sexta-feira, 23 de setembro de 2011

O QUE É UMA VOCAÇÃO


O que é uma vocação?
A palavra “vocação” talvez seja uma das mais presentes no mundo religioso, sobretudo no mundo cristão. Contudo, estranhamente essa palavra nunca aparece na Bíblia. Mas é certo que apesar de não ser mencionada nominalmente, em algumas narrativas bíblicas a experiência da vocação aparece inteiramente despida ao olhar atento. A narrativa do profeta Jeremias talvez seja um exemplo eloquente.
É preciso que se leia a narrativa em sua íntegra para entender os meandros da vocação de Jeremias. Não há ali nenhuma definição do que seja vocação. Em síntese, o que se pode dizer é que Jeremias se apresenta como um sujeito consumido por sua vocação de profeta, a ponto de suportar as agruras da oposição, da incompreensão de seus pares, e da perseguição das instituições oficiais frente à sua mensagem subversiva. Em Jeremias, a vocação não liquidou as ambiguidades da fraqueza humana. Pelo contrário. Foi enquanto sujeito vocacionado a ser profeta que Jeremias lamentou e quis voltar atrás. Mas foi enquanto sujeito vocacionado a ser profeta que ele encontrou a força suficiente para suportar todo sofrimento.
Lutero, num lampejo teológico, quis equiparar os “trabalhos mundanos” com a vocação religiosa. Na sua tradução do Novo Testamento para o alemão, ele usou a mesma palavra para “trabalho” e para “chamado”: beruf. Com esse recurso de filologia, Lutero queria dar a entender aos leitores da Bíblia de língua alemã que os trabalhos ditos “mundanos” e a vocação religiosa tinham o mesmo status, de tal modo que Deus poderia e deveria ser glorificado no meio das ocupações mundanas. O nosso protestantismo esqueceu-se disso, de tal modo que somente pastores e missionários são “vocacionados” na comunidade eclesial.
Apenas uma ressalva quanto a isto. Há vocações que nunca foram vividas como trabalho. Na verdade, nunca são. E há trabalhos que nunca foram vivenciados como vocação. Na verdade, nunca podem ser.
Toda vocação é um fogo que arde sem cessar em nosso peito. Não há vocação sem uma intensa sensação de que o amor nos invadiu. O amor, como dizia Camões, “é um fogo que arde sem se ver; (...) é estar-se preso por vontade”. É por isso que sofrimentos, decepções, angústias, temores, não podem matar a vocação. E por paradoxal que pareça, não há experiência vocacional sem a vivência desses dissabores com alguma intensidade.
Toda vocação enche a nossa vida de significado. A vocação pinta de colorido a existência cinza, e enche de significado cada dia de nossas vidas. É a vocação que nos informa de nosso exato lugar no mundo, e nos eleva à condição de seres com uma alta significância em um “universo frio e sem sentido”, no dizer de Rubem Alves. Por isso o seguimento da vocação é um ato de resistência contra todo niilismo.
Toda vocação implica em relações de profunda gratuidade. Pode-se até viver da vocação e para a vocação. Mas pode-se também viver apenas para a vocação, sem que necessariamente se viva da vocação. A interrupção da possibilidade de se viver da vocação nunca significa uma ameaça a ela. O que se colhe, verdadeiramente, como lucro da vocação não pode ser medido. É da ordem realização do Ser. E ainda que não se lucre nada de mensurável, a vocação perseguirá seu lucro imensurável até o último dia de nossas vidas. Vocação e gratuidade são irmãs siamesas.
A vocação, em sua radicalidade existencial, nos expõe diante dos valores e ideais mais preciosos que temos na vida. Morreríamos se privados fôssemos de exercê-la. Tudo voltaria a ser cinza. Um frio abaixo de zero petrificaria nosso coração. Nossos ossos secariam, e nosso espírito definharia. Tudo acabaria.
Toda vocação exige a companhia da coragem. Isso porque muitas vezes, em sua latência indomável, ela nos toma pela mão e nos chama a caminhar por estradas socialmente reprováveis, às vezes lisas e às vezes ásperas, às vezes doces e às vezes amargas, às confortáveis e às vezes pedregosas.
Como saber de minha vocação?
Escute os outros. Toda vocação é aromática. Seu aroma alcança aqueles que nos rodeiam, e denuncia aquilo que será nosso destino. Desatentos como somos, preocupados com mil coisas na vida, o aroma da vocação fica sem ser sentido por nós. Mas nunca por aqueles com quem convivemos. Paulo havia usado a metáfora do aroma para falar da presença de Cristo em nós. É impossível que os outros não o sintam em nós, se ele está em nós. É impossível que os outros não sintam o aroma daquilo que constitui nosso chamado na vida, nossa paixão mais profunda, nossa vocação.
Escute a si mesmo. Volte a si mesmo recorrentemente, em silêncio profundo, e escute a voz do seu próprio coração. É aí o altar preferido no qual Deus nos fala. Certa vez, um jovem quis saber de Rilke sobre como poderia ter certeza de que era vocacionado à literatura. E Rilke lhe empurrou para o abismo profundo do seu próprio coração. Lá, onde o ser se defronta consigo mesmo, e apenas consigo. Inquira a si mesmo nesse lugar secreto. Pergunte-se o que lhe seria sem o caminho de sua vocação.

terça-feira, 6 de setembro de 2011

“QUE A VOZ DO TEU SANGUE NOS DIGA ALGUMA COISA”

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No último dia 03 de setembro o estado de Alagoas viu ressurgir algo que havíamos pensado estar fora de moda: o crime de mando. Tombou, sob o impacto de doze covardes tiros, o médico e professor Luiz Ferreira, que também atuava na vida pública como vereador no município de Anadia. Virtual candidato à prefeitura daquela cidade, Luiz Ferreira foi vítima de uma emboscada logo após deixar um programa de rádio, onde anunciara sua virtual candidatura. Aos sessenta e um anos de idade, com um amplo currículo de serviço à sociedade alagoana nos campos da saúde, da educação e da política, Luiz Ferreira pagou com o próprio sangue o preço de assumir a postura político-ideológica que quis, e de colocar-se a serviço dos pequenos.


Infelizmente, a história recente de Alagoas tem sido constantemente manchada com o sangue de gente inconformada com os feudos políticos e com os currais eleitorais ainda muito vigentes por aqui. É muito grande a lista de pessoas que, seja no enfrentamento político, seja nos enfrentamentos dos movimentos sociais (principalmente na luta pela terra), foram vítimas dos caciques que não suportam sequer a idéia de terem seu poder questionado.
Estranhamente, não há a presença de padres, bispos, pastores e apóstolos nesta lista de mártires.
Digo “estranhamente” porque a Bíblia, livro-guia da fé cristã e chamado por padres, bispos, pastores e apóstolos de “regra de fé e prática”, está cheia de exemplos de pessoas que tais como Luiz Ferreira, pagaram com suas próprias vidas o preço do serviço aos mais humildes e do enfrentamento dos poderosos. Nós protestantes, por exemplo, professamos o sola scriptura, isto é, professamos que apenas as Escrituras Sagradas devem ser o referencial de nossa fé. Mas não são justamente as Escrituras Sagradas que chamam de “bem-aventurados” aqueles que são perseguidos e mortos por causa da justiça? (Mt 5,10-12)
Os profetas do Antigo Testamento, em sua maioria, viram-se perseguidos por questionarem a manipulação religiosa, as falsas consolações populares, o monopólio do poder e a opressão que se impunha ao povo mais pobre. Elias foi perseguido por se opor à idolatria e aos desmandos reais de Acabe e Jezabel. Isaías, conforme certa tradição religiosa, foi perseguido e cerrado ao meio por conta de sua mensagem de denúncia à opressão política e religiosa. Jeremias foi perseguido por Zedequias por conta de sua denúncia das falsas consolações populares em relação à invasão babilônica. Conforme a tradição mais crida entre os cristãos, todos os apóstolos de Jesus Cristo foram perseguidos e mortos em função do conteúdo subversivo de sua mensagem. Apenas João teria tido morte natural. O próprio Jesus de Nazaré teve na cruz a resposta do Império Romano à sua práxis subversiva, considerada perigosa à estabilidade imperial nas províncias da Galileia e da Judéia. A mensagem do “sacrifício vicário e salvífico” veio depois, como produto da fé dos primeiros cristãos.
Embora se dê muita ênfase aos aspectos sombrios e nefastos da Igreja Cristã na História – como as cruzadas, as caças às bruxas, as guerras religiosas européias, a perseguição aos livres pensadores, a intolerância frente a outras religiões, etc. –, não se pode esquecer que o Cristianismo tem legado ao mundo também uma rica lista de homens e mulheres que foram mártires em defesa da vida.
Dietrich Bonhoeffer (†1945), pastor protestante alemão, foi perseguido e morto pelo nazismo por conta de sua oposição a Hitler. Martin Luther King Jr. (†1968), pastor batista norte-americano, foi assassinado por conta de sua luta em prol dos direitos civis nos Estados Unidos. Dom Oscar Romero (†1980), arcebispo católico, foi assassinado em El Salvador por conta de sua defesa dos pobres e do seu enfrentamento dos poderosos. Ignácio Martin-Baró (†1989), padre católico e psicólogo social, e Ignácio Ellacuria (†1989), padre católico e teólogo da libertação, foram brutalmente assassinados com mais quatro companheiros da Universidade San José em El Salvador, por representarem ameaçadas às oligarquias que historicamente mantinham-se no poder. Dorothy Stang (†2005), missionária católica na Amazônia, foi brutalmente assassinada por conta de sua defesa dos direitos da floresta e daqueles que dela viviam e estavam sendo alijados desse direito. Esta é uma lista muito grande. Estes são apenas os nomes mais conhecidos.
Alagoas também tem sido uma terra de mártires. Mas, quem são eles? Este estado, historicamente caracterizado pela imposição voraz das oligarquias da terra, pela centralização das atividades econômicas na nefasta monocultura da cana, e pela idolatria do poder político caracterizada pelos feudos familiares, tem tido seu chão manchado pelo sangue de muita gente que ousou sonhar com uma Alagoas diferente. Mas, quem são essas pessoas? Repito: estranhamente não há a presença de padres, bispos, pastores e apóstolos nesta lista. Portanto, é inevitável perguntar: quem são os verdadeiros profetas nesta terra? É com vergonha e pesar que respondo olhando para mim mesmo: não somos nós, os religiosos.
Nós, padres, bispos, pastores e apóstolos não somos os profetas que têm manchado o chão de Alagoas com o sangue que rega a luta pela justiça. No lugar do enfrentamento, preferimos o conforto. No lugar de uma sociedade mais justa e inclusiva, preferimos o céu e suas delícias. No lugar da denúncia, preferimos o silêncio, quando não a camaradagem e o favor de certos déspotas alagoanos. Denunciamos os “perigos do mundo”, sem notar que nossa vidinha mesquinha e aquietada por nossos gordos salários, é tudo que “o mundo” espera de nós. Somos leões da moralidade, gigantes na defesa da família, vigilantes intermitentes dos perigos do sexo, ao mesmo tempo em que somos gatinhos manhosos frente à opressão política, anões frente à imposição das oligarquias econômicas, e completamente cegos para a dor da maioria do povo de Alagoas. Definitivamente, nós nunca fomos profetas de nada!  
A voz do sangue de Luiz Ferreira clama por toda terra de Alagoas até os céus (Gn 4,10). O sangue deste mais novo mártir alagoano clama, em primeiro lugar, para que a justiça seja feita em relação aos seus algozes materiais e intelectuais. Em segundo lugar, a voz do sangue de Luiz Ferreira clama a toda sociedade alagoana, como uma trombeta tocando no alvorecer do dia, convidando-nos todos a acordar do sonho de paz e segurança. Em terceiro lugar, a voz de seu sangue clama nos recordando de que os poderes da morte estão muito vivos, e não querem conceder espaço para coisas diferentes, para uma sociedade mais igualitária, mais inclusiva e mais participativa. Em quarto lugar, a voz do sangue de Luiz Ferreira clama a nós, padres, bispos, pastores e apóstolos, para que saiamos de nosso mundo imaginário e sublimatório de paz e segurança. Ela clama nos convidando a despedaçar o cálice de ópio que nos embriaga há tanto tempo.