo a corpo.
Capital da Fé / YouTube / reprodução
Capital da Fé / YouTube / reprodução
Filme propõe discussão sobre práticas de igrejas brasileiras de vertente neopentecostal.
O filme é  um retrato dessa crença militante vivenciada na cidade de São Paulo, trazendo uma tensão entre o conservadorismo inovador e as contradições de um Cristianismo Corporativo.
“Capital da Fé” também discute a apropriação de trechos da Bíblia cristã ao bel prazer das denominações, a cobrança desmedida de dízimos e ofertas e a consolidação de um plano de negócio, que, associado à política, cresce exponencialmente no país.
Assista ao documentário na íntegra:

Fonte: 
http://catracalivre.com.br/sp/cinema-dica-digital/indicacao/religiosidade-ou-enganacao-assista-ao-documentario-capital-da-fe/

sábado, 26 de abril de 2014

TRIUNFALISMO


Todas as manhãs, invariavelmente, a minha vizinha põe no seu toca-discos a mesma coletânea de músicas religiosas, pertencentes ao mercado gospel brasileiro. Eu já ouvi tantas vezes a mesma coletânea que já memorizei a sequencia das canções, e talvez consiga cantar uma parte delas, por osmose. Eu não sei qual a religião dela. As músicas, como disse, são “evangélicas”, o que não quer dizer que minha vizinha também o seja.
Chamam atualmente de “nominais” – categoria antes restrita à maioria dos católicos brasileiros – a estas pessoas que consomem os elementos de uma espiritualidade evangélica sem que isso se traduza em compromissos institucionais e em frequência a cultos. Seriam os “evangélicos nominais”. Mas não é isso que me importa realmente.
O que há em comum nas diferentes canções religiosas ouvidas todas as manhãs pela minha vizinha é seu conteúdo triunfalista. Nenhum espanto para quem conhece um pouco esse ramo da indústria fonográfica. O triunfalismo talvez seja sua marca mais distintiva. As raízes desse triunfalismo estão nas teologias de prosperidade que caracterizam não só o neopentecostalismo, mas uma boa fatia dos atuais grupos evangélicos no Brasil.
O que é o triunfalismo? Em linhas gerais, é uma redução da complexidade do real e de seus dilemas. É uma forma de produção de sentido que busca reduzir a complexidade da vida a um esquema de causa e efeito vinculado ao sagrado e sua relação com o mundo. O mundo e seus dilemas se simplificam de forma maniqueísta entre bem e mal. Basta ao sujeito se integrar na economia simbólica do bem, mediada pela sua religião, e nenhum dilema, por mais cruel e interminável que pareça, terá a palavra final. Como se diz sempre nesse discurso: “a vitória é certa!”.
Que efeitos o triunfalismo produz?
Em termos subjetivos, psicológicos e emocionais, o triunfalismo produz certo tipo de quietude. O sujeito experimenta um tipo de “paz” que dificilmente experimentaria por outros meios. É por isso que Émille Durkheim dizia que o crente que se encontrou com o seu deus não é apenas um sujeito que encontrou verdades novas. Além disso, ele é mais forte para enfrentar as intempéries da existência, pois no fundo, ele está certo de que elas já estão vencidas. Experimenta-as apenas como provação à sua fidelidade. Assim, não há “tempo ruim” para minha vizinha! Ao menos aparentemente.
Em termos cognitivos, a redução triunfalista da realidade produz um infantilismo que, não raras vezes, acaba cedendo diante dos limites desse tipo de discurso. O sujeito se domestica a tal ponto numa leitura reduzida da complexidade da vida, a ponto de não desenvolver capacidades cognitivas importantes no processo de maturação pessoal. A inatividade quanto à resolução de seus problemas, e a transferência dessa responsabilidade a outrem (ao deus, à campanha, ao dízimo etc.) é o sinal maior dessa infantilidade. Esse é o pano-de-fundo da exploração religiosa que assistimos hoje. Infantilizada, a alma humana é capaz de todo tipo de sujeição voluntária.
Politicamente, o triunfalismo produz passividade, individualismo e apatia. Isso não quer dizer que não haja uma agenda política nas teologias triunfalistas. Há. Mas elas repetem à exaustão um dos dogmas do protestantismo no Brasil: converta-se o indivíduo e a sociedade mudará. No mais, resta ignorar (ou atualmente, criminalizar!) os movimentos sociais de matizes progressistas, identificados com tendências socialistas, que só podem ser concebidas como verdadeiros “pecados contra o Espírito Santo”, pois infringem o princípio fundamental de que é a felicidade individual que importa para os deuses.
Ópio do povo? Alienação? De fato, eu não me atreveria a opinar.
Mas, e a minha vizinha?
Continua em paz, ouvindo a mesma sequencia musical talvez pela milésima vez...

sexta-feira, 18 de abril de 2014

O PSICOPATA DE DEUS


Sob a recomendação do meu amigo João Paulo, dediquei uma hora e meia da Sexta-feira Santa para assistir a um documentário do History Channel sobre as novas perspectivas da neurociência. Eu e o João temos trocado algumas ideias acerca desse campo. Obviamente, cada um a partir de sua própria inclinação teórica. O João, a partir de sua adesão e de seu fascínio com esse campo. Eu, a partir do vício da problematização.
Em síntese, o documentário traz uma demonstração de alguns repertórios comportamentais que se constituem como objetos de estudos da neurociência, tais como o campo das emoções (como o medo, a excitabilidade sexual, o autocontrole em situações estressantes), o campo da memória (como os déficits de memória de curto prazo e a potência da memória de longo prazo), o campo dos comportamentos antissociais (como a psicopatia), o campo da mística religiosa (como as capacidades mediúnicas), etc.
O que se coloca como pressuposto geral em todos esses estudos é o fundamento biológico e cerebral de todas essas atividades. Elas não apenas teriam um correspondente neuronal de resposta a estímulos ambientais, mas estariam condicionadas pelos processos neuroquímicos conjugados com a necessidade evolutiva de adaptação da espécie. O comportamento humano é neuroquímico por essência. A subjetividade humana é somática e cerebral por natureza. Tudo isso visaria à adaptação ambiental da espécie.
Importante salientar que a neurociência, como um desdobramento pontual do campo das ciências biológicas, ocupa-se de um dos aspectos reconhecidos até mesmo no campo de algumas psicologias histórico-sociais, que é a filogênese. É o corte de “espécie” que caracteriza suas investigações. E só um insensato negaria o fato de que os elementos ligados à filogênese estão presentes em todos os repertórios comportamentais desenvolvidos pelos seres humanos.
Por outro lado, consideramos profundamente problemática a redução desses repertórios comportamentais exclusivamente à filogênese, por considerar o papel decisivo que as relações intersubjetivas, culturais, políticas, históricas e simbólicas também possuem quando se trata de pensar no agir humano.
Um exemplo bem-humorado para ajudar a pensar.
Pinçando um exemplo dos comportamentos antissociais, o Sansão da Bíblia (Livro dos Juízes 13-16) deveria ser diagnosticado como um super-psicopata.
É que segundo certa orientação neurocientífica, a psicopatia está relacionada a certas disfunções cerebrais mais precisamente associadas a um subdesenvolvimento anatômico da amídala (que nesses casos seria 17% menor que as amídalas “normais”), assim como a problemas de comunicação entre a amídala e os lóbulos frontais. Em termos comportamentais, essas disfunções anatômicas se traduziriam na completa ausência de sentimentos de culpa em relação aos padrões sociais relacionados ao “certo” e ao “errado”.
Sansão teria sido, assim, um super-psicopata! Explico por que.
Enquanto nos casos mais assustadores da atualidade registram-se os assassinatos em série de 15 ou 20 pessoas por certos sujeitos psicopatas, Sansão matou mil homens em um só dia, sem o mínimo traço de culpa na cabeça. Pelo contrário, após sua chacina, fez uma oração ao seu deus pedindo-lhe água, pois a chacina produzira sede. E o seu deus lhe atendeu! (Cf. essa narrativa em Juízes 15,14-20). Matar sem culpa teria sido um de seus mais habituais predicados (cf. Juízes 14,19; 15,7-8; 16,30).
Obviamente, estamos tomando esse exemplo de forma meio jocosa, mas para pensar numa questão que para nós parece muito séria. As significações do bem e do mal, a nosso ver, são históricas, culturais, contextuais, relativas a cada espaço-tempo. E isso está bastante distante das necessidades de adaptação, postuladas pelas perspectivas evolutivas da ciência biológica. Na sociedade de Sansão, por exemplo, matava-se tranquilamente em nome dos deuses, sem a menor culpa na cabeça. Matava-se até como um ato de devoção e de amor aos deuses. Matava-se como quem faz o maior bem do mundo. Sansão está absolvido! Seu cérebro também!
Os binômios matar=mal e não matar=bem, são realidades morais bastante atuais. Para Sansão não fariam o menor sentido. Matar=bem e não matar=mal lhe soariam com mais naturalidade. E tudo isso sem o mínimo traço de culpa no cérebro. Por quê?
Porque a inviolabilidade e a sacralidade da vida humana são construções culturais muito recentes, forjadas por uma complexa teia de aparatos políticos, jurídicos, religiosos, científicos e culturais como um todo, dos quais não é nada fácil fazer a história. O filósofo contemporâneo Peter Singer, a partir das discussões bioéticas acerca do aborto e da eutanásia, supõe que o Ocidente deve a inviolabilidade e a sacralidade da vida humana exclusivamente ao Cristianismo. Para mim, a própria noção de culpa, biologizada no conceito de psicopatia, tem seus ancestrais culturais na culpa cristã, introjetada na economia psíquica do Ocidente pela subjetivação ligada ao Cristianismo.
Finalmente, o que desejamos com todo esse papo, em primeiro lugar, é apenas problematizar concepção da psicopatia como um fenômeno reduzido exclusivamente a disfunções neuronais. As associações entre “extinguir uma vida humana” e “culpa” são historicamente construídas. No mais, mata-se bastante na contemporaneidade sem o mínimo traço de culpa, quer cristã quer biológica. O próprio Estado contemporâneo o faz... Tema de um outro texto.
Em segundo lugar, desejamos problematizar a redução total dos comportamentos humanos aos seus condicionamentos filogenéticos, e neste caso, cerebrais. Mesmo porque tal reducionismo neurocientífico e suas intervenções têm implicações políticas e sociais muito sérias. Mas, de novo, elas são assunto para outra reflexão.

domingo, 13 de abril de 2014

RAPIDINHA SOBRE "PÚBLICO X PRIVADO" HOJE

Um dos sintomas de nossa cultura atual é um radical movimento em que certas fronteiras, tão nitidamente demarcadas há alguns anos, agora se veem completamente borradas. Uma das mais evidentes é a fronteira entre opúblico e o privado. Foi a cultura moderna que construiu essas duas dimensões da vida. A cultura pós-moderna tem tratado de borrar essas delimitações, em muitas frentes.
Veja o que ocorre, por exemplo, nas chamadas “redes sociais”. De repente, um movimento de hiper-exposição de aspectos antes considerados privados, toma as consciências, e vai se consolidando cada vez mais como um comportamento natural. É a inversão total do panoptismo descrito por Michel Foucault, em que o “olho todo poderoso”, dada sua posição central, exercia vigilância constante sobre os sujeitos em ambientes fechados como as fábricas, as escolas ou os hospitais. No novo panotismo das redes sociais, cada sujeito ocupa o centro da visibilidade, e os aspectos de sua vida privada tornam-se públicos ao clique de qualquer computador alheio.
Está tudo ali. As imagens que antes pertenciam ao mundo privado, as confissões das angústias antes restritas ao consultório ou ao confessionário, as declarações de amor e também de ódio, o status “relacional”, enfim... tudo ali nesse panóptico invertido. Antes das atuais redes sociais, os talk-shows prenunciaram essas mudanças. Neles, a exposição de todo tipo de conteúdo ligado à privacidade das pessoas corria mundo a fora por meio das antenas de TV. De repente, as consciências começam a funcionar em conjunto, num movimento de hiper-exposição que manifesta o borrar das fronteiras entre o público e o privado. Não sabemos mais onde ambos começam e terminam.
Não nos atreveríamos a dizer que o que se passa é bom ou ruim. Para os saudosistas é preciso dizer que as rígidas fronteiras entre o público e o privado, que caracterizaram a Modernidade, também são construções históricas. E não sabemos dizer se sua instauração tornou o mundo melhor ou pior. Certamente estamos diante mais uma contingência histórica, cujos resultados nos são ainda desconhecidos, visto que estamos dentro dessas transições todas.

sábado, 5 de abril de 2014

NOVAS CONVERSAS SOBRE O CORPO, A CIÊNCIA E A RELIGIÃO



Em um texto que chamei de Conversas sobre o corpo, a ciência e a religião, escrito há dois anos, eu narrava um pouco da minha trajetória acadêmica desde que cheguei a Alagoas, no ano de 2006. Quando escrevi aquele texto, eu estava às vésperas de iniciar o mestrado em Psicologia (2012-2014), e o texto pretendia mostrar meu caminho até o tema que investiguei nessa pós-graduação. Naquele texto eu havia descrito um pouco as minhas preocupações com a cultura canavieira, que dominaram minha atenção durante a graduação (2007-2011), e os motivos que me levaram a mudar totalmente o foco dessas atenções para o tema das sexualidades, que acabou resultando numa dissertação intitulada Cristianismo, política e criminalização da homofobia no Brasil, defendida com sucesso em março desse ano.

Eu justificava essa mudança tão profunda – da cultura canavieira para as sexualidades – a partir da ideia de que “a cabeça pensa a partir de onde os pés pisam”. Foi a mudança de contexto vivencial que influenciou a mudança no meu foco de investigação acadêmica. Contudo, terminada essa etapa, novas possibilidades colocam-se à minha disposição, agora para um doutorado. E novamente o pêndulo dos meus interesses teóricos se reorienta, em função de onde meus pés pisam.
Desde que estreei como docente substituto na Universidade Federal de Alagoas, em 2013, as questões ligadas à constituição da Psicologia como uma ciência autônoma, assim como a constituição do(s) seu(s) objeto(s) foram se tornando centrais para mim, em função das disciplinas que ali assumi. Eu estava frente a frente com os debates acerca do conceito de subjetividade, caríssimo às Psicologias do século XX. Eu precisaria mergulhar nas diferentes variáveis implicadas na constituição daquele conceito na Modernidade, e na relação disto com a própria constituição da Psicologia como uma ciência apartada da tradição filosófica. Obviamente, esse debate não se faz sem que se pense, além disso, no que chamamos de novas formas de subjetivação, relacionadas de um modo muito especial às novíssimas condições de vida de nosso tempo atual.
Movido por essas novas circunstâncias, novos objetos colocam-se como possibilidades de investigação. A perspectiva a partir da qual buscaríamos compreender esses objetos permanece a mesma. Primeiro, ela está sempre pautada pela investigação acerca das implicações políticas dos saberes investigados, e do saber que nós mesmos produzimos. O saber que buscamos produzir é sempre politicamente consciente e posicionado. Trata-se da assunção da inescapável relação entre epistemologia e política, bem descrita pelo sociólogo francês Bruno Latour. Segundo, ela está interessada nas relações de poder e nas formas de governo da vida humana na atualidade. Em outras palavras, ela está identificada com o entendimento do poder em sua dimensão produtiva e positiva, como salientou Michel Foucault. E finalmente, ela se interessa em saber que modos de vida e de subjetividade são produzidos em meio a isso tudo.
Entretanto, um novo objeto surge como uma possibilidade agora. Minha inclinação se volta agora para pensar uma categoria conceitual que tem sido descrita como sujeito cerebral, relacionada aos saberes produzidos no campo da neurociência e da neuropsicologia. O pano-de-fundo dessa discussão é bastante amplo. Ele tem a ver com a tendência crescente de medicalização da vida, e porque não dizer, com uma tendência crescente de patologização de uma série de condutas cotidianas. Como bem observou Elizabeth Roudinesco, há toda uma teia de interesses econômicos alavancando essas tendências. Segundo esta autora, estaríamos diante de um quadro que nos possibilita compreender as atualizações do funcionamento do biopoder, conceito cunhado e explorado anteriormente por Foucault.
Em síntese, a categoria de sujeito cerebral tenta dar conta da redução de todos os aspectos relacionados à subjetividade aos condicionamentos de origem fisiológica e neuronal, como operada no contexto das neurociências. Em outras palavras, trata-se de um movimento de ancoragem fisiológica daqueles aspectos antes relacionados à ideia moderna de sujeito psicológico. No cérebro estariam situados todos os aspectos da subjetividade humana, tal como a própria consciência de um “eu”. Desde a década de 1990 as técnicas de imageamento cerebral buscam alargar, por meio de ressonâncias magnéticas, as conexões entre a atividade das diferentes regiões cerebrais e os diversos aspectos da conduta humana. Daí derivam novas disciplinas como a neuropsicologia, a neurocriminologia, a neuroética, a neuropsicanálise, e até uma neuroteologia.
Esses seriam alguns exemplos de como as mais variadas condutas humanas seriam capturadas por uma rede de discursos científicos, que, neste caso, corroboram com a produção de uma subjetividade reduzida à dimensão fisiológica da existência humana. A ideia moderna de sujeito psicológico estaria em profunda crise mediante esse quadro. A própria ideia de “interioridade psicológica” se vê ameaçada frente a um contexto em que a somatização das condutas é cada vez mais crescente. Consequentemente, as intervenções clássicas necessitariam ser repensadas, uma vez que a ideia de sujeito cerebral está intimamente acompanhada de intervenções tacitamente medicamentosas.
Obviamente, estamos falando de um mundo de coisas a serem discutidas. Contudo, dentre esse mundo de coisas relacionadas com a captura neurocientífica das condutas humanas, a dimensão da religiosidade salta com mais força aos nossos olhos.
Mencionamos ligeiramente acima o surgimento nos últimos anos de uma neuroteologia. Este campo estaria voltado para as reflexões que se dão a partir do imageamento das atividades cerebrais durante a realização de atividades religiosas como a oração, a louvação, a meditação sagrada, entre outras. Uma das questões centrais aí é o esclarecimento acerca dos benefícios desse tipo atividade à saúde e ao bem-estar – cientificamente postulados, obviamente. São muito conhecidas as pesquisas científicas que buscam esclarecer os vínculos entre a prática da religiosidade e a eficácia no tratamento de certas enfermidades. Desse ponto vista, seria importante mapear o funcionamento cerebral ocorrido durante certas atividades religiosas, e sua relação com outras funções somáticas.
Nos interessaria saber, em primeiro lugar, como, de um modo geral, esse movimento de ancoragem fisiológica e cerebral da subjetividade vai instituindo um modo de viver considerado “bom”, “saudável”, e “normal”. Em segundo lugar, nos interessaria saber como as questões específicas da religiosidade são capturadas por esse mesmo discurso, para os mesmos fins. Em linhas gerais, e à guisa de conclusão: nos interessaria saber como o religioso comparece numa teia de discursos científicos cuja finalidade é a maximização da vida humana em sua dimensão biológica, aos custos de um reducionismo da concepção moderna de sujeito psicológico, e da imposição de formas uniformizadas de vida e de conduta.
Espero que o futuro jogue ao meu favor!

terça-feira, 1 de abril de 2014

NOTA PÚBLICA - 50 ANOS DEPOIS DO GOLPE: UM PEDIDO DE PERDÃO

50 anos depois do golpe
Aliança de Batistas do Brasil – Um pedido de perdão

A Aliança de Batistas do Brasil, instituição batista de caráter ecumênico, vem a público 50 anos depois do golpe civil-militar no Brasil, para pedir perdão pela conivência, omissão e participação que muitas igrejas e lideranças batistas tiveram durante o período da ditadura militar e civil do Brasil. A omissão, conivência e delação assumida pela maioria destas igrejas no período da ditadura foi um erro lamentável, porém o silencio e a ocultação histórica desse erro torna-lhe ainda mais pecaminoso e vergonhoso.

Mas, quero trazer à memória aquilo que me traz esperança. (Lamentações de Jeremias 3: 21)

No compromisso de fé e esperança queremos também trazer a memória aqueles e aquelas que não se dobraram no período da ditadura no Brasil, a exemplo da Igreja Batista Nazareth (Salvador – BA) que manteve uma postura de resistência, erguendo sua voz de denúncia profética durante o período da ditadura.  No testemunho desta comunidade incluímos todas as comunidades de fé que se mantiveram resistentes, dando testemunho do Evangelho nesse período tenebroso da história recente do nosso país.  E no testemunho histórico e profético dos pastores batistas Valdo César (Rio de Janeiro- RJ), Djalma Torres (Salvador - BA) e David Malta (Rio de Janeiro – RJ),  honramos todas as demais  lideranças batistas que não se calaram e enfrentaram corajosamente o regime que atentou contra as liberdades fundamentais do ser humano e do povo brasileiro. 

Por ação e omissão pecamos contra os princípios de amor, liberdade e justiça que são as marcas do Evangelho de Jesus Cristo, e por isso pedimos perdão.

Aliança de Batistas do Brasil
01 de Abril de 2014.


Odja Barros - Presidente