sábado, 30 de maio de 2009

A ESTRANHA CONVERSÃO “GLOBAL”


Uma suspeita acerca da aproximação da Rede Globo junto aos evangélicos no Brasil

Podem me chamar do que quiser! De pessimista a radical. Mas nada me convence de que as últimas matérias sobre a ação social evangélica no Brasil, veiculadas no Jornal Nacional da Rede Globo, tenham um fundo de boas intenções. Não! Minha posição de rejeição ao jornalismo da Rede Globo é a priori e incurável. E minha convicção de que religiosamente ela é antievangélica segue na mesma linha. Nem a simpatia do William Bonner e da Fátima Bernardes muda isso!

É desejo de todos nós que pertencemos a estas tradições de difícil tipologização – evangélicas, protestantes, pentecostais, neopentecostais, e etc. – que todas elas exalem pertinência social. Para muitos de nós essa é a grande luta interna. É verdade a assertiva de que o protestantismo ainda deve muito em termos da construção de uma sociedade justa e fraterna no Brasil. Não que nunca tenhamos ensaiado isso historicamente. Mas quando o fizemos, os poderes reacionários de nossas igrejas sempre impuseram sua força abafando os novos brotos aí presentes. Todavia, permanece a luta e o empenho para que essas tradições contribuam na gestação de algo novo em termos estruturais, e dêem sua contribuição no aparecimento de comunidades e sociedades com feições mais humanas.

A Rede Globo deveria veicular o fato de que a ação social sempre foi uma prática presente entre os evangélicos do Brasil. Além disso, deveria também veicular o fato histórico de que a própria Teologia da Libertação (TdL) teve seus primeiros brotos no Brasil sobretudo em círculos evangélicos. Quem investigar, por exemplo, o pensamento e a práxis de Richard Shaull entre as décadas de 1950 e 1960 no Brasil, se surpreenderá com aquilo que poderíamos chamar tranquilamente de “antecipações” ao que mais tarde se formalizaria como TdL. Além disso, o texto acadêmico considerado fundante da TdL, para quem o enfrentamento da pobreza e da opressão tem dimensões paradigmáticas, foi The Theology of a Human Hope, escrito por Rubem Alves ainda em 1969.

É bem verdade que foram poucos os grupos evangélicos que chegaram a desenvolver uma teologia onde a ação social fosse o elemento paradigmático. Também é verdade que os evangélicos sempre tiveram extrema dificuldade de discernir entre ação social e assistencialismo, quase sempre tomando o segundo pelo primeiro. Em muitos casos esse assistencialismo aparecia (e ainda aparece) como mero adendo da missão cristã no mundo, sobretudo como isca para os fins proselitistas. Mas como valor reconhecidamente cristão – para saber se ele o é basta que se pergunte a quem tem fome –, o assistencialismo sempre constou na dinâmica de uma fração majoritária das igrejas evangélicas no Brasil.

A Rede Globo, por sua vez, nunca fez questão de ocultar o substrato católico que lhe subjaz religiosamente (o que não é nenhum problema, ao menos para mim!). Aos evangélicos sempre foi vedada a notoriedade, e a invisibilidade destes sempre foi a tônica nas relações com esta televisão. Em meados da década de 1990, nos embates com o Bispo Macedo e sua igreja, lembro do tratamento indiscriminado dados aos “evangélicos” pela Rede Globo, como se Macedo fosse uma espécie de representante de um grupo homogêneo que envergonhava o Brasil com sua astúcia. Só muito depois tomei conhecimento das batalhas travadas pela AEVB (Associação Evangélica Brasileira) para desvincular a figura e a práxis de Macedo da imagem dos demais evangélicos, sobretudo dos pastores.

Por tudo isso, essa guinada radical da Globo em face dos evangélicos brasileiros não é pra levantar nossos cabelos? O que explicaria essa “conversão” tão súbita?

Será que a atual visibilidade dessas ações só se tornou um fato em função do crescimento evangélico que segue acima da média da população nacional? Por que será que as práticas sociais pregressas, relativas a mais de 150 anos de presença evangélica no Brasil, nunca puderam ser alcançadas pelas câmeras “globais”? Quais elementos desse momento histórico poderiam ser pistas para entendermos uma guinada tão aguda na atitude da Globo quanto aos evangélicos? Que relações podem existir entre essa guinada e o projeto de hegemonia midiática da Rede Record gerenciada pela Igreja Universal do Reino de Deus? Seriam os evangélicos brasileiros de hoje um seguimento social com poder suficiente para determinar o resultado de um processo eleitoral presidencial? [vote Dilma 2010!] Enfim, o apreço e a simpatia “globais” dirigidos aos evangélicos brasileiros se devem a quê?

Como sei que logo alguns pastores midiáticos saltarão de alegria e exultarão esse vislumbre “global”, me adianto com essas questões que nascem como síntese do meu pessimismo e do meu radicalismo em relação ao jornalismo da Globo.

Sim, os evangélicos cresceram e apareceram! Saltamos de 5 ou 7 por cento no início da década de 1990 para mais de 15 por cento em dez anos. Em 2000 o IBGE dizia que éramos uns 26 milhões de crentes tupiniquins. Talvez beiremos os 30 milhões atualmente. Tamanho crescimento religioso é um dado sociológico impossível de passar despercebido por quem quer que seja. Já que crescemos tanto e já estamos aparecendo positivamente até na Rede Globo, seria também o momento de não entrarmos num jogo cuja regra maior parece evidente: fazer-nos massa de manobra! Afinal, gente crescida é gente que deve aprender a cuidar bem de si!


domingo, 17 de maio de 2009

RELIGIÃO E VIOLÊNCIA [2]


A “violência cristã sofisticada” como violência simbólica

A História é testemunha de que existe uma estreitíssima relação entre os conceitos de religião e violência. Sobretudo na História do Ocidente, entre Cristianismo e violência.

Os cristãos, em princípio, foram vítimas de uma violência desproporcional às suas forças, perpetrada pelo Império Romano. Sobretudo nas comunidades do primeiro e segundo séculos sobejam os mártires. A condenação da Besta e da Babilônia prenunciada no Apocalipse é o subproduto teológico-reativo a essa violência imperial. No entanto, ocupando posteriormente o lugar privilegiado Religião Oficial do Império Romano, os cristãos foram os protagonistas de terríveis violências e cruzadas em nome de Deus. Em caso de dúvidas, consultem os árabes.

Primeiro, os “pagãos” violentam os cristãos. Depois os cristãos violentam os “pagãos”. Por fim, os cristãos violentam a si mesmos. Ou já nos esquecemos da inesquecível Noite de São Bartolomeu? Este episódio é só um fragmento do grande caldeirão de sangue no qual se tornou a Europa no período pós-reformatório. Quem tiver dúvidas que leia Tratado sobre a tolerância, do Voltaire.

A violência no âmbito de gênero, tão presente ainda hoje, já teve nos cristãos requintes de especialidade irrepetíveis. Ninguém cometeu maiores atrocidades contra as mulheres do que os cristãos encarregados do Santo Ofício. Quem pode esquecer tudo os cristãos fizeram com o Malleus Maleficarum debaixo do braço? Também a repressão violenta às manifestações de trabalhadores, absurdamente atual, teve nos cristãos episódios vergonhosos. Lutero amaldiçoou a matança de cinco mil camponeses revoltos em Frankenhausen no ano de 1525 [perdoemos a Lutero: Não matarás não constava nas 95 Teses]. O velho Calvino também não deixou de caçar bruxas e hereges na sua calvinocrática Genebra. A expansão colonial que vitimou por inteiro as civilizações pré-colombianas – há quem calcule em torno do desaparecimento de 88 milhões de seres humanos durante a invasão das Américas – também se deu fomentada religiosamente pelo Cristianismo. Havendo dúvidas aqui, eu indico As veias abertas da América Latina, do Eduardo Galeano.

Mas chega de sangue.

Deixemos para depois os casos da colonização protestante na América do Norte e o extermínio dos ameríndios ianques, siouxes, apaches, navajos, cheroquis, e tantos outros pele-vermelha. Deixemos para depois as cruzadas cristãs nos regimes coloniais (principalmente no Brasil), responsáveis pela “higienização religiosa” desses países e pelo expurgo de judeus, maçons, candomblecistas, e etc. Deixemos para depois as intriguinhas ainda vigentes entre os irmãos lá da gelada Irlanda do Norte, católicos e protestantes.

Não, não sou eu quem diz “chega de sangue”. Quem diz isso são os cristianismos ocidentais. Isso não quer dizer, todavia, que estão dizendo “chega de violência”. Porque violência não se faz somente com arcos e espadas, ou com paus, pedras e armas de fogo. Num tempo onde o derramamento de sangue em nome de Deus se tornou politicamente incorreto e socialmente indecoroso, a violência sofisticada é aquela que se especializou no reino do sentido, com o símbolo e com a palavra. Mais ou menos aquilo que o Pierre Bourdieu vem chamando aí de violência simbólica.

A violência simbólica – que no fundo deixa cicatrizes bastante concretas em suas vítimas – é aquela que se dá no campo do sentido. Seu ardil consiste em arruinar a legitimidade do ser do outro. É o terrorismo que se faz com a palavra, alvejando o outro naquilo que ele tem de mais íntimo, que é a sua própria percepção como gente no mundo. A mútua violência simbólica que as religiões cristãs deflagram entre si nem precisa ser assunto de discussão. É um escândalo quase natural, como natural é o ar que respiramos.

A violência cristã sofisticada como violência simbólica segue pleno curso nos nossos dias. A fobia das culturas locais é um desses casos, embora não seja nada novo. A evangelização no Brasil, mormente nos círculos protestantes e evangélicos, não tem consistido num violento atentado contra a cultura tupiniquim? A ética pessoal dos evangélicos, pretensamente deduzida da Bíblia, não coincide com um certo american way of life? Nossa musicalidade cristã, tanto aquela ainda marcada pelo tradicionalismo dos primeiros missionários protestantes, quanto essa influenciada pelo mercado gospel, não são importações norte-atlânticas? É da Bíblia que procede nosso trato aversivo e violento diante de determinados elementos de nossa própria cultura? Em caso de dúvida confira A gestação do futuro, onde Rubem Alves declararia que “levaria um grande tempo até que aprendesse a dançar e a gostar de samba, pois a única coisa que sabia era cantar as gospel songs norte-americanas”.

Nesse ínterim, vale a pena dizer alguma coisa rápida sobre a violência simbólica deflagrada contra a cultura e a religiosidade afro-brasileira.

Também aqui não estamos diante de nada novo. O professor Paulo D. Siepierski defenderia a tese de que a aversão religiosa de cunho cristão às manifestações culturais afro-brasileiras é somente a versão teológica do preconceito milenar direcionados a esses povos. Eu diria que se o Apartheid (“vida separada”) consistiu num movimento histórica e geograficamente circunscrito a um país, o apartheid teológico consistiu na maneira como os grupos cristãos se relacionaram com a cultura e com a religião africanas em todo tempo e em todo lugar. No Brasil, essa forma de violência simbólica se exacerba no neopentecostalismo. Enquanto os protestantes históricos elegeram a Igreja Católica como antítese, aqueles elegeram a religiosidade afro-brasileira. É a esta que dirigem sua violência discursiva, fora os casos de verdadeiras jihads com implicações físicas, dada as invasões de terreiros e os confrontos concretos com esses religiosos negros.

Para não alongar demasiadamente esse pequeno artigo, eu fecho dizendo alguma coisa sobre a violência cristã sofisticada como violência simbólica deflagrada contra certas minorias articuladas em torno da legitimidade de sua experiência sexual. E eu desejo me ater somente à homossexualidade, para não fazer referência às dezenas de outras possibilidades de sexualidade catalogadas hoje no âmbito das ciências do comportamento: bissexualidade, transexualidade, etc.

Não resta dúvida de que todo discurso homofóbico é simbolicamente violento. Também ele arruína a legitimidade da auto-percepção do outro. Ao se dizer isso, não se está legitimando a hossexualidade em si mesma. Mas já deveríamos ter aprendido que é preciso legitimar essa auto-percepção que o outro carrega. E aqui eu não me refiro à inclusão dos homossexuais nas comunidades cristãs. Pessoalmente sou todo pessimismo quando se trata de acreditar que um dia nossa teologia alcance tal nível de consciência e humanidade. Não! Estou me referindo ao próprio direito e o reconhecimento que o homossexual exige de ter legitimada sua auto-percepção existencial. Porque até contra isso temos assistidos cruzadas político-religiosas promovidas sobretudo por evangélicos brasileiros. Para quem duvidar, assista com mais assiduidade os programas evangélicos das manhãs de sábado.

Fechando.

Ao menos entre nós, cristãos ocidentais, é patente essa parceria histórica entre religião e violência. Pelo que vimos, os cristianismos não têm se docilizado em nada nessa caminhada. O que eles têm feito é sofisticarem as formas com as quais encarniçam as sociedades com o odor de sua violência. Nesses dias, politicamente correto é ser violento simbolicamente, por meio da palavra e do sentido. Como eu disse, as marcas dessa violência sofisticada são tão dolorosas e cruéis quanto eram os instrumentos de tortura da Santa Inquisição. Em caso de dúvida, perguntem às vítimas.


quinta-feira, 14 de maio de 2009

RELIGIÃO E VIOLÊNCIA


Contra certas formas discursivas sobre a destrutividade humana

Talvez uma das maiores contradições potenciais da ideologia religiosa – também do nosso velho protestantismo – consista no fato de que ao confessar um conhecimento revelado, e, portanto, supostamente autêntico em relação ao sentido profundo do mundo e da vida, ela opere a construção da falsa consciência, naturalizando relações assimétricas de poder e sacralizando comportamentos humanos reprováveis e indesejáveis. Para usar uma ilustração, isto corresponderia ao cego que insiste no exercício da oftalmologia.

Um exemplo disso está num tipo de discurso religioso perante as múltiplas modalidades da violência humana.

O discurso de alguns grupos religiosos sobre a violência está entre aqueles que poderíamos chamar de discursos negados ao nível público. Esses discursos negados são aqueles que circulam somente no nível interno das comunidades, sendo aceitos somente depois do pesado trabalho de formação ideológica ali. Caso contrário, isto é, sem esse processo de formação na ideologia religiosa, nem mesmos os crentes seriam capazes de aceitar e reproduzir tais discursos. Se eles são negados ao nível público, é porque se tem consciência de que, no fundo, são absurdos, e só podem fazer sentido para sustentar uma cosmovisão caduca, arbitrariamente tirada da Bíblia.

Essa é uma realidade íntima de toda religião: ocultar certas convicções do nível público, sobretudo do discurso evangelizador, a fim de não escandalizar.

Vamos ao exemplo de um tipo discurso religioso sobre a violência humana.

Parafraseando Paulo Freire eu diria que o problema central de um certo discurso da religião sobre a violência é a produção da desproblematização do presente[1]. Em termos práticos, a desproblematização do presente se traduz numa atitude passiva e por vezes cínica em face de realidades brutais de violência. O caso alagoano é dos mais eloqüentes.

Se levarmos em conta os diversos constructos teóricos em torno desse fenômeno – a violência política, policial, midiática, simbólica, concreta, urbana, estatal, institucionalizada e etc. –, poderíamos dizer que Alagoas teve sua construção civilizatória feita à base de violências múltiplas, quase sempre como instrumentos de manutenção de um poder oligárquico e impiedoso. Em casos como esse, o silêncio, se não é filho da alienação, é o fruto de um profundo e reprovável cinismo. Jung Mo Song[2] tem razão quando afirma que o cinismo de certas ideologias (e teologias) não está naquilo que elas dizem, mas naquilo que elas não dizem.

Esse discurso sobre a violência que certos grupos religiosos negam ao nível público é justamente aquele que liga o recrudescimento desse fenômeno aos esquemas escatológicos fundamentalistas. Dito peculiarmente, a violência é interpretada aí como sinal dos tempos em sentido estritamente teológico. A meu ver, essa representação da violência enquanto sinal dos tempos seria teologicamente legítima se tivesse fundo crítico. Relações sociais pensadas teologicamente, sobretudo à luz símbolo Reino de Deus, exigem, entre outras coisas, que aquelas violências acima citadas sejam rejeitadas. Nesse sentido, a violência pode ser perfeitamente interpretada teologicamente como sinal dos tempos, desde que o fundo crítico subjaza essa leitura.

Infelizmente, não é o que ocorre na forma dos discursos religiosos mais comuns sobre esse fenômeno humano. Sinal dos tempos, nesses casos, é o mesmo que sinal escatológico para a Igreja. Isso é possível porque as Igrejas vivem do mal incurável de se auto-proclamarem como concretizações do Reino de Deus. Assim, todos os elementos da História que deveriam apontar para a irrupção do Reino de Deus são entendidos como sinalizações para as próprias Igrejas. O recrudescimento da violência humana seria um desses elementos. Quanto mais elementos “sinalizadores” desse tipo se manifestam, mais se afirma a atitude escapista e apolítica desses grupos.

Nilo Odalia[3] tem razão quando diz que o ato violento não traz em si uma etiqueta de identificação. Quase sempre desconhecemos as raízes profundas da violência com que temos contato, mormente por meio da mídia. Além disso, às vezes são múltiplas as interpretações sobre o mesmo ato violento. Todavia, isso não quer dizer que as raízes da violência em suas diversas faces nos sejam inacessíveis, inatingíveis e inapreensíveis. Erich Fromm chamou de análise da destrutividade humana o labor de compreender as razões profundas da violência. No seu caso, o trabalho consistiu numa etiologia psicológica desses impulsos destrutivos.

O discurso que representa a violência e seu recrudescimento como sinalização escatológica para as Igrejas, pelo contrário, não esclarece nada. Do contrário, obnubila a realidade e engendra a falsa consciência. Além disso, sacrifica no altar da alienação toda possibilidade de contra-ofensiva, corroborando, assim, condições sociais onde a violência pode continuar campeando.

Há, por sua vez, outro sério problema ainda ligado a este tipo de discurso representacional da violência.

É amplamente sabido que a hermenêutica fundamentalista é politicamente conservadora. Historicamente esse conservadorismo político dos religiosos conservadores se traduziu não somente em simples identificação ideológica, mas em freqüentes adesões e cooperações ativas em práticas “purgatórias” ou “inquisitoriais” direcionadas a elementos considerados subversivos: comunistas, revolucionários, liberais, e etc.

Na prática, essa falsa consciência leva a outros três terríveis equívocos: (1) sacraliza o Estado como instituição maior de gerência social; (2) identifica o “espírito legítimo” desse Estado com as ideologias políticas conservadoras; (3) e se torna cega para uma das piores formas de violência, que justamente a institucionalizada pela via estatal.

***

Não dizer não é o mesmo que não comunicar. O silêncio comunica, e comunica eloqüentemente, conforme a situação. Por outro lado, certas religiões são tristemente verborrágicas. Vivem da ânsia de tudo saber e de tudo vaticinar. Enchem de palavras vãs realidades inefáveis da existência. A violência humana, embora possa ser perfeitamente discernível, tem o seu quê de inefabilidade em função de sua ancestralidade. Resiste triste e recorrentemente a todo progresso do espírito.

É muito dizer que a violência tem suas raízes na alienação humana, que biblicamente chamamos de pecado? Sim, é muito! É uma espécie de resumo do assunto. Mas suas formas, motivações, modalidades, sutilezas e ardis são desdobramentos que talvez a religião não possa dar conta. Nesse caso, silenciar é melhor que embotar a realidade com palavras falsas e ilusórias. Se couber algum discurso religioso nessas horas, será aquele autenticamente identificado com a vida.




[1] Freire falava em desproblematização do futuro como fruto das concepções mecanicistas e fatalistas da história. Cf. FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia – Saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 2005.

[2] SONG, Jung Mo. Cristianismo de libertação: Espiritualidade e luta social. São Paulo: Paulus, 2007.

[3] ODALIA, Nilo. O que é violência. 3ª edição, São Paulo: Brasiliense, 1985.




domingo, 10 de maio de 2009

A FACE MATERNA DE DEUS


Um elogio das formas não-patriarcais da experiência religiosa

Quis a vida que minha formação humana de base fosse privada de uma influência materna conforme os padrões. Aos quatro anos de idade meus pais se separaram. Minha criação coube a meu pai. Isso era 1981. Hoje, 2009, eu completo um ciclo de 12 anos sem qualquer tipo de contato com a mulher que me concebeu.

É bem verdade que quer tenhamos sido criados pelo pai, quer ela mãe, nossa formação humana está perpassada significativamente pela cultura patriarcal. Assim como com o nascimento biológico trazemos inscritas em nossa constituição genética as predisposições biofísicas de nossa genealogia, com o nascimento cultural vão sendo impostas a nós as marcas de uma cultura onde vige o primado do macho. Então, ainda que em nossa criação familiar tenha prevalecido a figura da mãe, as demais instituições sociais – escola, igreja, mídia, etc. – permanecem como bastiões da cultura patriarcal. A internalização desses valores é, portanto, algo de que não podemos escapar.

Não obstante, tudo indica que a maternidade se configure como um dos símbolos mais adequados quando se trata de forjarmos nossas representações da existência humana, sobretudo quando se trata de nossa relação com a terra. Em contrapartida, a cultura ocidental – mormente o cristianismo – fez do pai a figura arquetípica por excelência. O que perdemos com isso?

É verdade, Jesus de Nazaré disse que Deus era Pai. Mais especificamente disse que Deus era Abba, que era a forma como as criancinhas diziam paizinho em aramaico. Mas também isso deve ser visto à luz do horizonte de seu tempo. Afinal, que afirmação humana sobre Deus tem o poder de ser unívoca? Deus é o mistério que transborda toda compreensão humana. Portanto, toda fala sobre Deus é uma espécie de golpe analógico. Só é possível dizer que Deus é Pai porque existe uma ínfima intersecção entre a paternidade divina e a paternidade humana. No entanto, elas não se confundem. A diferença qualitativa entre Deus Pai e o Homem Pai permanece infinita (Karl Barth).

Com efeito, se a possibilidade daquela analogia está atrelada na intersecção da experiência da paternidade divina e humana, temos muito mais motivos para dizer sem medo de cometer sacrilégio: Deus é Mãe. Porque essa intersecção é muito maior que aquela!

O recalque à maternidade e à feminilidade em Deus cresce com o desenvolvimento do ocidente. Em contrapartida, já a Torah sinalizava esse traço feminino e materno da divindade. Ruah, que é a palavra hebraica para Espírito, é uma palavra feminina. Segundo Antonio Magalhães, o relato mítico do Gênesis (pontualmente Gn 1,2) dá a entender que a ruah tenha sido uma espécie de útero da criação, isto é, o espaço vital que possibilitou o surgimento da vida. Calvino teria intuição semelhante ao adjetivar o Espírito Santo de fons vitae – fonte da vida –, o que lhe faculta a maternidade de todas as coisas.

Mas se o desenvolvimento teológico no ocidente – sobretudo em função das demandas da sociedade Greco-romana onde o Novo Testamento foi composto – consistiu num recalque à feminilidade e à maternidade na fala sobre Deus, é mister fazer menção a algumas tradições pouco conhecidas que expressaram essa sensibilidade. Jürgen Moltmann* em sua pneumatologia nos oferece inúmeros desses casos. No Evangelho dos Hebreus, por exemplo, se lê Jesus dizendo: “Logo tomou-me minha mãe, o Espírito Santo, por um de meus cabelos e transportou-me para o grande monte Tabor”. No escrito gnóstico-cristão Cântico das Pérolas a Trindade consiste em Deus como Pai, o Espírito Santo como Mãe, e no Cristo como Filho.

Para mim, o caso mais especial é o do Conde Zinzendorf, grande patriarca dos Irmãos Moravianos, para quem a Trindade, concebida segundo a imagem de uma família, era uma espécie de modelo da comunidade fraterna sobre a terra: “Como o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo é nosso verdadeiro Pai / e o Espírito de Jesus Cristo nossa verdadeira Mãe; porque o Filho do Deus vivo... é o nosso verdadeiro irmão. O Pai tem que nos amar e não pode fazer de outra maneira, a Mãe tem que nos guiar pelo mundo e não pode fazer de outra maneira, o Filho, nosso irmão, tem que amar as almas como sua própria alma, o corpo como seu próprio corpo, porque somos carne de sua carne e ossos de seus ossos, e não pode fazer de outra maneira”.

Moltmann conclui dizendo que “uma certa despatriarcalização da imagem de Deus tem como conseqüência também uma despatriarcalização e desierarquização da Igreja”. O dado triste disso tudo é o fato de que essas tradições estão entre aquelas que foram vencidas na história das Igrejas.

Sem dúvida o Deus estritamente patriarcal corresponde à uma hipostatização, no sentido de Feuerbach. Corresponde à projeção do desejo infinito de supremacia do masculino. Não há melhor fundamento que tal Deus para justificar as estruturas patriarcais tanto dentro das igrejas quanto fora delas. Nesse sentido Feuerbach, a meu ver, tem mais razão que Freud. Para o psicanalista vienense, Deus consistia numa produção do psiquismo universal a fim de socorrer os homens diante do seu infantilismo perante as intempéries da existência, perante as forças da natureza e, sobretudo, perante a realidade inescapável da morte. Mas Freud esqueceu que nesses casos é à mãe que suplicamos auxílio, e não ao pai.

Como eu disse mais acima, a intersecção entre a experiência materna-humana e a experiência materna-divina é muito maior que no caso masculino. Sim, Deus também é nossa Grande Mãe. Essa analogia também lhe cai muitíssimo bem!

Mãe, que como todas as mães, é fons vitae. Mas não é somente fonte da vida. É também vita vivificans. Mãe que, conforme Jesus de Nazaré, acolhe seus filhos e filhas tal como uma galinha acolhe seus pintos debaixo de suas asas (Lucas 13,34). Mãe que, conforme Isaías, consola como qualquer outra (Isaías 66,13).

Para mim já não há mais problema em pensar que o meu Deus (a minha imagem de Deus) é somente um produto de minhas projeções. Porque considero isso inescapável. Não há ato de fé e de crença em deuses e demônios, céus e infernos, que não se faça à base de projeções daquilo que nós somos. Nossa relação com Deus se dá sempre pela mediação da imagem que dele fazemos. Quem de nós põe em suspenso o turbilhão de pulsões, experiências, ambigüidades, memórias e desejos no ato de crer? Cremos com tudo isso. Melhor, cremos a partir de tudo isso. Nossa imagem de Deus quase sempre cumpre a função psicológica de aplacar os monstros e tapar buracos de nosso ser.

No meu caso, portanto, Deus é mais Mãe do que pai. Abaixo daquilo que Deus é em si mesmo, minha imagem dele me cura da ausência do amor materno-humano. Todas essas coisas, por sua vez, dizem respeito somente a nós mesmos. Deus permanece sendo o que é, a despeito de nossa fala sobre ele/ela e de nossas projeções ao seu respeito.

Ademais, reconhecer esse “rosto materno de Deus” (Leonardo Boff) seria uma forma sui generis de homenagear essa miríade de mulheres que sozinhas criam seus filhos, e por vezes anulam sua existência em função dos mesmos. Seria uma forma de homenagear esses seres que, assim como o Cristo, oferecem da própria carne para que seus filhos tenham vida.



* Cf. MOLTAMNN, Jürgen. O Espírito da Vida: Uma pneumatologia integral. Petrópolis: Vozes, 1999, p. 152-155.