domingo, 25 de dezembro de 2011

SERMÃO DE NATAL


Na última sexta-feira (dia 23) eu estava em casa, à noite, vendo um musical realizado por Sting, na cidade de Durham, Inglaterra (Sting é o vocalista da famosa banda inglesa de rock The Police). Sting cantava músicas com temas natalinos. Dava pra ver que o local se tratava de uma antiga catedral. Já faz tempo que algumas catedrais inglesas não servem apenas à religião. Agora elas servem também aos shows musicais. O Pr. Wellington nos interrogou muito nesses dias sobre o que seria “o verdadeiro sentido do Natal”, e o show de Sting, com músicas natalinas dentro daquela catedral, me fez pensar nisso.
Me peguei recordando as palavras do prof. Cícero Albuquerque que nós ouvimos na última terça-feira, na praça Sinimbu. Ele dizia que nesse período do ano temos verdadeiros “espetáculos de solidariedade”. É verdade. Guy Debord dizia que vivemos em uma “sociedade do espetáculo”. No fim do ano, muito mais! O Natal tem essa capacidade de fazer girar em torno de si uma infinidade de espetáculos. Talvez por que o mercado precise de espetáculos para lucrar mais.
Não vou negar: não gosto de ficar alimentando aquela polêmica comum em muitas igrejas – o Natal é bíblico? Jesus nasceu em 25 de dezembro mesmo? Todo mundo já sabe que a festa de Natal é fruto da cultura européia, assimilada pelo Cristianismo. De acordo com Frei Betto, “até o século 3, o nascimento de Jesus era celebrado no dia 6 de janeiro. No século seguinte mudou, em muitos países, para 25 de dezembro, dia do solstício de inverno no hemisfério Norte, segundo o calendário Juliano”.
O que os polêmicos de plantão esquecem é o que pelo menos três dos Evangelhos dão enorme importância ao nascimento de Jesus. Mateus nos dá detalhes sobre seu nascimento, narrando como Herodes quis matar o Cristo, e sobre a fuga da família de Jesus para o Egito. Lucas oferece ainda maiores detalhes do nascimento do Messias. Fala-nos da visita de Gabriel a Maria a fim de anunciar-lhe o nascimento do Salvador, da visita dos pastores ao menino Jesus, e de seus primeiros anos de vida. João, embora não dê detalhes históricos do nascimento de Jesus, oferece uma belíssima meditação sobre a encarnação do Verbo de Deus, resumida na declaração: “o Verbo se fez carne, e armou sua tenda entre nós, cheio de graça e verdade, e vimos a sua glória como do unigênito do Pai” (1,14).
Meus irmãos e irmãs, nosso Salvador nasceu, e por isso hoje temos esperança. Nosso Salvador nasceu, e por isso nossa vida já não é mais a mesma de antes. Nosso Salvador nasceu, e por isso, nós, que antes nem éramos povo, hoje somos chamados “povo de Deus”. Nosso Salvador nasceu, e por isso é que hoje somos uma família, membros de um só corpo. Nosso Salvador nasceu, e é por isso que hoje temos essa comunidade tão especial chamada IBP, que nos ajuda em nossa caminhada. Por tudo isso, devemos repetir: “glória a Deus nas alturas, e paz na terra às pessoas de boa vontade” (Lucas 2,14).
O que estamos fazendo aqui hoje? Celebrando o Natal? Sim! Mas não como uma festa do calendário religioso do Ocidente. Nós estamos celebrando hoje uma experiência de todo dia, uma experiência que temos vivenciado o ano todo.
Porque Natal, em primeiro lugar, é todo dia em que Deus for encontrado na humildade dos pobres. Seja em 25 de dezembro, ou 25 de março, ou 25 de agosto. O Emanuel – Deus conosco, o Deus Forte, Conselheiro, Pai da Eternidade e Príncipe da Paz – nasceu pobre, viveu como pobre, entre os pobres e para os pobres. Não tendo lugar para nascer, nasceu em uma estrebaria, junto com os animais. Deixem-me contar-lhes uma historinha que li nesses dias, de Leonardo Boff (viu Vando!).
Leonardo Boff atribui essa história a Lutero. Ele a conta assim:
Era uma vez um homem muito piedoso. Ele queria já neste mundo chegar ao céu. Por isso se empenhava em fazer mais e mais obras de piedade, de caridade e de humildade. Assim chegou, enfim, ao alto da escada da perfeição. Num certo dia, depois de grande devoção, subiu tanto que sua cabeça penetrou no céu.
Olhou em volta e ficou muito decepcionado.
Pois o céu estava escuro, vazio e frio.
É que Deus estava na Terra, numa manjedoura, tiritando de frio e no meio de animais.
E Boff completa:
Lição da história: devemos buscar Deus lá onde Ele verdadeiramente está, no meio dos pequenos, dos pobres e dos invisíveis. É onde ele está, lá é o céu, mesmo que seja num estábulo, de noite e no frio junto com animais.
No mês de junho deste ano, eu e o Pr. Wellington tivemos uma experiência natalina em uma escola da cidade de Jacuípe. Encontramos Deus em uma senhora idosa, desabrigada pelas enchentes desse ano, vivendo em condições subumanas, junto com outras tantas famílias daquela cidade. Nosso Natal começou dentro das barracas de lona esquecidas pelo estado, que abrigam as famílias atingidas pelas enchentes. Nessa semana, na terça-feira, nosso Natal aconteceu na praça Sinimbu, junto com as 11 famílias “sem terra” despejadas do campo pelo governo do estado, e instaladas desde então naquela praça. Não teve chester nem peru. Mas teve galinha velha e feijão tropeiro, feitos por irmãos que querem um pedacinho de terra para viver e trabalhar, mas que há 11 meses vivem em barracas improvisadas, entregues à sorte. E antes de ontem, nosso Natal aconteceu na Vila Emater, junto com centenas de crianças daquela localidade. Natal é todo dia em que Deus é encontrado no meio dos pobres.
Em segundo lugar, Natal é todo dia em que Deus é achado onde ninguém vê. Meus irmãos, naquela noite em Belém, se se perguntasse pelo Salvador, as pessoas certamente diriam: procure na sinagoga, procure em um templo ou num palácio. Quem suspeitaria que o Salvador poderia ser achado no lugar onde nasceu? Natal é toda vez que a gente acha Deus nas pessoas e nos lugares mais suspeitos desse mundo. Quero lhes contar outra estorinha. Na verdade, um pedaço de estória contada esses dias por Frei Betto. Ele diz que Jesus voltou à terra em dezembro do ano passado. Escute com atenção:
Sem chamar a atenção, Jesus voltou à Terra em dezembro de 2010. Veio na pessoa de um catador de material reciclável, morador de rua. Comia prato feito preparado por vendedores ambulantes ou sobras que, pelas portas do fundo, os restaurantes lhe ofereciam.
Jesus chegou a uma praça semiescura. Havia ali uma mulher excessivamente maquiada. Buscou um banco e ali se instalou para poder comer. A mulher se aproximou:
- Ei, cara, tem o que aí?
- Pão, salame e refrigerante.
- Não comi nada hoje. E a noite tá fraca. Faz duas horas que estou aqui e nada de freguês. Acho que em noite de Natal os caras ficam com culpa de pegar mulher na rua.
Jesus preparou o sanduíche e ofereceu-o à mulher, e disse:
- Se não importa de beber no mesmo gargalo...
- Tenho lá nojo de alguma coisa? – murmurou a mulher. 
- Se tivesse, não estaria rodando a bolsinha na rua.- Você não tem família?(Jesus)
- Tenho, lá na roça. Larguei aquela miséria pra tentar uma vida melhor aqui na cidade. Como não fui pra escola, o jeito é alugar meu corpo.
- Esta noite de Natal não significa nada pra você?(Jesus)
- Cara, você não imagina o que já chorei hoje lá na pensão. A gente era pobre, mas toda noite de Natal minha mãe matava um frango e, antes de comer, a família rezava um terço e cantava Noite feliz. Aquilo me deixava muito feliz. Não posso relembrar que as lágrimas logo inundam os olhos – disse ela, puxando o lenço de dentro da bolsa.
A mulher fez uma pausa para enxugar as lágrimas e indagou:
- Acha que, se Jesus voltasse hoje, esse mundo iria melhorar?
- Não sei... O que você acha?
- Acho que ninguém ia dar importância a ele. Essa gente só quer saber de festa, e não de fé. Mas bem que ele podia voltar. Quem sabe esse mundo arrevesado tomava jeito.
- Eu não gostaria que ele voltasse. Não adiantaria nada. Há dois mil anos ele veio e deixou seus ensinamentos. Uns seguem, outros não. Se o mundo está desse jeito, a ponto de eu ter que catar lixo e você alugar o corpo, a culpa é nossa, que não damos importância ao que ele ensinou. Veja, hoje é noite de Natal. Jesus renasce para quem?
- No meu coração, ele renasce todos os dias. Gosto muito de orar, não faço mal a ninguém, ajudo a quem posso. Mas, sabe de uma coisa? Eu gostaria de poder falar com Jesus, assim como nós dois estamos conversando aqui.
- E o que diria a ele?
- Bem, eu perguntaria se ser prostituta é pecado. Já vi um padre dizer que sim, e ouvi outro falar que não. O que você acha?
- Acho que Deus é mais mãe do que pai. E lembro que Jesus disse um dia aos fariseus que as prostitutas iriam entrar no céu primeiro que eles.

Nem precisa comentar.
Em terceiro lugar, Natal é todo dia em que nossa religião perde a seriedade dos adultos, e ganha a leveza das crianças. Como alguém disse semana, Deus entrou na História como uma criança, uma simples criança judia. Natal é toda vez que a gente olha o mundo com os olhos de uma criança (e conforme o Pr. Wellington na semana de oração), quando a gente “julga os outros” com o mesmo rigor das crianças. Nossas igrejas são sérias demais em julgar os outros. Deveríamos cultivar a leveza mais do que a doutrina. A brincadeira mais do que o dogma. O perdão mais do que a disciplina. Lembrei de um poema de Fernando Pessoa chamado “O guardador de rebanhos”.
Vou ler apenas pequenos trechos da Parte VIII. Recomendo que vocês o procurem e o leiam inteiro:
Num meio-dia de fim de primavera
Tive um sonho como uma fotografia
Vi Jesus Cristo descer à terra,
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.

Tinha fugido do céu,
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras,
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem
Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três,
Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural,
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso é que eu sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.
E a criança tão humana que é divina
É esta minha quotidiana vida de poeta,
E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre,
E que o meu mínimo olhar
Me enche de sensação,
E o mais pequeno som, seja do que for,
Parece falar comigo.
Esta é a história do meu Menino Jesus,
Por que razão que se perceba
Não há de ser ela mais verdadeira
Que tudo quanto os filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam?
 
Quando eu era criança, meu pai fazia questão de dar belos presentes a mim e a meu irmão mais novo. Nossa casa, no recôncavo da Bahia, ficava toda enfeitada no Natal. A árvore de Natal era feita com um graveto seco, enrolado em algodão, com aquelas tradicionais bolas que quebram com um sopro (quem aqui teve uma igual?). Engraçado, nunca nos questionamos como era possível uma árvore nevada no nordeste brasileiro! Em uma manhã de Natal, e meu irmão acordamos cedo e lá ao pé da árvore estavam duas carretas de brinquedo enormes. Tinha motorista dentro, amortecedores, pneus de borracha, lugar pra pôr gasolina, etc. A minha era a vermelha, a do meu irmão era azul. Digo isso porque éramos uma família pobre, e agora eu sei que aquelas carretas haviam custado muito caro. Ficamos doidos de felicidade! Saímos correndo em nossa rua mostrando aos amigos aquele maravilhoso presente trazido por Papai Osmundo Noel.
Meus irmãos, nossa religião deveria ser assim: ao invés de ser feita de gente que vive julgando e perseguindo os outros, nossa religião deveria consistir em gente embriagada de alegria (como aqueles meninos do recôncavo), falando ao mundo sobre a beleza da salvação em Cristo Jesus, o maior presente que Deus nos deu.
Por último, Natal é toda vez que nosso coração torna-se tão simples como uma manjedoura, a ponto de acolher o Salvador. É por isso que hoje, para nossa comunidade, não é dia de celebrar um feriado do calendário. O Natal na IBP tem sido o ano todo, em nossa busca por “profundidade e simplicidade na vida comunitária”. 
Terminando, volto àquela coisa de saber o que é o verdadeiro Natal. E eu não ia terminar esse sermão sem citar as coisas do Face Book, não é? André Bigode: “se o Natal é verdadeiro, há de ser o ano inteiro”. Ascânio Júnior: “que o Natal nordestino aconteça o ano inteiro, com amor, bom senso e justiça”.
Amem !!! 

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

TRÊS MENSAGENS PARA O NATAL (2008)


O Evangelho nos constrange a celebrar o Natal diferenciadamente. Depois que a gente conhece, experimenta e vive o Evangelho de Jesus Cristo, nós ficamos desautorizados a celebrar o Natal da mesma maneira que todo mundo. Poderemos até fazê-lo, mas será sacrilégio. Portanto, os rituais todos que acompanham essa data podem perfeitamente ser observados por nós, conquanto que estejam encharcados do Evangelho!
Reúna sua família! Reveja aqueles e aquelas cuja existência lhe uniu consanguineamente. Brinde, cante, celebre em comunhão com os seus. Reafirme esses laços de afeto, pois família é aquela coisa que sempre estará presente quando todos estiverem ausentes. Mas não esqueça de uma coisa: que um dos grandes intentos do Emanuel é fazer desse mundo uma fraternidade, é fazer desta terra uma Grande Família. Jesus radicalizou tanto esse propósito que chegou a dizer: "minha mãe e meus irmãos são aqueles que fazem a vontade de meu Pai". Portanto, quando você estiver reunido em família lembre desse projeto análogo de Deus, e, se puder, se engaje nele!
Ceie com os seus! No que estiver em seu alcance, repita um dos hábitos mais recorrentes de Jesus registrado nos Evangelhos: comer com quem se gosta. Não exagere, afinal, mesmo pelo fato de nenhum pastor ou padre pregar contra glutonaria, ela ainda assim é o que é: pecado (principalmente para o corpo). Reúna-se à mesa, ore com os seus, diga alguma coisa inspirada que sempre nos vem nesses momentos, e coma. Mas não esqueça algumas coisas. Há, no Brasil, mais de 32 milhões de famílias que não têm o que comer todos os dias. Também ninguém prega esse sermão na Igreja, mas é pecado dos mais vis. Não esqueça também que "nem só de pão, peru e chester vive o homem, mas também do conteúdo sólido do Evangelho, isto é, da Palavra de Deus". Então, ao cear, abrace esses dois projetos, um social, o outro pessoal: lutar contra a miséria e nutrir-se também do Evangelho.
Adorne sua sala com enfeites natalinos e com a tradicional árvore. Cuide da casa, limpe a fachada, deixe tudo com cara nova, afinal, ferve a expectativa de um novo ano, quem sabe tempo de boas novidades. Não gosto dos pisca-piscas, mas se lhe convir, por que não? Só não esqueça de algumas coisas: nem sempre o adorno da fachada é o importante; na maioria das vezes serve de esconderijo para feiúras, traumas, pesares e injustiças. Portanto, nesse tempo não esqueça de adornar seu interior. Faça uma faxina também na psique. Tire daí esse lixo emocional que é praga das piores. Uma vez feito esse exercício, tudo do lado de fora fica limpo, tudo brilha, por tabela!
Dê presentes às pessoas que você estima: filhos, parentes e amigos! Eu mesmo sou de opinião de que a satisfação de quem dá o presente é maior e melhor do quem a de quem recebe. Não precisa ceder às tentações mercadológicas dessa época. Afinal, quem gosta de iniciar o ano novo já mergulhado em dívidas? Deus me livre! Mas, mesmo que singelos sejam os presentes – um cartão, um lembrete, um suvenir qualquer –, presenteie a quem você ama. Mas não esqueça de uma coisa: se você não ganhar presente de ninguém, o maior presente foi dado por Deus a todos – Emanuel, Deus conosco, Jesus Cristo. É o presente mais sublime, e é de graça e cheio de Graça! Lembre-se também que, conforme Jesus disse e São Francisco de Assis ratificou, é muito melhor dar que receber!
Enfim, não deixe esse tempo ser natal, mas Natal. Ou melhor, NATAL!!!
E não esqueça do fato de que é o Evangelho que nos constrange a todas essas coisas. Caso isso não ocorra, terá sido somente mais um feriado vazio. Terá sido somente mais uma celebração tradicional aprendida na cultura, como tantas outras. Terá sido submissão à voracidade capitalista de fim de ano. Terá sido exercício de formalidades coletivas sem qualquer significado em consonância com o que sentimos interiormente. Terão sido somente atos mecânicos, sem enraizamento na profundidade do ser. Terá sido natal, ou talvez Natal, mas nunca NATAL.
*** 
Todo nascimento de uma nova criança é um grito de esperança do mundo contra a maldade dos homens. Toda nova criança concebida é um grito de fé da natureza, um facho de luz em meio às trevas que os homens lançaram sobre a criação. Todo nascimento de um ser humano é uma espécie de Natal, uma vez que cada pessoa carrega em si um leque de enormes potencialidades, boas e ruins. À medida que os sujeitos vão crescendo a gente vai se dando conta de quais potencialidades latentes vão se evidenciando neles. Mas, enquanto criança, tudo é expectativa e apreensão. O pequeno Luís Inácio da Silva, mais um menino pobre entre os milhares do nordeste, carregava silenciosamente uma potencialidade que mais tarde ficou patente. O pequeno Paulo Freire, também menino pobre do nordeste, alfabetizado já adolescente, carregava silenciosamente sementes que mais tarde brotariam fantasticamente, e que hoje todos nós conhecemos bem. Também o pequeno Adolf Hitler, um dócil alemãozinho, carregava silenciosamente em sua infância uma potencialidade latente, mais tarde tornada patente, infelizmente.
Uma criança, portanto, é um vulcão adormecido.
Há coisa de dois milênios, na periferia de uma das províncias do Império Romano, nascia uma criança cujo primeiro feito fora inflamar a todos com profundas esperanças. Acerca desse menino já os profetas diziam: "o nome dele será Maravilhoso Conselheiro, Deus Forte, Pai da Eternidade e Príncipe da Paz" (Isaías 9,6). Conselho, força, paternidade e paz foram as primeiras virtudes esperadas da potencialidade daquele menino. Depois, deram-lhe o nome de Emanuel (Mateus 1,23), que quer dizer "Deus conosco", na esperança de que aquele menino fosse uma epifania ambulante do próprio Deus. Por fim, referiram-se ao menino como "Salvador e Senhor" (Lucas 2,11), como quem vê o invisível no visível, o infinito no finito, a força na fragilidade e o divino no humano. Somente a esperança é capaz dessas doces contradições.
É bem verdade que no início de tudo essas esperanças eram bem locais e nacionalistas. O menino era uma esperança para Israel, que vivia uma história milenar de cativeiro e subjugação nas mãos dos egípcios, assírios, babilônicos, medo-persas, gregos e romanos. Mas havia no menino alguma coisa grandiosa demais que não cabia em projetos locais e nacionalistas. A força da esperança que dele radiava rompeu todas as barreiras geográficas, e desde cedo a esperança que o menino evocava começou a se espalhar por toda terra.
Era um vulcão.
Foi soltando labaredas para o alto. E elas foram alcançando outros lugares, outras pessoas. Nunca cessou. Nos alcançou aqui, nesse tempo e nesse lugar.
Nele, nossos corações continuam inflamados de conselho, força, paternidade e paz. Conselho, porque na peregrinação da vida muitos caminhos nos são oferecidos, enquanto outros se insinuam, e no meio dessas bifurcações oMaravilhoso Conselheiro nos acalma e nos diz: "vem e me segue... ou, joga a rede desse lado...". Força, porque por vezes nos fatigamos e nossos joelhos ficam trôpegos de tanto caminhar. Então chega o Deus Forte e diz: "deixa, Eu te carrego...". Paternidade, porque por vezes ficamos órfãos, desamparados, desprotegidos, vulneráveis. Justamente aí oPai da Eternidade sussurra ao nosso ouvido: "meu filho, estou aqui...". E paz, porque mesmo crédulos, somos por vezes possessos de medo, pavor, desconfiança, instabilidade e insegurança. Então, vem o Príncipe da Paz e diz: "dou a vocês a minha paz...".
Isso é Natal. Quem souber de um que seja melhor e diferente desse, por favor, me avise!
***
Anselmo de Cantuária (1033-1109 d.C.), teólogo escolástico da Igreja Cristã, fez uma pergunta capital para a compreensão do mistério da Revelação: Cur Deus homo? Ou, traduzido do latim, Por que Deus se fez homem? Natal é justamente a época de desenterrar essa pergunta de nossa tradição. É tempo de mais uma vez queremos saber as razões da Encarnação. João, o Evangelista, se contenta em dizer que “A Palavra se fez carne e armou sua tenda entre nós” (1,14). Com Anselmo, mais uma vez perguntamos: por quê?
Os antigos gnósticos foram os primeiros a desconfiar da Encarnação. Em suas variadas formas, todos eles defendiam a idéia de que nunca houve essa coisa de “Deus se fazer homem”. Jesus havia sido um “espectro”, como diziam os docetas. A carne, como toda matéria, era impura demais para abrigar a Encarnação da divindade. A matéria era o abrigo do mal, portanto, indigna de acolher e abrigar corporalmente qualquer resíduo de bem, e muito menos O Bemem plenitude. Para os gnósticos, portanto, qualquer Natal é a celebração de um sacrilégio. [Há muitos gnósticos em nosso tempo.]
Para nós, não-gnósticos, parece mesmo que as razões da Encarnação se encontram ocultas somente em Deus. Mas desconfio de uma coisa: “Deus se fez gente porque ser gente, apesar dos pesares, é muito bom!” Ele poderia ter encarnado em um animal qualquer, e ser uma espécie de “Totem dos Totens”. Mas não quis!
Daí pra frente, o que se vê no mistério da Encarnação é um mundo de contradições... Doces contradições!
I.
Jesus poderia ter armado sua tenda numa linhagem nobre. Ter nascido num palácio, ou, à semelhança de Moisés, ter sido ao menos educado sob as tutelas da realeza. Poderia ter armado sua tenda entre os Césares de Roma, donos do mundo na época. Poderia ter nascido sob os cuidados mínimos devidos a qualquer pessoa desse mundo, independente de sua condição existencial. Nada disso lhe teria sido privilégio. Tudo isso lhe teria sido absolutamente natural. Afinal, não é Deus o Autor de todas as coisas? Nada mais justo que, ao encarnar-se, serem-lhe oferecidas as condições mais honrosas e pomposas da terra. Mas não quis!
II.
Pelas razões que só Ele mesmo conhece – e é sem nenhum anti-semitismo que eu digo isso –, armou sua tenda na escória da terra, entre o povo judeu [Escória não num sentido étnico, mas pelo fato dos judeus virem carregando o fardo milenar da opressão por outros povos]. Por que não ter armado sua tenda entre os poderosos romanos? Poderia ao menos ter pertencido à elite sacerdotal de Jerusalém. Pronto, estaria mais adequado! Mas, outra vez, não quis. Preferiu uma família pobre do interior, da cidade de Nazaré, cujo sustento dependia de um carpinteiro. Pelo menos à sua concepção eram devidas as honras mínimas. Mas contraditoriamente nasceu em local destinado à alimentação dos eqüinos, cujas nossas Bíblias aliviam semanticamente chamando de “manjedoura”. Fica romântico demais. O jeito mais ajustado é chamar de “cocho” mesmo. Pergunte ao homem da roça se não é assim?
As razões disso? Pertencem somente a Ele mesmo!
III.
Por último, tudo era favorável a que levasse uma vida de regalias e bajulação. Servi-lo seria mais que uma obrigação: seria uma dívida imputada aos homens. Contudo, surpreendentemente optou viver como pobre e como “servo de todos” (Marcos 10,45). Lavou os pés dos discípulos e disse parabolicamente que se tratava de um exemplo a ser seguido (João 13,1-17). É por tudo isso que os primeiros cristãos diziam num cântico que Ele havia “se esvaziado de si mesmo e assumido a forma de servo...” (Filipenses 2,7).
Não sei se essa resposta satisfaria ao Anselmo de Cantuária, mas parece que Deus se fez homem para, entre outras coisas, mostrar aos homens que há uma maneira ainda melhor de ser gente: no serviço ao outro em humildade de coração!
Outra vez, isso é Natal. E quem souber de um que seja melhor e diferente desse, por favor, outra vez me avise!
Dezembro de 2008

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

CONFISSÕES DE UM PREGADOR


“Se anuncio o Evangelho, não tenho de que me gloriar, pois pesa sobre mim essa obrigação; porque ai de mim se não pregar o Evangelho” (1Co 9,16)

Eu sou um pregador do Evangelho do Jesus Cristo.
Das coisas que venho fazendo na vida, esta talvez seja a que me dê maior prazer. Hoje, penso em pregar esse Evangelho até o fim de minha vida. Não tenho certeza se terminarei meus dias vivendo do Evangelho. Mas quero terminá-los pregando-o. Já mudei de idéia, na fé, incontáveis vezes. Sempre quis ter a cabeça aberta às mudanças. Mas nunca mudei minha autopercepção como um pregador. Já preguei em todo tipo de congregação: nas pentecostais e nas tradicionais; nas ricas e nas pobres; na cidade e na zona rural; nas capitais e nas cidades do interior; em templos e em casas; em praças e em cima de trios elétricos; em todo tipo de lugar e para todo tipo de público.
Contudo, se nossa percepção da fé, do mundo, das pessoas, da vida, de nós mesmos, vai mudando – amadurecendo, penso eu –, o conteúdo de nossa pregação também vai. Já disse muita coisa nos púlpitos por onde passei que não diria hoje. Já privilegiei temas que não privilegiaria agora. Já interpretei passagens da Bíblia de uma forma que não repetiria atualmente. Quando eu era menino, pensava como menino, sentia como menino e pregava como menino. Não posso me arrepender de nada do que disse, porque quando reconhecemos que o que dissemos foi produto de uma época pregressa de menos amadurecimento, então o que dissemos não pode ser visto como equívoco. Talvez mais à frente eu questione essas palavras que agora escrevo, considerando-as como fruto deste tempo em que vivo e da minha compreensão atual do que é a fé.
Por isso, escrevo esse texto para possíveis pessoas que, porventura, pensem em me convidar hoje como pregador do Evangelho. É bem verdade que nunca deveríamos convidar um pregador baseado em nossas próprias expectativas. Mas a idéia é a de evitar constrangimentos e desapontamentos desnecessários.
Se você for me convidar como pregador hoje, saiba, em primeiro lugar, que gosto de pregar mais sobre a fé deJesus do que sobre a fé em Jesus. Talvez você não veja tanta diferença entre as simples preposições de em. Saiba que para mim essas preposições fazem toda a diferença, e que, em minha opinião, a fé de Jesus é muito diferente da forma como a maioria das pessoas crê em Jesus. A fé de Jesus é fé no Pai (Abba) que é Nosso, ao tempo em que a féem Jesus quase sempre é a fé em um Pai que é Meu, de Minha Igreja. A fé de Jesus é fé também nas pessoas, algumas delas consideradas impuras, hereges e distantes de Deus, ao tempo em que a fé em Jesus quase nunca é fé nas pessoas, além de ser motivo para demonização, perseguição e exclusão de pessoas que pensam e vivem de modo diferente do nosso. A fé de Jesus é uma força que leva ao serviço, ao posicionamento explícito do lado dos oprimidos, e ao risco do confronto com os opressores desse mundo. Já a fé em Jesus quase sempre leva ao quietismo, à salvação da alma individual, e atualmente ao consumismo e à exaltação dos valores preconizados pelo Capitalismo.
Se você for me convidar como pregador hoje, saiba, em segundo lugar, que gosto mais de pregar sobre problemas humanos, sobre dilemas coletivos como a pobreza, o racismo, a homofobia, a falta de segurança, a corrupção política, a inércia da sociedade, a exploração econômica e outros temas que dizem respeito à vida concreta das pessoas. Saiba que não privilegio hoje esses temas por mera sofisticação acadêmica ou vaidade intelectual. Privilegio atualmente esses temas porque os vejo, de alto a baixo, fervilharem na própria Bíblia. Saiba que em minha opinião, esse trabalho que os chamados “movimentos sociais” realizam hoje, é o mesmo trabalho que as igrejas declinaram de fazer ontem. Saiba que ao enfatizar essas coisas, me movo com a consciência de quem está querendo resgatar uma dimensão fundamental da fé cristã, testemunhada na Bíblia pelos profetas, por Jesus de Nazaré e pelas comunidades cristãs primitivas. Portanto, se você for me convidar como pregador hoje, fique certo de que não vou me fundamentar em Marx, Engels ou Che Guevara. Talvez eu possa vez por outra me aproximar deles no que convergirem com a minha percepção do Evangelho. Mas é de Isaías, Amós e Jesus de Nazaré, que meu discurso partirá certamente.   
Se você for me convidar como pregador hoje, saiba, em terceiro lugar, que gosto de usar toda a amplitude do termo “salvação”. Gosto especialmente da forma como no Antigo Testamento se falava em salvação, isto é, como um evento de dimensões históricas que trazia de volta a paz, a harmonia e a alegria do povo em meio a situações de crise e de perigos para a existência das comunidades. Gosto especialmente da forma com que Jesus se dirigia às pessoas, depois de algum milagre, dizendo-lhes “a tua fé te salvou”, sem alusão a nenhum compromisso institucional. Gosto dessa salvação como o fim de um sofrimento físico, espiritual, psicológico e comunitário, como aquela que recebeu a mulher do fluxo de sangue. Gosto dessa salvação que é o resgate das potencialidades da vida, da possibilidade de voltar a viver como “gente comum”, no meio dos outros, sem olhares julgadores, com a autoestima elevada. Creio na salvação como “vida eterna” aqui e no porvir. Mas se você for me convidar como pregador hoje, saiba que não uso, já há algum tempo, a Idéia do Inferno como ameaça teológica e como meio de coação para a salvação eterna e para o ingresso na igreja.    
Se você for me convidar como pregador hoje, saiba, em quarto lugar, que gosto de ler a Bíblia de forma muito livre, confiando no auxílio do Espírito Santo, com meu espírito aberto à voz de Deus, usando ferramentas científicas que me ajudam na tarefa hermenêutica, e tendo a Jesus como “princípio interpretativo”. Saiba que em lugar de ver na Bíblia um escrito psicografado por Deus através de certas pessoas, vejo nela um testemunho fantástico da caminhada do povo de Israel, produzido à luz de sua fé em Deus e das promessas messiânicas. Saiba que vejo na Bíblia um livro extraordinário, mas que pode ser tanto “palavra de Deus” quando lido e interpretado em função da vida, quanto “palavra do Diabo Humano” quando lido e interpretado para fundamentar violências simbólicas, exclusões e perseguições de toda sorte. Saiba que considero algumas porções do texto Bíblico como frutos da História, sem vigência atual, totalmente ultrapassadas, vencidas pela compreensão trazida por Jesus de Nazaré, que considero como Ponto de Plenitude da Verdade. Fique sabendo que Jesus é meu “princípio interpretativo”, e que considero “palavra de Deus”, na Bíblia, tudo aquilo que converge com o ensino de Jesus sobre as coisas da fé. Saiba que para mim, a Bíblia oferece as melhores dicas para o tipo de convivência humana sonhada por todos os povos – sendo assim Palavra de Deus.
Por último, se você for me convidar como pregador hoje, saiba que gosto de pregar sobre um Deus incompreensível e incognoscível para qualquer fé e qualquer teologia, que ama incondicionalmente tudo aquilo que criou. Saiba que me esforço para permanecer fiel ao maior legado que o Protestantismo Antigo nos trouxe, e que os novos protestantismos esqueceram: a fé na Graça de Deus. Saiba que creio na Graça como um presente dado ao universo inteiro. Como dom de toda existência, e como oceano no qual está mergulhado o próprio Ser. Fique sabendo que não creio na Igreja como “mediadora exclusiva dessa Graça”, mas creio nela como lugar potencial de acolhimento da Graça, e como comunidade onde a fraternidade e a esperança podem ser muito bem orientadas. Saiba que considero a dogma Extra Ekklesia nula sallus – fora da Igreja não há salvação – uma heresia, uma declaração de absoluta arrogância, e uma tolice total. Saiba que creio em um Deus que ri de certas convicções dogmáticas, e que, por conta dessa Graça, guarda grandes surpresas para aqueles que vivem seguros em si mesmos acerca de sua condição espiritual no mundo.
É assim que prego o Evangelho hoje. Prego como forma de gratidão pelo que o próprio Evangelho fez em mim. Como disse Paulo de Tarso, prego como forma de “constrangimento existencial”, porque “ai de mim se não pregar o Evangelho” (1Co 9,16). Talvez depois destas confissões me sobre pouco espaço para pregar nas igrejas. O que pouca gente sabe é que os cristãos, historicamente, começaram a se confinar em templos religiosos já na fase de “constantinização” de sua fé. O próprio Jesus tinha nas sinagogas e no Templo apenas mais dois espaços, entre outros tantos, para sua pregação. Na maior parte do tempo sua pregação se dava mesmo era nas ruas, nas casas, nos espaços públicos, e em qualquer outro ambiente onde pessoas quisessem lhe ouvir. Eu também trabalho para fazer do mundo o meu púlpito, onde pregar possa ser mais do que falar,  sobretudo viver.
Amem. 

domingo, 20 de novembro de 2011

TIRAR DA CRUZ OS POVOS NEGROS

Olá pessoal!


No dia 20/11/2011, Dia da Consciência Negra, eu preguei uma mensagem visando mostrar porque temas como esse deveriam fazer parte do ensino cotidiano das igrejas cristãs. Usando a imagem de Simão Cirineu (Mt 27,32/Mc 15,21/Lc 23,26), um negro obrigado a carregar a cruz de Jesus, eu desafiava aos presentes a contribuir para tirar a cruz dos negros em nossos dias. Mensagem intitulada "Tirar da cruz os povos negros"pregada no culto vespertino da IBP.


Para assisti-la, CLIQUE AQUI!


Abraços fraternos!

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

TRIBUTO A JOSÉ COMBLIN

Olá irmãos e irmãs!


No dia 27 de março desse ano a teologia latino-americana perdeu um de seus mais criativos representantes: o Pe. José Comblin. Nascido na Bélgica em 1923, mas radicado no Brasil desde 1957, Pe. Comblin é considerado uma das mentes mais lúcidas dentre aquele círculo de teólogos identificados com a Teologia da Libertação. 


Para nosso último encontro da FTL-AL em 2011, decidimos prestar um tributo a um dos teólogos que mais honraram o tema da "opção preferencial pelos pobres". Neste encontro, o Pr. Paulo César Pereira (Igreja Batista nos Bultrins, Olinda-PE) nos trará uma comunicação baseada em seu trabalho de mestrado (aprovado com distinção na Universidade Católica de Pernambuco) sobre a teologia pastoral de Comblin. Os detalhes seguem abaixo.


TEMA: "Pastoral urbana: uma abordagem a partir do teólogo Joseph Comblin"
ORADOR: Pr. Paulo César Pereira (Olinda-PE)
LOCAL: Igreja Batista do Pinheiro (Maceió-AL)
DIA/HORA: 03 de dezembro, às 9:00h
INVESTIMENTO: R$ 5,00
REALIZAÇÃO: FTL-AL, IBP e Aliança de Batistas do Brasil

*Haverá um café regional servido aos presentes. 

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

A MESA DE DEUS

Olá todos e todas!


Segue a mensagem pregada por mim no culto da EBD do dia 06/11/2011. Baseado no primeiro capítulo do livro de Daniel, meditei no tema "A mesa de Deus". Usando a metáfora de uma mesa farta, eu desafiava os presentes a resistir aos "manjares do rei", e a fartarem-se do alimento simples que Deus oferece. No fim das contas, são os alimentos simples, oferecidos na "mesa de Deus", que nos sustentam em nossas crises e intempéries na vida. Espero que a mensagem seja proveitosa a todos e todas!


Para assistir à mensagem, CLIQUE AQUI!


Abraços fraternos! 

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

RESENHA DE “CINCO MENTES PARA O FUTURO”


GARDNER, Howard. Cinco mentes para o futuro. Tradução de Roberto Cataldo Costa, Porto Alegre: Artmed, 2007, 159p.
***
Me surpreendi com a leitura de Cinco mentes para o futuro, do psicólogo norte-americano Howard Gardner. Certamente isso se deve à expectativa em torno dessa leitura, ligada ao trabalho pregresso de Gardner.
Howard Gardner é um prestigiado psicólogo cognitivista, que se tornou mundialmente conhecido por conta da Teoria das Inteligências Múltiplas[1]. As definições da inteligência humana quase sempre estiveram circunscritas ora ao raciocínio lógico-matemático, ora à capacidade de resolução de problemas e processamento de informações, quando não à mera capacidade mnemônica. O próprio conhecimento psicológico ajudou a popularizar esses reducionismos por meio dos famosos testes de quociente de inteligência (QI). Inteligência, nesses termos, se resume às capacidades cognitivas ligadas às operações de raciocínio lógico-abstrato e formal, altamente valorizados pela cultura ocidental.  
Com a Teoria das Inteligências Múltiplas, Gardner propõe elevar ao status de inteligência algumas capacidades humanas antes descritas apenas como “habilidades” ou “talentos”. Dessa forma, as capacidades sinestésico-corporais, as habilidades musicais e linguísticas, as habilidades espaciais, interpessoais e intrapessoais, e também as habilidades lógico-matemáticas, são elevadas ao status de inteligências. Há grande profusão de publicações entre livros e artigos, do próprio Gardner e de seus colaboradores, destinados à difusão da Teoria das Inteligências Múltiplas. Por motivos óbvios, Gardner tornou-se um teórico de interesse para diversos campos acadêmicos, sobretudo para a pedagogia. No Brasil, no campo dos estudos pedagógicos, Celso Antunes tem sido o maior difusor dessa teoria[2] 
Em minha opinião, a novidade de Cinco mentes para o futuro consiste no fato de se tratar de livro de opiniões, distinguindo-se do estilo anterior de Gardner, balizado por um amplo aparato empírico e heurístico. Platão compreendia a tarefa da filosofia como o movimento da doxa (doxa = opiniãopara a episteme (epistémé =conhecimento). Gardner, com Cinco mentes para o futuro, parece ter feito o caminho inverso.
Gardner tem em mente as demandas culturais do futuro – principalmente aquelas do universo da educação e do trabalho –, e seu livro consiste numa espécie de bússola para os cidadãos que estiverem dispostos a ter um lugar nesse futuro. Aqui já aparecem, a meu ver, alguns pontos passíveis de crítica nesta obra. Gardner não chega a problematizar os arranjos culturais, políticos e econômicos aos quais se refere. Toma-os como realidades objetivas com as quais os sujeitos devem adaptar-se. Portanto, o livro é marcado por uma postura profundamente acrítica, e por vezes propagandística em relação às configurações de mercado. Sua preocupação é oferecer pistas de sobrevivência a um arranjo cultural, notoriamente identificado com o american way of life.
Em sua prescrição, cinco tipos de mentes estarão mais aptas à sobrevivência nos arranjos culturais do futuro: a mente disciplinada, a mente sintetizadora, a mente criadora, a mente respeitosa e a mente ética. Em nosso entender, o que Gardner descreve como “tipos de mente”, deveria ser descrito como “habilidades mentais”. É bem verdade que dificilmente um indivíduo consegue desenvolver todas as habilidades mentais aqui listadas. Há aqueles que se especializam em uma ou em outra, e aqueles que conseguem ter certo domínio de mais de uma dessas habilidades. Mas não estamos certos de que as aptidões cognitivas de um indivíduo possam ser reduzidas a uma dessas habilidades mentais, de tal maneira que se configure como um “tipo de mente”. Assim, em lugar de falar em um indivíduo com uma “mente sintetizadora”, por exemplo, preferimos falar em indivíduos com grandes potenciais de sínteses, entre outras habilidades mentais.
Para Gardner, a mente disciplinada é aquela marcada pela capacidade de empregar as formas de pensamento associadas a importantes disciplinas acadêmicas (história, matemática, ciências, arte, etc.) e importantes profissões (direito, medicina, gestão, finanças etc., bem como ocupações e ofícios), além de ser capaz de se aplicar de forma diligente, melhorando permanentemente e continuando além da educação formal.
mente sintetizadora seria aquela capaz de escolher as informações cruciais entre a enorme quantidade disponível, e de organizar essa informação de maneira que façam sentido a si e aos outros.
mente criadora seria aquela capaz de ir além do conhecimento e das sínteses existentes para propor novas questões, oferecer novas soluções, realizar trabalhos que levem mais longe gêneros atuais ou configurem novos, sendo que a criação parte de uma ou de mais disciplinas estabelecidas e requer um “campo” informado para fazer julgamentos de qualidade e aceitabilidade.
mente respeitosa seria aquela capaz de buscar responder de forma simpática e construtiva a diferenças entre indivíduos e grupos, buscar entender e trabalhar com aqueles que são diferentes, e ir além da mera tolerância e da atitude politicamente correta.
mente ética seria aquela capaz de abstrair características cruciais de seu papel no trabalho e como cidadão e agir de forma coerente com essas conceituações, além de esforçar-se para realizar bom trabalho e boa cidadania.
Gardner disserta sobre cada uma dessas mentes buscando fazê-lo a partir dos contextos educacional e do trabalho. É daí, majoritariamente, que surgem seus exemplos, e é para as demandas futuras da educação e do trabalho que suas prescrições são direcionadas. Como bom cognitivista, há também uma preocupação com a periodização do surgimento e do desenvolvimento de cada uma dessas mentes, sendo que a maioria dos atributos relacionados com cada uma delas surge, para Gardner, na infância, tendo forte ligação com os estímulos da educação formal. Gardner também faz questão de apresentar as possíveis “pseudo-formas” para cada uma dessas mentes. Por exemplo, a atitude de mera tolerância frente à diversidade, conforme Gardner, pode se constituir como uma pseudo-forma da mente respeitosa.
A despeito das críticas aqui apresentadas, eu recomendaria Cinco mentes para o futuro, sobretudo àquele público que agora inicia a trajetória intelectual. Como disse antes, os tipos de mentes aqui tratadas devem ser encaradas como “habilidades mentais” a serem cultivadas por qualquer pessoa. O cultivo dessas habilidades pode ser extremamente útil para aqueles(as) que desejam se enveredar na atividade intelectual (que não é sinônimo de carreira acadêmica). No entanto, eu ressaltaria mais uma vez o risco de se discutir epistemologia sem discutir política, como vem sinalizando o trabalho de Bruno Latour[3]. A ciência não pode ser vista como uma atividade politicamente neutra. Neste caso, em lugar de recomendar “cinco mentes” que se adéqüem ao futuro, eu preferiria recomendar “cinco mentes que problematizem o futuro”.


[1] Cf do autor: GARDNER, Howard. Estruturas da mente: a teoria das inteligências múltiplas. São Paulo: Artmed, 1996; Inteligências múltiplas: a teoria na prática. São Paulo: Artmed, 2000; Inteligência: múltiplas perspectivas. São Paulo: Artmed, 2001; Inteligência: um conceito reformulado. São Paulo: Artmed, 1998.
[2] Veja ANTUNES, Celso. As inteligências múltiplas e seus desafios. Campinas: Papirus, 2002; Jogos para a estimulação das inteligências múltiplas. Petrópolis: Vozes, 1999.
[3] Cf. LATOUR, Bruno. Políticas da natureza: como fazer ciência na democracia. Bauru: EDUSC, 2004

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

MARCOS MONTEIRO: UM PESCADOR DE HUMANIDADE

Inspirado no artigo do Pr. Edvar Gimenez, e movido pela passagem do sexagésimo aniversário do Pr. Marcos Monteiro ocorrido no último dia 12 de outubro, publico meu texto-homenagem dedicado a uma das figuras de maior impacto na minha vida.

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MARCOS MONTEIRO: UM PESCADOR DE HUMANIDADE
Conheci Marcos Monteiro no ano de 2001, um ano antes da conclusão do curso teológico no STBNe, em Feira de Santana. Naquele ano, ela havia trabalhado com a disciplina Exegese do Novo Testamento, e havia também formado um grupo de estudos que se reunia todas as segundas-feiras em sua própria casa, no campus do seminário. Nós, que estudávamos no turno matutino – nessa época o STBNe ainda oferecia turmas nos turnos matutino e noturno –, não tínhamos aulas nas segundas-feiras. No entanto, o fascínio imediato que a pessoa de Marcos me provocou, fazia com que eu me deslocasse de Muritiba para Feira de Santana todas as segundas-feiras, a fim de participar das atividades do grupo de estudos.
Àquela altura, pelo menos para mim, o contato com alguns professores do STBNe já havia produzido mudanças profundas na maneira de enxergar a fé cristã e a missão das igrejas na sociedade. Não se tratava apenas de uma teologia interessada em derrubar mitos e questionar convicções alheias. Mas de uma teologia com sabor de vida, interessada nas questões mais urgentes que concerniam à vida concreta das pessoas. Marcos aprofundou essa orientação não apenas com o poder da grande erudição que detém, mas com um estilo de vida simples que nos constrangia e nos inspirava. Sob esse impacto feito à base de carisma, simplicidade e erudição, não tive dúvidas sobre quem escolher como orientador dos estudos monográficos. Os temas da Psicologia já me interessavam a essa época, e em meio a muitas dúvidas e indefinições, Marcos me ajudou a dar corpo a um antigo trabalho sobre o tema da religião na obra de Freud. Lembro-me dos encontros de sexta-feira dedicados à orientação, e de como ele me disponibilizava um bom número de livros de sua biblioteca particular.
Também não posso deixar de mencionar todo o fomento oferecido a mim por Marcos, para que eu prosseguisse nos estudos acadêmicos depois da graduação em Teologia. Na época, o STBNe tentava dar corpo a um projeto de Mestrado em Teologia, e Marcos chegou a me subsidiar com uma parte do seu salário para que eu pudesse realizar o desejo de me dedicar a níveis mais profundos do universo acadêmico, no campo dos estudos teológicos. Um pouco depois, Marcos chegou mesmo a me indicar como candidato a uma bolsa de estudos em Princeton (EUA), algo de que nunca esqueci. Recentemente quis que eu me tornasse presidente da FTL-B (meu Deus, que loucura!), e vez por outra, ainda vive me instigando a publicar as coisas que escrevo. Por todas essas razões, minha formação deve em muito a Marcos, pelo que sou imensamente grato.
Não obstante, Marcos só conheceu Patrícia pessoalmente no ano de 2004, durante um dos encontros regionais da FTL, em Paripueira-AL. Esse encontro, por sinal, foi decisivo para um importante projeto que nos aguardava no futuro. Quem conhece Marcos sabe que ele é um exímio construtor de pontes entre as pessoas. E naquele encontro, Marcos apresentaria a mim e à Patrícia a Wellington Santos e Odja Barros, o que resultaria em uma parceria ministerial alguns anos depois, na Igreja Batista do Pinheiro, em Maceió. Não por acaso, ele acabaria sendo o orador em nosso culto de posse na Igreja Batista do Pinheiro. Em seu sermão baseado em Mc 5,1-11, nos convidava, a mim e a Patrícia, a sermos “pescadores de humanidade”, tanto naquela comunidade de fé, assim como em toda Maceió, em Alagoas, e onde mais nossa influência pudesse alcançar.
Não foram muitos os momentos em que eu e Patrícia pudemos desfrutar da presença de Marcos em nossa casa. Nossos encontros quase sempre aconteceram e acontecem nos ambientes acadêmicos e eclesiais aos quais estamos ligados. Mas a presença de Marcos sempre nos provocou fascínio, e, porque não dizer, um certo mutismo. Mais do que a complexidade de seu pensamento – e que se entenda complexidade no sentido de Morin, a quem Marcos estima –, é o impacto de sua figura despida das pompas hierárquicas de nosso imaginário pastoral que emudece. Mais do que o prestígio que lhe vem dos livros e artigos acadêmicos que escreveu, é o peso de sua biografia e de suas opções que emudecem. A sensação que temos é a de que Marcos se parece com Jesus de Nazaré, e que o Jesus Histórico deve ter sido assim como ele. E é exatamente isso que emudece. Afinal, em meio ao frenesi religioso de nossos dias, não são muitas as pessoas que nos provocam essa sensação.
A única coisa que eu e Patrícia ainda não lhe perdoamos são os roncos! No final de 2009, tive o privilégio de dividir o púlpito do Acampamento da Família da Igreja Batista do Pinheiro com Marcos. Ficamos hospedados no mesmo chalé: eu, Patrícia e Marcos, separados por uma divisória que nos dava alguma privacidade, mas nenhum isolamento acústico. Eram tão altos os seus roncos que tornavam impossível um segundo de sono. O próprio Marcos, por sua iniciativa, deixou-nos sós, e armou sua rede do lado de fora do chalé, a fim de que pudéssemos dormir tranqüilos.
Brincadeiras à parte, eu e Patrícia somos imensamente gratos à vida por conhecermos Marcos Monteiro. É uma alegria imensa para nós participar desta homenagem nos seus sessenta anos. Muito particularmente, a vida de Marcos para mim é uma fonte de inspiração no que diz respeito ao desafio de depositar fé nas pessoas em quem acreditamos. Falamos muito da fé em Deus, e de todo bem que ela pode fazer à vida das pessoas. Mas falamos pouco dessa capacidade que algumas pessoas têm de manifestar sua “fé no outro”. Sei que esta pode ser uma expressão meio esquisita para um fideísmo atento a palavras heréticas. Mas eu sou uma das muitas pessoas em quem Marcos tem tido fé. Porque é fácil ter fé em Deus, em quem (cremos!) não há imperfeições. Difícil mesmo é ter fé nas pessoas, com suas ambivalências e ambigüidades. Talvez tenha sido por isso que Marcos exortava a mim à Patrícia a fazermos de nossa caminhada pastoral um exercício de pescaria de humanidade: porque é justamente isso que ele mesmo vem fazendo a vida toda, sobretudo no nordeste do Brasil.
Parabéns Marcos, pelos sessenta anos de idade. Você é um presente de Deus e da vida, para mim e para Patrícia.
Paulo & Patrícia Nascimento
Maceió, 18 de agosto de 2011