domingo, 31 de agosto de 2014
FÉ VERSUS CIÊNCIA HOJE
Não se pode dizer de jeito nenhum que o assunto “fé versus ciência” seja algo desgastado e ultrapassado. Em minha opinião, é um dos debates mais importantes da agenda contemporânea.
Há alguns anos, esse assunto era discutido a partir do cruzamento frontal das ideias religiosas e científicas, quando se tratava de um mesmo objeto. Por exemplo, o objeto “vida no planeta” foi alvo de intensas querelas entre ideias criacionistas, vindas da religião, e evolucionistas, vindas da ciência.
A importância contemporânea desse debate, contudo, tem outras configurações. No lugar do cruzamento direto entre ideias divergentes acerca dos mesmos objetos, esse debate se dá pela mediação da arena político-estatal. E então um aspecto pragmático se impõe, pois não se trata mais de discutir ideias apenas.
Trata-se agora de utilizar ideias dentro de certas estratégicas políticas, e assim modular a vida social. A forte presença de atores religiosos nos parlamentos atuais produz um jogo intenso de forças, em que tanto a religião quanto a ciência servem como estratégias discursivas para a produção de certas políticas públicas. Tomando novamente o exemplo do objeto “vida no planeta”, hoje essas disputas se traduzem no conteúdo a ser ensinado nas escolas.
Aquilo que era considerado como um domínio relativamente pacífico da ciência, passa a ser disputado também por discursos religiosos na arena política. Ou seja, o objeto “vida no planeta”, antes pautado pelo conhecimento científico nas escolas, passa a ser disputado pela religião, através da mediação parlamentar. Como o Estado é laico, um mundo de enfrentamentos se produz.
E dentre a pluralidade que marca o campo religioso, especialmente no Brasil de hoje, quem disputa esses terrenos com a ciência por meio da política são atores ligados aos Cristianismos.
Mas essa é só mais uma perspectiva para se encarar a atualidade do assunto “fé versus ciência”. Na verdade, essa é só uma das muitas possibilidades de se enunciar a relação entre esses dois conceitos. Obviamente, o versus não é a única forma de ligar esses domínios.
A partir da atividade docente, meu olhar tem estado atento a como o assunto “fé versus ciência” modula os processos de ensino-aprendizagem na educação de nível superior. As alterações nas configurações religiosas do país têm produzido fenômenos muito interessantes, pelo menos a meu ver. Essas alterações não têm a ver apenas com o notável crescimento dos grupos evangélicos. Me parece que esse crescimento produz outros fenômenos a ele ligados, e ainda pouco refletidos. Um deles, pensado a partir do contexto da educação de nível superior, é a necessidade da demarcação da identidade religiosa dos estudantes.
Os grupos evangélicos têm como uma de suas características a necessidade de profissão pública de sua identidade religiosa, exposta discursivamente de diversos modos: nas falas cotidianas, na musicalidade consumida, em objetos de mercado como roupas, adesivos em carros etc. Por tabela, isso produz a reação e o fortalecimento da identidade de outros grupos religiosos, como os católicos ou as religiões de matriz africana. É parte da paisagem urbana na atualidade frases do tipo “Sou feliz por ser católico”, por exemplo, presente nos carros e nas roupas. Tive vizinhos que estampavam adesivos nas portas de seus apartamentos com os dizeres: “Aqui mora uma família de missionários católicos”.
Parto da hipótese de que essas alterações todas têm produzido efeitos diretos nos processos educativos com os quais convivo, alusivos ao ensino superior. Mas, como o problema se configura nesse contexto?
Dispensável dizer que a Universidade – públicas e privadas – está entre as principais instituições modernas responsáveis pela massificação da chamada “cultura científica”. Nos Estados modernos, outra de suas funções é formar a expertise relativa às demandas profissionais da sociedade. Há toda uma discussão de como a Universidade funciona como aparelho ideológico do Estado, reproduzindo as assimetrias sociais e funcionando como agente mantenedor das mesmas. Passo ao largo desse importante tópico, assumindo apenas o fato de que elas são espaços importantes de massificação da cultura científica.
É oportuno deixar claro que essas observações têm estreita relação com o ocorre no campo das ciências humanas e sociais, embora eu não duvide que tais problemas surjam em outros domínios da vida universitária.
Refiro-me especialmente aos conflitos epistemológicos que surgem quando um mesmo objeto faz convergir diferentes abordagens, oriundas do campo científico e da filiação religiosa dos estudantes. Não acho que os processos de ensino-aprendizagem devam ser isentos de tensões. Mas esse é um tipo de tensionamento diferente, que vai se tornando cada vez mais recorrente, à medida que as identidades religiosas vão se empoderando no interior da academia.
Tema instigante, que mereceria um pouco mais de foco, e que buscarei refletir nos próximos textos.
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